terça-feira, 15 de maio de 2012

A Lição Inaugural de Jacques Monod

Jacques Monod (1910-1976)
Prémio Nobel de Fisologia ou Medicina 1965
«Cada ovo contém, portanto, nos cromossomas recebidos dos seus progenitores, todo o seu próprio futuro, as fases do seu desenvolvimento, a forma e as propriedades do ser que dele emergirá. O organismo torna-se assim na realização de um programa prescrito pela hereditariedade. A tradução de uma mensagem substitui a intenção de uma Psyché. O ser vivo representa bem a execução de um projecto, projecto que nenhuma inteligência concebeu. Tende para uma finalidade que vontade alguma escolheu. Essa finalidade é a de preparar um programa idêntico para a geração seguinte. É a de se reproduzir.» (François Jacob)

«A vida é diferente de todos os outros fenómenos naturais: ela tem um programa. (...) Só na vida é que a individualidade emerge. O programa da vida desdobra-se no maravilhoso crescimento, que faz de um germe um organismo, no desabrochar de uma espécie para completar um cenário ambiental, na criativa substituição de espécies por espécies no curso da evolução - porque o programa da vida foi inscrito numa substância única: os genes. Este substrato material da vida é uma excepção, não às leis da Física e da Química, mas aos milhares de tipos comuns de moléculas. É uma substância cuja estrutura tanto assegura estabilidade, como também uma quase infinita variedade de padrões individuais. Propicia a cópia, com exactidão inatingível em quaisquer outras espécies moleculares conhecidas. Ao mesmo tempo, esta substância é capaz de transformações e as suas mudanças tornam-se a base para a evolução biológica. (...) A essência da Biologia é a evolução. e a essência da evolução é a ausência de motivo ou de propósito. De acordo com a formulação de Monod, o acaso e a necessidade são as duas faces do progresso biológico.» (Salvador E. Luria)

O jornal Le Monde de 30 de Novembro de 1967 publicou a Lição Inaugural de Biologia Molecular de Jacques Monod no Colégio de França. Louis Althusser analisou-a no seu Curso de Filosofia para Cientistas, pronunciado em Outubro-Novembro de 1967 na Escola Normal Superior (Paris): «O texto de Monod é um documento excepcional, duma qualidade científica e duma honestidade intelectual fora do comum». O texto integral de Monod que não tem mais de dezasseis folhas constitui um documento científico e filosófico único no seu género. James Watson e Francis Crick - provavelmente com excepção do Crick tardio, o autor de The Astonishing Hypothesis (1990)! - não desfrutavam da mesma sensibilidade filosófica apurada exibida por Jacques Monod e François Jacob. Os biólogos moleculares franceses aliaram a sua prática científica à tarefa de elaborar a «filosofia natural da biologia moderna». É esta aliança entre ciência e filosofia que configura as suas obras mais famosas nos meios académicos: O Acaso e a Necessidade de Monod (1970) e A Lógica da Vida de Jacob (1970). A obra de Monod de 1970 mais não é do que o desenvolvimento teórico exaustivo da sua lição inaugural no Colégio de França, onde Jacob era responsável pela disciplina de Genética Celular. Com excepção de Althusser e, de certo modo, de Karl Popper, os filósofos de ofício não acolheram bem a obra de Monod, alegando que ele não dominava as matérias filosóficas. Suspeito que o conhecimento filosófico de Monod não era tão limitado como supunham Toulmin e Hampshire. Mas mesmo que fosse limitado não é isso que importa na avaliação de uma obra que tenta descobrir concepções novas e originais. Wittgenstein tinha um conhecimento limitado da história da filosofia e, no entanto, ninguém usou isso contra as suas contribuições originais. O livro de Monod - O Acaso e a Necessidade - não é de leitura fácil: analisa o problema central da biologia - a natureza e a função da hereditariedade e a sua relação com a evolução - em termos filosóficos, sem fazer nenhuma concessão ao leigo. Esta sua pretensão filosófica enuncia-se desde logo no seu subtítulo: Ensaio sobre a filosofia natural da biologia. A maior parte das pessoas que o compraram não o leram ou, pelo menos, não leram as suas secções técnicas e bioquímicas: Os demónios de Maxwell (capítulo III), Cibernética microscópica (capítulo IV), Ontogénese molecular (capítulo V) e Invariância e perturbações (capítulo VI). A atitude adoptada perante o livro foi determinada pela concordância ou discordância das teses apresentadas nos capítulos filosóficos: Estranhos objectos (capítulo I), Vitalismos e animismos (capítulo 2), Evolução (capítulo VII), As fronteiras (capítulo VIII) e O Reino e as trevas (capítulo IX). A dissociação entre as secções bioquímicas e as secções filosóficas não permite fazer justiça à "beleza" da teoria bio-filosófica de Monod. Há na lição inaugural uma referência a Heidegger que deixa transparecer a preocupação ontológica de Monod: a elaboração de uma ontologia regional dos sistemas vivos a partir da teoria sintética da evolução. A bio-ontologia de Monod não pode ser descartada facilmente por quem pratica a biologia molecular e, sobretudo, por quem adopta o materialismo ou o realismo como sua filosofia. Embora nunca tenha afirmado ser "materialista", pelo menos na sua lição inaugural, Monod procedeu como um materialista na exposição que fez da ciência biológica moderna, ao negar a prioridade da teleonomia sobre a emergência. Porém, quando passa do domínio da biosfera para o domínio da noosfera, o reino do homem, Monod inverte a tendência materialista da sua prática científica, abraçando o idealismo: a sua filosofia da história é francamente idealista. Althusser criticou severamente esta inversão de tendência e, como já disse num outro ensaio, Monod foi sensível a esta crítica quando escreveu O Acaso e a Necessidade, onde enuncia explicitamente o postulado da objectividade: «A pedra angular do método científico é o postulado da objectividade da natureza, isto é, a recusa sistemática em considerar como podendo conduzir a um "verdadeiro" conhecimento toda a interpretação dos fenómenos, dado em termos de causas finais, quer dizer, de "projectos". (...) Postulado puro, para sempre indemonstrável, porque, evidentemente, é impossível imaginar uma experiência que possa provar a não existência de um projecto, de um fim a atingir, ou inexistente na natureza. Mas o postulado da objectividade é consubstancial à ciência e, desde há três séculos, tem norteado todo o seu prodigioso desenvolvimento. É impossível libertarmo-nos dele, ainda que provisoriamente, ou num domínio limitado, sem sair do da própria ciência. No entanto, a mesma objectividade obriga-nos a reconhecer o carácter teleonómico dos seres vivos, a admitir que, nas suas estruturas e funções, eles realizem e persigam um projecto. Há aí, portanto, pelo menos aparentemente, uma contradição epistemológica profunda. O problema central da biologia está nesta mesma contradição, a qual se trata de resolver se for apenas aparente, ou de demonstrar como radicalmente insolúvel se na verdade assim for». Com a formulação do postulado da objectividade, Monod mais não faz do que afirmar a tese materialista fundamental: «o primado do ser sobre o pensamento», para usar a expressão consagrada por Marx. Esta tese fundamental do materialismo é, ao mesmo tempo, tese de existência, tese de materialidade e tese de objectividade, como lembra Althusser, na medida em que afirma que apenas se conhece aquilo que existe, que o princípio de toda a existência é a materialidade, e que toda a existência é objectiva, isto é, anterior à subjectividade que a conhece e independente dela. No entanto, apesar da sua lucidez conceptual, Monod volta a distanciar-se do materialismo dialéctico, acusando-o de ser um animismo antropocêntrico, acentua a sua tendência mecanicista no conhecimento do gene e do mecanismo da sua reprodução invariante e não corrige o desvio idealista presente na sua filosofia da história.

Lição inaugural de Monod: um documento científico, um documento filosófico. Disse-o e volto a repetir que estamos perante dois documentos num só e mesmo documento. Althusser distingue quatro elementos na lição de Monod, a saber: a ciência biológica moderna, a filosofia espontânea do cientista, a filosofia e a concepção do mundo. A intervenção filosófica de Althusser não incide sobre o conteúdo propriamente científico da lição de Monod, o qual aceita «sem reserva como uma referência absoluta para toda a reflexão filosófica». Ora, o conteúdo científico da lição de Monod é "escasso" ou, pelo menos, muito reduzido, e não ultrapassa aquilo que foi dito nas duas citações de Jacob e Luria que aparecem em epígrafe. O ADN, "constituinte dos cromossomas, guarda da hereditariedade e fonte da evolução", constitui a base física da emergência e a natureza física das interacções teleonómicas elementares, mediadas pelas proteínas, das quais Monod destaca as enzimas alostéricas, as duas propriedades fundamentais que distinguem os seres vivos dos outros sistemas conhecidos no universo. A escassez de conteúdos científicos positivos tem uma justificação que ultrapassa a questão do nível de desenvolvimento científico alcançado pela biologia molecular na altura em que Monod proferiu a sua lição inaugural: ela traduz a preocupação ontológica de Monod. A lição de Monod move-se num duplo registo, científico e filosófico. E o registo filosófico domina claramente o registo científico: o que temos diante de nós é, portanto, uma exposição filosófica da biologia moderna, mais tarde denominada filosofia natural da biologia moderna, toda ela centrada em torno daquilo que define na sua essência estes «estranhos objectos» que são os seres vivos. Monod cita na sua lição esta frase de Heidegger: «Que um ser seja ontológico não significa, contudo, que tenha elaborado uma ontologia». Sendo particularmente sensível a problemas de natureza ontológica, Monod procura traçar a limite exacto do mundo físico e do mundo vivo, elaborando uma ontologia dos seres vivos à luz dos conhecimentos adquiridos pela biologia molecular. Althusser não foi sensível à preocupação ontológica de Monod. Mas a insensibilidade ontológica de Althusser não inviabiliza a sua crítica pertinente da lição de Monod. O facto de Monod ter feito filosofia explícita justifica a pertinência da crítica de Althusser e da sua distinção dos quatro elementos da lição de Monod. Acompanharei Althusser nesta distinção, embora não esteja particularmente interessado em saber se a lição de Monod está ou não em sintonia com o materialismo dialéctico tal como o entende Althusser. Volto a repetir o que já disse: Monod rejeita categoricamente o materialismo dialéctico e, quando abraça uma certa ideia de socialismo, diz que «a única esperança do socialismo não consiste numa "revisão" da ideologia que o domina há mais de um século, mas no abandono total desta ideologia». (Aliás, a dialéctica inscreve-se na materialidade das coisas, lá onde elas são mediadas pelo elemento subjectivo e pela praxis dos homens reais. A dialéctica materialista não é, de facto, animista! O abandono da dialéctica materialista, proposto por Monod, implica a paralisia da praxis de transformação qualitativa do mundo. O preço da imobilização da dialéctica está a ser pago pelos homens de hoje, para os quais parece não haver futuro.)

1. A ciência biológica moderna. Baseando-se totalmente nos dados e nos métodos das ciências físicas, a biologia molecular procura interpretar os fenómenos biológicos mais característicos do mundo «em termos de estruturas e de interacções moleculares». Nos parágrafos científicos da sua lição, Monod começa por enunciar o conteúdo da descoberta que transformou a biologia moderna: o ácido desoxirribonucleico (ADN), «constituinte dos cromossomas, guarda da hereditariedade e fonte da evolução», a «pedra filosofal da biologia». Esta descoberta permite-lhe pensar dois novos conceitos da teoria biológica: a emergência e a teleonomia, as duas «propriedades paradoxais» que definem os seres vivos. «A emergência é a propriedade de reproduzir e de multiplicar estruturas ordenadas, sumamente complexas, e permitir a criação evolutiva de estruturas de complexidade crescente». Monod utiliza a palavra teleonomia para evitar a palavra "finalidade": «Não obstante, "tudo sucede como se" os seres vivos estivessem estruturados, organizados e condicionados para um fim: a sobrevivência do indivíduo e, sobretudo, a da espécie». Estas duas propriedades semelhantes, pelas quais os sistemas vivos se distinguem radicalmente dos seres não-vivos, não são independentes: elas estão estreitamente associadas, «já que o "projecto" teleonómico é a multiplicação da espécie, propriedade de emergência». Monod sabe que é mais fácil dar um sentido físico à noção de emergência do que propor uma definição objectiva de teleonomia: «Pode-se definir a emergência duma espécie dada como proporcional à quantidade de informação que, transmitida duma geração a outra, assegura a conservação de normas estruturais. A dita quantidade é, em grande parte, mensurável. Todas as actividades, todas as representações que contribuem para o êxito da dita transmissão de informações são operações teleonómicas. Não obstante, as operações teleonómicas podem ser consideradas individualmente, como transferências de informação. Pode-se então sugerir que a quantidade de informação, que um indivíduo duma espécie dada deve transferir, em média - no curso da sua vida, para assegurar uma transmissão, à sua descendência, do seu conteúdo de emergência - é um índice da sua "potência" teleonómica mínima». Embora seja insuficiente, esta definição permite objectivar o "finalismo biológico" e precisar a sua relação íntima com a emergência. A relação causal e temporal entre emergência e teleonomia está no cerne de todas as teorias propostas para solucionar o fenómeno biológico. Monod classifica as teorias biológicas em dois grupos: o grupo das teorias que admitem que a teleonomia assegura e dirige a emergência, e o grupo das teorias que defendem que a emergência assegura e dirige a teleonomia. No primeiro grupo de teorias "clássicas", convém distinguir entre teorias vitalistas e teorias animistas. As teorias vitalistas «pressupõem a existência de um princípio teleonómico, duma especialíssima força directriz, presente na "matéria viva" e ausente na matéria inanimada». Monod não perde muito tempo a refutar o vitalismo, limitando-se a assinalar que a própria noção de "matéria viva" não tem nenhum sentido: «Existem sistemas vivos; não existe "matéria" viva. Nenhuma substância, nenhuma molécula tirada e isolada de um ser vivo possui, por si mesma, propriedades semelhantes. Só os sistemas vivos - quer dizer a célula - apresentam diferenças. A emergência e a teleonomia são propriedades do sistema, mas não das substâncias constituintes». As teorias animistas - das quais Monod destaca a «solução metafísica» de Teilhard de Chardin - supõem que «a teleonomia e a emergência são, na realidade, propriedades universais, que se manifestam somente de maneira mais intensa nos seres vivos, principiando, ou terminando no próprio homem». A solução de Chardin, exposta na sua obra O Fenómeno Humano (1947), já não é nova, porque, sob uma forma ou outra, explícita ou não, esta ideia está presente na maioria dos sistemas religiosos ou metafísicos, entre os quais Monod situa a física de Aristóteles, o idealismo hegeliano e o materialismo dialéctico. A lição de Monod refere uma única vez o segundo princípio da termodinâmica, a partir da citação de uma afirmação de Engels, onde este parece negá-lo, para refutar a lógica das teorias animistas, a qual implica, como ponto de partida, uma teleonomia universal, que tenderia para a emergência: «Uma vez admitido este animismo cósmico, já não há, com efeito, problema para explicar a aparição da vida e da evolução», bastando negar o segundo princípio da termodinâmica. Este argumento de Monod é muito débil, se pensarmos que a termodinâmica clássica não tem nada a ver com a interpretação do fenómeno da vida. Duas razões bem distintas impedem a aplicação e o uso do segundo princípio da termodinâmica para explicar o fenómeno da vida: em primeiro lugar, este principio só pode ser aplicado a sistemas fechados, e, como se sabe, os seres vivos são sistemas energeticamente abertos. Em segundo lugar, a termodinâmica clássica representa uma teoria de processos reversíveis, e, como se sabe, todos os processos mais importantes da vida são irreversíveis, o que implica que, se quisermos esclarecer o aspecto termodinâmico da origem e da reprodução da vida, devemos ligá-lo a uma termodinâmica de processos irreversíveis, tal como foi fundada em 1931 por L. Onsager e desenvolvida por M. Eigen e Ilya Prigogine, entre outros. Ora, segundo Monod, a única solução compatível com o segundo princípio da termodinâmica é aquela que defende que a emergência deve necessariamente preceder a teleonomia: «Já que este mesmo princípio é absolutamente inconciliável com qualquer teleonomia universal, não exclui em absoluto a emergência local de estruturas complexas». Coube a Darwin o mérito de ter descoberto a ideia de que a teleonomia procede da emergência que a cria, a molda e a amplia. A selecção darwiniana já dava conta da evolução da biosfera, faltando-lhe acrescentar as propriedades fundamentais que fazem dos sistemas vivos sujeitos da selecção. Com a descoberta da estrutura em dupla hélice do ADN, a biologia molecular descobriu «a base física da emergência e a natureza física das interacções teleonómicas elementares».

Monod rejeita a analogia estabelecida entre o ADN e a memória de uma calculadora, não tanto ao nível das estruturas lógicas, mas sobretudo ao nível das funções: «A memória de uma calculadora contém informações ou instruções em forma de números escritos em geral num sistema binário. Analogamente, as instruções necessárias à síntese dos constituintes celulares estão contidas no ADN, na forma de sequências lineares de quatro radicais químicos, ou seja, num sistema de numeração de base quatro». No entanto, apesar desta analogia superficial, a função do ADN na célula é radicalmente distinta da memória magnética de uma calculadora, em três aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, a memória de uma calculadora - informações e programa - não afecta a própria estrutura da máquina e os seus componentes, enquanto as informações contidas no ADN constituem regras relativas à síntese dos constituintes celulares, funcionando como agentes de execução do próprio programa. Em segundo lugar, a memória de uma calculadora é modificável, enquanto a estrutura do ADN é invariante, inacessível a qualquer instrução e a toda a experiência vivida pelo organismo: uma forma "bonita" de enunciar o dogma central da biologia molecular! Finalmente, em terceiro lugar, a "finalidade" do programa contido no ADN é a de reproduzir exactamente, de multiplicar e ne varietur a estrutura deste mesmo ADN: «Neste processo de "repetição", o ADN intervém directamente como matriz; cada uma das suas fibras dirige a união sequencial dos radicais que constituem o alfabeto da linguagem química, imprimindo assim uma nova cópia, exacta, do programa. Ainda que o ADN não seja - estritamente falando - um cristal, o seu mecanismo de repetição é bastante comparável ao fenómeno referido, e, desde há muito tempo, no mundo físico um exemplo de emergência: a cristalização. Esta antiga comparação, por vezes subvalorada pela sua pretensa ingenuidade, aparece hoje plenamente justificada: a base molecular da emergência nos seres vivos é, como previu Schrödinger, um "cristal aperiódico", utilizado como modelo para a reprodução ne varietur da sua própria estrutura». Este extremo conservadorismo opõe-se à variação, isto é, à evolução, mas esta contradição entre estabilidade e evolução é aparente, porque os mecanismos que asseguram a repetição do ADN não são absolutamente infalíveis, bastando que ocorra um acidente para provocar um erro na reprodução do programa. Se não determinar o desaparecimento da linha celular em que foi produzido, o erro será, por sua vez, mantido, reproduzido e multiplicado. A evolução mais não é do que o resultado das imperfeições do sistema conservador das estruturas, que representa uma célula: «Longe de "guiar" a emergência evolutiva, a teleonomia só contribui para ela - aliás cegamente - precisamente quando está ausente. Podemos dizer que as mesmas circunstâncias fortuitas - que, num sistema inanimado, levariam, pela sua acumulação, ao desaparecimento de qualquer estrutura - determinam, na biosfera, a criação de novas estruturas e de complexidade crescente». A restante parte científica da lição de Monod é dedicada à realização do projecto celular, cujos suportes moleculares são as proteínas. Monod precipita-se quando afirma que a evolução das espécies deixou de ser hoje em dia o problema central da biologia, cujas fronteiras, os limites da terra desconhecida, se situam hoje nos dois pólos da evolução: as origens da emergência das primeiras estruturas dotadas de poder de auto-reprodução, e o funcionamento da mais evolutiva das estruturas teleonómicas, o sistema nervoso central, que, tal como outros sistemas de coordenação (sistema endócrino, por exemplo), funciona pela mediação de sinais químicos que intervêm - em última instância - ao nível celular. Monod destaca apenas dois mediadores do fluxo nervoso: a acetilcolina e as hormonas esteróides. As suas "especulações" apontavam no sentido da solução dos problemas teleonómicos fundamentais exigir a união das disciplinas biológicas, em especial da embriologia, da fisiologia endócrina, da neurofisiologia e da biologia molecular. O que importa destacar aqui é a ideia de que o sistema nervoso central do homem constitui «o suporte físico último do pensamento, da consciência, do conhecimento, da poesia, das ideias políticas ou religiosas, assim como dos projectos mais nobres ou das ambições mais baixas». Duas emergências mereceram a atenção de Monod: a emergência da biosfera e a emergência da noosfera, dois acontecimentos altamente improváveis.

2. A filosofia espontânea do cientista (FEC). O conceito althusseriano de filosofia espontânea de cientista é pertinente, embora tenha dificuldade em ver como a FEC pode funcionar numa lição em que o seu autor pretende fazer filosofia propriamente filosófica. Devemos a Althusser a elaboração deste maravilhoso instrumento de análise filosófica da ciência que é a FEC. Todos os cientistas, incluindo os matemáticos, têm uma FEC, e os filósofos também, mas no caso destes últimos a FEC não é a filosofia, mas a sua concepção do mundo. Os cientistas possuem a convicção de que existe uma relação entre a filosofia e as ciências. Esta convicção evidencia-se e detecta-se facilmente durante os períodos de crise científica (no sentido de Thomas Kuhn e de Lenine): a filosofia espontânea dos cientistas não é o conjunto das ideias que os cientistas têm sobre o mundo, a sua concepção do mundo, mas sim o conjunto de ideias que dizem respeito à prática científica e à ciência na sua relação estrutural com a filosofia. A FEC é distinta da concepção do mundo, embora estas duas realidades estejam unidas por laços profundos. O conteúdo da FEC é sempre contraditório. A contradição que marca o conteúdo da FEC existe entre dois elementos: um elemento de origem interna, intra-científico, o elemento 1, que, na sua forma difusa, representa convicções ou crenças resultantes da experiência da prática científica em si, imediata e quotidiana; e um elemento de origem externa, extra-científico, o elemento 2, que, na sua forma difusa, representa um certo número de convicções ou crenças que podem ser elaboradas em teses filosóficas. Estas teses filosóficas são elaboradas fora da ciência, por filosofias da ciência - religiosas, espiritualistas ou idealistas-críticas, fabricadas por filósofos ou cientistas. No seu modo próprio de funcionamento, as crenças do elemento 2 da FEC submetem a experiência da prática científica a teses e, portanto, a valores ou instâncias que lhe são exteriores, de modo a explorar as ciências e a servir sem crítica um certo número de objectivos saídos das ideologias práticas. A sua forma de espontaneidade reside no facto do seu domínio fazer delas «evidências imediatas». Os conflitos que opõem entre si os cientistas comprometidos na resolução de uma crise científica permitem qualificar o elemento 1 de elemento materialista e o elemento 2 de elemento idealista. No seio da FEC, o elemento materialista é, na grande maioria dos casos, dominado pelo elemento idealista: «Esta situação reproduz, no seio da FEC, a relação de força filosófica, existente no mundo onde vivem os cientistas que conhecemos, entre o materialismo e o idealismo, e o domínio do idealismo sobre o materialismo», aliás bem patente na substituição frequente do grupo objecto/teoria/método pelo grupo experiência/modelos/técnicas.

Ora, tudo o que Monod diz da biologia molecular na sua lição manifesta uma profunda tendência materialista e dialéctica. A FEC de Monod está presente na sua exposição dos resultados da biologia moderna: o elemento 1 da FEC está, portanto, ligado ao próprio material científico, cabendo à filosofia fazê-lo aparecer na sua distinção, por uma linha de demarcação. Monod define a realidade material do objecto da biologia pelo crítica da noção de matéria viva: «Existem sistemas vivos; não existe "matéria" viva». Deste modo, ele denuncia a filosofia vitalista - identificada em 1970 nas obras de Bergson, Driesch, Elsässer e Polanyi - implícita na noção de matéria viva, de modo a desimpedir o caminho da exposição dos resultados científicos: os sistemas vivos emergiram no mundo físico e a sua emergência tem um suporte físico, o ADN. As teses materialistas de Monod assumem a forma ao mesmo tempo positiva e polémica: rejeitam os elementos filosóficos - extracientíficos - para desobstruir o caminho da exposição científica dos resultados positivos da biologia moderna. O aspecto dialéctico destas teses materialistas de Monod revela-se na crítica da relação ideológica entre a emergência e a teleonomia: Monod rejeita a subordinação da emergência à teleonomia defendida pelas teorias animistas e vitalistas, segundo as quais a vida surgiu no mundo físico para produzir o Espírito. Com esta crítica Monod abre caminho aos conceitos positivos, dos quais se destacam o conceito de emergência e a subordinação causal e temporal da teleonomia à emergência. Monod acusa Engels, o autor da Dialéctica da Natureza, de ser animista, mas o seu conceito de emergência, de origem puramente intracientífica, tem ressonâncias dialécticas, funcionando ao mesmo tempo como conceito científico e como categoria representando uma «teoria possível da dialéctica, operando na própria natureza» (Althusser): a noção de emergência aparece assim como uma renovação parcial da lei do salto qualitativo, isto é, da passagem dialéctica da quantidade à qualidade. Mas, ao lado do elemento 1 ligado ao material científico, aparece o elemento 2 quando Monod sai do domínio da biologia - biosfera - para invadir o domínio da noosfera, onde o elemento 1 é retomado sob uma tendência e sob uma modalidade completamente opostas que lhe imprimem uma inversão de tendência. Se no elemento 1 Monod é 100% contra Chardin, no elemento 2, além de recorrer a dois conceitos de Chardin - biosfera e noosfera -, Monod recai naquilo que tinha evitado no elemento 1: o par espiritualismo-mecanicismo. Ele enuncia três teses: foi a linguagem que criou o homem (1); o reino do homem é a noosfera (2); e a noosfera é «o reino das ideias e do conhecimento» (3). É certo que a primeira tese não é necessariamente idealista, na medida em que a origem da linguagem é vista como uma emergência acidental que tem por suporte neuro-fisiológico os recursos informacionais do sistema nervoso central do homem, mas a teoria da noosfera de Monod é, efectivamente, idealista, mais precisamente mecanicista e espiritualista. A teoria da noosfera é mecanicista porque estende sem qualquer justificação filosófica as leis biológicas à existência social e cultural dos homens: «A noosfera, por ser imaterial, povoada apenas por estruturas abstractas, apresenta estreitas analogias com a biosfera da qual emergiu». Monod aguarda pela chegada do grande homem que saberá escrever, «como complemento à obra de Darwin, uma "história natural da selecção das ideias», fornecendo-lhe desde logo as suas bases, de resto já vislumbradas por Malthus e pelo darwinismo social do século XIX: uma teoria biológica das ideias como seres dotados de propriedades específicas das espécies vivas, votados às mesmas funções e expostos às mesmas leis. O mecanicismo de Monod reside no facto de impor arbitrariamente o conteúdo materialista de uma ciência definida, no seu caso a biologia moderna, a uma outra ciência - a ciência da história e das sociedades humanas - que possui uma objecto real diferente do objecto da biologia. Atribuir um suporte físico à biosfera, o ADN, é ser materialista. Atribuir um suporte neurofisiológico à linguagem humana - Broca localizou a área da linguagem - também é ser materialista. Mas não se é materialista quando se dá essa base a todo o domínio da noosfera, ou melhor, a todo o domínio da existência social e histórica da humanidade. A hipótese do cérebro social - avançada recentemente pelas neurociências sociais - mostrou que a expansão do neocórtex está ligada à complexidade das sociedades dos primatas, o que quer dizer que a complexificação da sociedade determinou a própria expansão do cérebro dos primatas, sobretudo a do cérebro humano. (A minha crítica à teoria da noosfera de Monod é mais "suave" do que a de Althusser, porque reconheço a sua importância no âmbito da antropogénese, tendo plena consciência da complexidade deste assunto. Aliás, penso que o próprio Engels não descartaria esta linha de investigação: a própria organização das sociedades evoluiu ao longo do tempo, sendo acompanhada pela expansão do cérebro. Há, portanto, uma ligação estreita entre neurogénese - em sentido lato - e sociogénese, tanto no plano filogenético como no plano ontogenético, testemunhada pelo facto de meios socialmente pobres em estímulos não fomentarem o desenvolvimento cerebral rico em conexões interneuronais.) A teoria da noosfera é espiritualista porque usa a teoria da linguagem criadora do homem como princípio de inteligibilidade científica da história da humanidade: a base real da história da humanidade não é a materialidade das condições sociais existentes, mas sim a "imaterialidade" da noosfera, esse «reino das ideias e do conhecimento», cujo vazio - o vazio da sua imaterialidade - só pode ser preenchido com a ajuda do Espírito ressuscitado do espiritualismo convencional de Chardin. Deste modo, Monod inverte o materialismo do elemento 1 em idealismo do elemento 2. Esta inversão é operada no ponto preciso do mecanicismo: o uso mecanicista do materialismo biológico fora da biologia, isto é, na história das sociedades humanas, produz o efeito de inversão da tendência materialista em tendência idealista. Althusser dá-nos uma grande lição de filosofia quando analisa a inversão operada por Monod no aspecto dialéctico do elemento 1. No elemento 1, a dialéctica que é materialista está presente no conceito de emergência. Este conceito funciona de modo materialista no domínio biológico, mas quando passa da biosfera à noosfera ele perde o seu conteúdo científico de origem. No domínio da história, a dialéctica funciona de uma forma espantosa: além de proliferar na história, como um verdadeiro deus ex machina (1), a emergência funciona aí sob a forma não da própria história mas da biologia, como o demonstra a teoria da selecção natural das ideias (2), fazendo da noosfera a esfera privilegiada do funcionamento da emergência (3), como se a sequência de emergências tivesse como finalidade escondida, por teleonomia, a emergência da noosfera e do Espírito. Assim, a dialéctica, materialista no elemento 1, tornou-se idealista no elemento 2. A este efeito de escuta ou de leitura, que Monod poderia contestar, Althusser acrescenta dois outros efeitos, de modo a tornar perceptível uma convergência de efeitos: um ligado à definição de emergência, o outro ligado ao conceito de acaso. Na sua definição de emergência, já referida em cima, Monod pensa duas propriedades diferentes sob um só e único conceito: a emergência é uma dupla propriedade, de reprodução e de criação. O ponto sensível da definição de emergência está no "e", porque a propriedade de reprodução e a propriedade de criação são coisas diferentes. Em biologia, a propriedade de criação só faz sentido na base da propriedade de reprodução, porque se os seres vivos não fossem dotados da propriedade de se reproduzir e multiplicar, nada de novo poderia surgir na biosfera que fosse ao mesmo tempo vivo e mais complexo. No entanto, além deste laço entre reprodução e criação, há também uma ruptura: a do aparecimento inesperado do novo, um ser mais complexo que o ser precedente. A palavra "e" - ligando a reprodução "e" a criação - arrisca-se a confundir as duas realidades, mas mesmo quando as justapõe, como é o caso em Monod, corre o risco de ser insuficiente do ponto de vista científico. Aquilo que é meramente justaposto na definição de emergência é distinguido na prática científica de Monod, é certo!, mas quando faz intervir a emergência para designar o aparecimento de novas formas vivas Monod deixa a reprodução na sombra. A insuficiência da justaposição das duas propriedades num só e único conceito, o de emergência, revela-se no facto da reprodução, regulada pelo ADN, ficar na sombra quando se trata do surgir de novas formas de vida. Deste modo, a definição de emergência produz no seu silêncio central - a palavra "e" - um efeito real: a criação de novas formas de vida, cada vez mais complexas que as anteriores, permite à noção de emergência mudar facilmente de tendência, do materialismo para o idealismo, oscilando insensivelmente do lado de um impensado que funciona como uma finalidade impensada. O conceito de acaso representa desde Epicuro, sobre o qual Marx escreveu a sua tese de doutoramento, um papel materialista positivo contra as explorações finalistas da biologia. Em biologia, o conceito de emergência está ligado ao conceito de acaso, que Monod utiliza para designar o índice preciso das condições de possibilidade de emergência. Porém, quando passa da biologia à história, Monod fá-lo funcionar no sentido inverso ao do seu funcionamento na biologia, não como índice das condições de existência da emergência, mas como teoria biológica da própria história: o exemplo histórico de Shakespeare - a probabilidade de um dactilógrafo escrever as suas obras - já vai no sentido dessa inversão de tendência, embora o darwinismo histórico de Monod se revele plenamente na teoria da história da selecção natural das ideias, onde o acaso passa dum funcionamento materialista a um funcionamento idealista, alterando o próprio sentido da emergência. (Tudo o que se passa no domínio da noosfera é "milagroso" - portanto altamente improvável - para Monod!) Aristóteles já sabia que a matéria se diz de muitas maneiras: o materialismo é uma filosofia pluralista que não permite a redução do materialismo histórico ao materialismo biológico. E o grande sonho desta filosofia diferencial, sobretudo da filosofia de Marx, é dissolver-se enquanto materialismo.

3. A filosofia. A filosofia está presente na lição de Monod sob duas formas: sob a forma de termos filosóficos tomados de empréstimo das filosofias existentes, tais como unidade da ciência, interdisciplinaridade, aliança entre ciência e filosofia, biosfera, noosfera, alienação, praxis e nada, e sob a forma de desenvolvimentos filosóficos explícitos. Monod não se contenta em citar filósofos (Demócrito, Aristóteles, Bernardin de Saint-Pierre, Descartes, Pascal, Kant, Hegel, Comte, Engels, Nietzsche, Heidegger e Teilhard de Chardin), em usar os seus conceitos ou em criticar sistemas filosóficos (a física de Aristóteles, o idealismo de Hegel, o materialismo dialéctico, a biologia de Chardin, por exemplo): Monod faz filosofia, propondo uma definição de filosofia: a função da filosofia «é, antes de tudo, estabelecer um sistema de valores», para o opor às ciências que ignoram os valores. Deste modo, Monod traça uma linha de demarcação entre as ciências e a filosofia: o conhecimento do mundo é confiado às ciências, e os valores são entregues à filosofia. Eis como Monod interpreta estas palavras de Pascal: «A ciência das coisas exteriores não me consola moralmente, em alturas de tristeza; porém a ciência dos costumes consolar-me-á sempre da ignorância das ciências exteriores». O medo perante o desconhecido permanece como "último argumento": «(...) O conhecimento objectivo ignora valores, destrói os fundamentos tradicionais das éticas religiosas, sem poder, por essência, propor qualquer outra (ética). E a filosofia, cuja função é, antes de tudo, estabelecer um sistema de valores, impele o homem a buscar os seus fundamentos fora da ciência, para cá ou para lá desta. (...) A ciência ignora os valores; a concepção do universo que hoje ela nos impõe está alheia a toda a ética. Entretanto, a investigação constitui, por si mesma, um ascetismo; implica necessariamente um sistema de valores, uma "ética do conhecimento" de que não pode, contudo, demonstrar objectivamente a validade». A filosofia entendida como «ciência dos costumes» ou dos valores, isto é, como uma axiologia, é algo que se tornou estranho a alguns herdeiros de Monod, bastando pensar nos trabalhos apresentados na Fundação para a Investigação Médica e reunidos por Jean-Pierre Changeux, onde alguns biólogos - entre os quais António Damásio - procuraram estabelecer os fundamentos naturais da ética. Quais são os conteúdos positivos desta nova ética, criadora do conhecimento, proposta por Monod como meio de salvação do mundo moderno? A filosofia explícita de Monod não é tão clara como parece ser à primeira vista: a ética do conhecimento, fundada sobre a prática da ciência, é, no entanto, uma construção filosófica, cuja validade não pode ser demonstrada objectivamente. É por isso que Monod combate a confusão entre ética do conhecimento e o próprio método científico, traçando uma linha de demarcação entre ambos: «Todavia, actualmente confunde-se a miúdo a ética do conhecimento com o próprio método científico. O método é, porém, uma epistemologia normativa, não uma ética. O método diz-nos como investigar (procurar). Mas quem nos manda investigar (procurar), e para isso adoptar o método, com a ascese que ele implica?» Para tentar esboçar o corpo positivo da ética do conhecimento, Monod começa por a distinguir de outros sistemas éticos: «A ética do conhecimento é radicalmente distinta dos sistemas religiosos ou utilitários que vêem no conhecimento, não um fim em si mesmo, mas um meio de alcançá-lo». Quando um homem escolhe vir a ser cientista, ele adere a um certo sistema de valores e assume, de forma declarada ou implícita, uma ética,  sem a qual «o rigor lógico e a objectividade seriam inacessíveis», adoptando determinadas regras de conduta que implicam um ascetismo que alimenta o conhecimento, o «único objectivo que os interessa». Nascida da e na prática científica, a ética do conhecimento não pode invocar o poder para alimentar o saber: «O único fim, o valor supremo, o "sumo bem" na ética do conhecimento, não é, confessêmo-lo, a felicidade da humanidade, menos ainda o seu poder temporal ou o seu conforto, nem sequer o "conhece-te a ti próprio" socrático, é o próprio conhecimento objectivo. Penso que é necessário dizê-lo, que tem de se sistematizar esta ética, extrair dela as consequências morais, sociais e políticas, que é preciso espalhar e ensinar, pois, criadora do mundo moderno, ela é a única compatível com ele. É preciso não esconder que se trata duma ética severa e constrangedora que, se respeita no homem o suporte do conhecimento, define um valor superior ao próprio homem. Ética conquistadora e, em certos aspectos, nietzscheana, porque ela é uma vontade de poder: mas de poder unicamente na noosfera. Ética que ensinará por conseguinte o desprezo pela violência e pela dominação temporal. Ética social, pois o conhecimento objectivo não pode ser estabelecido como tal senão no seio duma comunidade que lhe reconhece as normas». Em vez de examinar como é que uma ética ascética pode ser nietzscheana, prefiro identificar a tendência idealista-espiritualista e existencialista da filosofia de Monod, reforçada por um ateísmo categórico que se enuncia em todas as frases onde o homem é reduzido ao nada do seu ser: «Que o homem não tenha grande importância no universo, que não tenha peso algum e ainda que haja emergido, talvez, por acaso, eis o resultado capital da ciência, dificilmente aceite. A fuga da realidade, o recurso à transcendência, ou a qualquer entidade universal, não exigia nenhum ascetismo objectivo, e permitiu atribuir à nossa condição humana uma origem supostamente mais nobre e relevante». Ruiz de la Peña escreveu uma obra importante, onde critica severamente o programa de redução biológica do humano de Monod, cuja conjugação acaso-necessidade evoca o motivo condutor do existencialismo (contingência-destino), mas não deu a devida atenção a uma tese de Monod enunciada nos parágrafos dedicados às duas fronteiras do desconhecido, a origem da vida e a emergência do sistema nervoso central do homem: «É de sugerir a hipótese de que a linguagem pôde aparecer graças à emergência de novas intercomunicações - não necessariamente muito complexas em si mesmas - num pré-hominídeo, dotado dum sistema nervoso pouco mais desenvolvido que o dos macacos superiores actuais. Porém, a linguagem, ao existir, forneceu um valor selectivo imensamente aumentado em capacidade de combinação e registo. Nesta hipótese, a aparição da linguagem poderia ter precedido, há muito tempo, a emergência do sistema nervoso central, próprio da espécie humana, e ter contribuído, de maneira decisiva, para a selecção das variantes mais aptas, capazes de utilizar todos os recursos (simbólicos da linguagem). Noutros termos: a linguagem criou o homem, mais que o homem a linguagem». Tal como está formulada, a hipótese de que a linguagem criou o homem é ateia, mas não é necessariamente idealista: o desvio de tendência idealista só se revela quando se analisa a relação orgânica existente entre a filosofia explícita de Monod e a sua FEC. Tanto numa como na outra, há uma tensão entre a tendência materialista, cujo núcleo derradeiro é o conhecimento científico e a sua prática, e a tendência idealista - o elemento 2 da FEC - que triunfa sem combate na exaltação da ética do conhecimento, dominando e investindo a tendência contrária. Aquilo que a filosofia explícita e a FEC de Monod têm em comum é uma filosofia idealista da ciência que Althusser explicitou sob a forma de uma sequência de igualdades transformadas: Emergência da noosfera: História = noosfera = reino do conhecimento objectivo = ética do conhecimento científico. Esta sequência assenta sobre duas igualdades: História = noosfera = ciência. Ou traduzindo por palavras simples e claras: a filosofia da ciência de Monod funda a extensão das categorias biológicas à noosfera, e, ao autorizar uma concepção biológica da noosfera, funda uma teoria idealista da história, que permite à exaltação da ética do conhecimento manter o seu lugar no seio da própria filosofia da ciência. A filosofia explícita de Monod comunica com a sua FEC através do operador filosófico noosfera: «Contudo, o curso destes acidentes só em última hipótese poderia conduzir, no seio da biosfera, à emergência de um novo reino, a noosfera, o reino das ideias e do conhecimento, nascido no dia em que as novas associações, as combinações criadoras realizadas num indivíduo poderão, transmitidas a outros, sobreviver-lhe. (...) A noosfera, por ser imaterial, povoada unicamente de estruturas abstractas, apresenta estreitas analogias com a biosfera, donde emergiu. Uma ideia transmissível constitui um ser autónomo (no sentido em que se fala dum ser matemático), dotado por si mesmo de emergência e de teleonomia, capaz de conservar-se, de ganhar em complexidade. Por conseguinte, objecto duma selecção, de que a cultura moderna é o produto actual, ainda em plena evolução. Talvez um dia um grande homem escreva, como no tempo de Darwin, uma "história natural da selecção de ideias". Podemos supor que as leis duma tal selecção sejam forçosamente muito complexas, já que a mesma actua a dois níveis, como sucede com uma espécie parasita. O proveito de uma ideia dependerá, em primeiro lugar, do seu poder de irrupção, ligado, sem dúvida, à sua própria estrutura, à sua capacidade de dominar ou de assimilar ideias, sem manter relação imediata com o valor selectivo desta ideia em relação ao homem ou ao grupo que a aceita. Uma espécie parasita desapareceria, se estivesse dotada duma virulência e duma transmissibilidade tal que eliminasse, infalivelmente, todos os representantes do seu "hóspede" de eleição. Tal como certas diferenciações extremas, primeiro fontes de sucesso, conduziram grupos inteiros à sua perda num contexto ecológico modificado (como ocorreu com os grandes répteis da era secundária), assim também vemos hoje que a extrema e soberba rigidez dogmática de certas religiões (tais como o islamismo, o catolicismo ou o marxismo), numa noosfera que não é já a nossa, torna-se hoje causa de fraqueza extrema que conduzirá, senão à sua desaparição, pelo menos a dilacerantes revisões». Althusser elogia o facto de Monod confessar que a sua filosofia da ciência é uma filosofia da história, para a qual, pelo menos desde o século XVIII, as ciências são a base e o motor da história. Monod reduz assim a história da humanidade à história dos conhecimentos científicos e das ideias científicas.

Monod escreveu O Acaso e a Necessidade, tendo conhecimento da crítica que Althusser tinha feito da sua lição inaugural no Colégio de França: «O facto de se conhecer hoje a estrutura do gene e o mecanismo da sua reprodução invariante não adianta em nada, porque a descrição que dele nos dá a biologia moderna é puramente mecanística. Trata-se, portanto, ainda no melhor dos casos, de uma concepção decorrente do "materialismo vulgar", como notou Althusser no seu severo comentário à minha lição inaugural no Colégio de França». W. Stegmüller lamentou as referências filosóficas da obra de Monod sobre a filosofia natural da biologia moderna, mas o seu neoformalismo vedou-lhe os olhos: a cegueira de Stegmüller é um mecanismo de filtragem que elimina tudo aquilo que não encaixe no âmbito estreito da lógica modal (Cf. G. E. Hughes & M. J. Cresswell, 1968). Monod soube escolher as referências filosóficas mais adequadas para a explicitação dos conteúdos filosóficos da sua própria filosofia. A presença de Althusser faz-se sentir da primeira à última página de O Acaso e a Necessidade, onde Monod parece ter assumido a tarefa de esbater as linhas de demarcação traçadas por Althusser entre biologia moderna, filosofia espontânea de cientista, filosofia e concepção do mundo. A sombra de Althusser paira sobre a filosofia explícita de Monod: ela permite-lhe explicitar sistematicamente aquilo que estava implícito na sua lição inaugural. Todos aqueles que leram os capítulos filosóficos da sua obra sem terem suspeitado dessa presença filosófica não os compreenderam na sua dimensão própria: Monod reforça o tom existencial das suas teses filosóficas à custa de uma crítica radical do marxismo, tanto da sua filosofia (materialismo dialéctico) como da sua ciência da história (materialismo histórico). Ora, esta crítica - levada a cabo em nome do socialismo de rosto humano, portanto do humanismo socialista, mais próximo de Fromm do que de Althusser - tem como alvo precisamente as teses fundamentais da Escola de Althusser - e como centro de apoio a "filosofia da história e da política" de Karl Popper: «A ética do conhecimento é, enfim, a meu ver, a única atitude simultaneamente racional e deliberadamente idealista sobre a qual poderia ser edificado um verdadeiro socialismo. Esse grande sonho do século XIX vive sempre, nas almas jovens, com uma intensidade dolorosa. Dolorosa por causa das traições sofridas por esse ideal e dos crimes cometidos em seu nome. É trágico, mas talvez fosse inevitável, que essa aspiração profunda só tenha encontrado a sua doutrina filosófica sob a forma de uma ideologia animista. É fácil ver que o profetismo historicista fundado no materialismo dialéctico vinha, desde os seus começos, carregado de todas as ameaças que, com efeito, se realizaram. Mais ainda, talvez, que os outros animismos, o materialismo histórico repousa sobre uma confusão total de categorias de valor e de conhecimento. Foi esta mesma confusão que lhe permitiu, num discurso profundamente inautêntico, proclamar que estabelecera "cientificamente" as leis da história, às quais o homem não teria outro recurso nem outro dever senão prestar obediência, ou desaparecer no nada». Esta mistura das gangas verbais de Popper e de Sartre levou Monod a assumir explicitamente os desvios de tendência apontados por Althusser: "materialista" no domínio da biosfera, Monod é "idealista" no domínio da noosfera. Ora, como vimos, o mecanicismo resulta de uma confusão total de categorias de valor e de conhecimento: Monod atribui à noosfera as categorias da biosfera. O belo gráfico de Althusser que mostra o cruzamento de dois núcleos irradiantes no pensamento de Monod - o núcleo materialista da ciência biológica e o núcleo idealista da concepção do mundo - pode ser traduzido num outro conceito que dá conta da exploração-dominação do elemento materialista pelo elemento idealista: ao generalizar a sua filosofia propriamente filosófica, fazendo dela um sistema integral do mundo quase-hegeliano, Monod expõe uma totalidade fora da qual já não há nada. Ora, ao proceder deste modo, absolutizando o conhecimento científico frente a todos os seus conteúdos diferenciais e volatilizando o conteúdo em pensamentos, a filosofia de Monod é sempre-já idealista antes de argumentar a favor do idealismo como fúria

4. A concepção do mundo (CDM). Althusser tinha a obrigação filosófica de ter explicitado melhor o conceito de concepção do mundo, cuja arqueologia foi esclarecida por W. Dilthey, Karl Jaspers ou mesmo M. Heidegger, para já não falar dos filósofos marxistas (Lukács, Goldmann e Marcuse, por exemplo). Uma concepção do mundo distingue-se da filosofia pelo facto de nunca estar centrada sobre a ciência: ela centra-se sobre os valores das ideologias práticas, exprimindo as tendências que as atravessam. A concepção do mundo está sempre em contacto com as questões que pertencem ao domínio das ideologias práticas, tais como problemas da religião, da moral, do direito, da política e problema do sentido da história e da salvação da história humana. Toda a concepção do mundo exprime - directa ou indirectamente - uma tendência de carácter político. O problema da alienação do mundo moderno e da sua salvação está no centro da concepção do mundo de Monod: «A alienação do homem moderno perante a cultura científica, - que, contudo, determina o seu universo - revela-se aliás sob formas diferentes das que expressa o ingénuo horror de Verlaine: ("Irmãos, soltai a Ciência gulosa. Que quer voar para lá das aparências proibitivas, em busca do fruto amargo, que procura conhecer"). Vejo neste dualismo um dos mais profundos males de que sofrem as sociedades modernas, causa de desequilíbrios tão graves, que ameaçam actualmente a realização do grande sonho do século XIX: a emergência futura duma sociedade, não mais construída sobre o homem, mas por ele». A alienação do mundo moderno ameaça o grande sonho socialista abraçado por Monod. Monod define a alienação como um dualismo entre a ciência e a cultura científica que criaram o mundo moderno, e os valores tradicionais: «Encontramo-nos pois perante a seguinte contradição: as sociedades modernas vivem, asseguram, pregam ainda - sem de resto acreditar nisso - sistemas de valores, cujos fundamentos estão em ruínas; entretanto, empurradas pela ciência, nessas sociedades emerge - a miúdo e duma forma implícita - sugerida por um número reduzido de homens, uma ética do conhecimento, que elas explicitamente ignoram. Eis aqui a própria raiz da alienação moderna». A contradição que está na base da alienação moderna é uma dupla contradição: por um lado, contradição entre a ciência moderna e os valores tradicionais arruinados, e, por outro, contradição entre a ciência moderna e a ignorância em que os homens estão, de que a ciência e a sua prática implicam uma verdadeira ética do conhecimento. Nesta dupla contradição, descobrimos não só a raiz profunda da mais grave alienação do mundo moderno, mas também o meio de salvação, contido na ética do conhecimento. A teoria da alienação do mundo moderno proposta por Monod contém uma teoria da história, mais precisamente uma filosofia da história, e uma política. Segundo Monod, a história da humanidade articula duas ordens de coisas: a ordem do conhecimento científico e a ordem da praxis. Mas o específico do homem, que fez dele um ser social e histórico e que constitui a noosfera, é a linguagem e o conhecimento científico, que dela emergiu num certo momento: «Bem gostaríamos de conhecer o futuro e a sorte da ideia que com mais força emergiu da noosfera; a ideia do conhecimento objectivo, definida a partir unicamente do confronto sistemático da lógica e da experiência. A própria história desta ideia é obscura. Certamente deve ser tão antiga como o próprio homem; nenhum indivíduo, nenhuma sociedade poderiam ter sobrevivido, se não a tivessem posto em prática. Por estar tão profundamente arraigada na praxis é que esta noção (de emergência) tem sido tão difícil e tão lenta. Pode assim explicar-se que muitas civilizações importantes, como a chinesa, não tenham avançado, enquanto que a Europa Ocidental gastou mais de dois mil anos desde os pré-socráticos a Galileu e Descartes, para preparar a chegada da Ciência moderna. Trata-se pois duma ideia que, pela sua própria simplicidade, pela sua aparente falta de brilho, está quase desprovida de poder de irrupção, e assim se vê totalmente desarmada ante as noções, ricas em conteúdo ético, que pretendem trazer uma solução ao problema da condição humana. Se, em definitivo, contra ventos e marés, esta ideia chegou a impor-se, foi exclusivamente em função do seu valor selectivo ao segundo nível: da praxis, do imenso poder que se oferecia aos homens. Tal ideia impunha-se, criava o mundo moderno, não tinha sido eleita por e para si mesma; ela não é ainda hoje universal, e a angústia dos abismos pascalianos, que a sua luz revela, está mais presente que nunca». No mundo moderno, a ciência constitui a base da história, como se fosse a actividade do cientista que cria o mundo histórico, e a sua alienação pode ser "curada" pela ética do conhecimento. Ora, se a base do mundo moderno é a ciência e se o motor da salvação da história é a ética do conhecimento, então a política adequada para eliminar a dupla contradição só pode ser uma política de educação, de difusão e de propaganda moral. Monod não vacila quando opta por uma certa moral, da qual espera efeitos políticos, incluindo a esperança da chegada do socialismo. Há dois aspectos a destacar na concepção do mundo de Monod: a unidade interna entre a filosofia e a política (1) e o seu distanciamento crítico em relação a outras concepções do mundo (2), nomeadamente a CDM de Chardin e a CDM marxista. Monod procede como se fosse um filósofo profissional: ele define a sua concepção do mundo, opondo-a a outras concepções do mundo. Contra a CDM religiosa de Chardin, Monod defende que não são os valores religiosos que podem salvar o mundo: o que pode salvar o mundo é uma nova moral, uma moral ateia e ascética, fundada sobre o conhecimento científico. Contra a CDM marxista, Monod defende que o motor da história não é a luta de classes, mas sim o desenvolvimento do conhecimento objectivo e dos seus valores próprios. Monod não se distancia de Chardin e de Marx do mesmo modo: a sua CDM distingue-se da CDM religiosa de Chardin lutando abertamente contra ela, para a suprimir: a moral religiosa de Chardin, cujos fundamentos estão em ruínas, é nefasta e perigosa para o futuro. É certo que também luta contra a CDM marxista, mas nesta luta não a quer suprimir, porque não renuncia ao sonho socialista que ela encarna. Mas o facto de não querer suprimir a CDM marxista não pode ser usado para encobrir uma profunda divergência de concepção que incide sobre o papel da moral na história. Do ponto de vista do conteúdo real das suas teses teóricas, Monod está mais próximo de Chardin do que de Marx: Monod combate ferozmente a CDM religiosa de Chardin, opondo-lhe a ética do conhecimento, ateia e ascética, mas sem pôr em causa a validade da moral como motor da história. Ora, esta ideia da moral como motor da história que o aproxima de Chardin afasta-o à velocidade da luz de Marx, para quem o motor da história é a luta de classes e não a moral. Tenho dificuldade em reduzir a ética marxista a uma única expressão, mas, se aceitarmos a expressão "ética política" avançada por Althusser, somos forçados a reconhecer o primado da política sobre a ética, isto é, o primado dos valores políticos sobre os valores éticos, entendendo por política a luta de classes. A CDM de Monod estabelece contacto com a sua filosofia através da ética do conhecimento científico. A filosofia explícita de Monod é uma "filosofia da ciência" e a sua CDM é uma "moral científica": aquilo que têm em comum é precisamente a ciência, a actividade de Monod que está no centro da sua FEC. A disposição gráfica destas quatro personagens do teatro de Althusser revela a existência de dois núcleos irradiantes, centros de tendências opostas: uma tendência materialista irradiante a partir do núcleo material-objectivo da prática científica e da própria ciência biológica (núcleo 1), e uma tendência idealista irradiante a partir das tomadas de posição ideológicas de Monod, em face dos «valores» implicados nos problemas sociais que dividem o mundo moderno (núcleo 2). A FEC e a filosofia e a CDM de Monod são, em virtude da proximidade de cada um destes núcleos, «compromissos entre estas duas tendências» irradiantes que se afrontam abertamente na FEC, no seio da qual o elemento idealista explora e domina o elemento materialista: varrida da biosfera, a metafísica idealista e espiritualista de Chardin é conservada com força acrescida no domínio da noosfera, donde tenta recuperar o terreno perdido. A teoria idealista da história de Monod não deriva apenas da biologia metafísica de Chardin, como pensa Althusser, mas também da concepção popperiana da passagem das sociedades fechadas às sociedades abertas: Monod admirava de tal modo a epistemologia crítica do conhecimento objectivo de Popper que o tratava por "Sir" nas conferências em que ambos participavam. Mas esta admiração - aliás recíproca - não pode encobrir o fosso que separa Monod de Popper: o futuro do socialismo inquietava de tal modo Monod que ele não podia abraçar o optimismo doentio de Popper. Apesar do seu carácter idealista, a concepção da história e da política de Monod continua a merecer a nossa atenção. Monod desenvolve mais tarde a sua teoria da alienação moderna no seu livro O Acaso e a Necessidade, onde destaca a passagem do animismo ao conhecimento científico, dando-lhe uma moldura histórica universal. Monod abraçou uma certa ideia de socialismo, mas, tal como a restante esquerda francesa, trocou Marx por Nietzsche via Heidegger. Mal ele sabia que esta substituição teria consequências nefastas para o futuro das sociedades europeias. A ordem moral do mundo ou, mais precisamente, a ordem das micro-lógicas super-estruturais da política, colocada no centro do debate filosófico, eclipsou a ordem económica do mundo, descoberta por Marx: Nietzsche funcionou como um aliado do neoliberalismo no seu devir-global. O neoliberalismo triunfou à escala global porque a Esquerda se alienou do seu património histórico e teórico, trocando-o por uma tradição adversária que trouxe para o seu seio os germes da sua própria auto-liquidação. A distinção entre materialismo e idealismo é clara: o idealismo é a crença de que são as ideias que conduzem o mundo, enquanto o materialismo marxista é a crença de que o motor da história reside na luta de classes, inscrita em três frentes: económica, ideológica e política, sendo dada prioridade à luta política. (Se pensarmos que a fronteira da fome já chegou à Europa, pelo menos à Europa do Sul, como não se cansa de dizer Adriano Moreira, compreendemos que a melhor aliada da luta contra à fome é precisamente a filosofia materialista: o materialismo pode ser visto como a filosofia que nasce do impulso da fome. Mas esta linha de pensamento não é estranha a quem conheça a filosofia de Ernst Bloch.) A visão da história como confronto entre teorias animistas e teorias científicas ou, o que equivale ao mesmo, como confronto entre sistemas de valores religiosos e científicos, é uma concepção idealista da história, que, em Portugal, teve eco paradoxal na obra de José Saramago: «A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele» (Caim). A luta inglória e estúpida contra Deus não ajuda a construir um mundo melhor; pelo contrário, aliena os homens da verdadeira luta contra o capital que fez do mundo global a sua "pátria". O "comunismo" de José Saramago - portanto, a sua concepção do mundo - foi envenenado pela filosofia reaccionária de Nietzsche, a qual já tinha feito estragos na CDM de Monod, cuja lição termina com esta questão existencial que poderia satisfazer tanto Nietzsche como Sartre: «Que ideal propor aos homens de hoje, que não esteja por cima e para além deles, não sendo a reconquista, através do conhecimento, do nada que eles próprios descobriram?».

J Francisco Saraiva de Sousa

17 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Preciso de uma pausa!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Estou a fazer um esforço para conservar separados o filósofo e o cientista quando a minha vontade é não distinguir entre ambos. E neste esforço descobri outra distinção que ainda não sei se vou aflorar aqui.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

É preciso ter paciência com os alemães: um amigo alemão chamou a minha atenção para a superioridade da teoria de Eigen sobre a origem da vida em relação à de Monod. Eigen é, claro, alemão! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

É preciso ter paciência com os alemães: um amigo alemão chamou a minha atenção para a superioridade da teoria de Eigen sobre a origem da vida em relação à de Monod. Eigen é, claro, alemão! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, o que posso dizer? Monod erra quando trata da relação entre vida e termodinâmica. É evidente, salta à vista, mas não tinha intenção de entrar nesta questão. Isto devia ser um texto suave, não artilharia alemã. Mas vou pensar...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Vamos esclarecer as coisas por pontos:

1. Sou o primeiro a reconhecer que a minha cultura filosófica é predominantemente alemã. A Filosofia fala alemão - depois de ter falado grego. Ponto inquestionável.

2. Reconheço que a aliança ciência/filosofia é mais forte na Alemanha do que em qualquer outro país ocidental. A cultura filosófica de um cientista alemão é superior à de qualquer outro cientista europeu.

3. Reconheço todas as dificuldades da teoria da evolução. E conheço bem as tradições "subterrâneas" da ciência da Europa central.

4. Sei que Monod foi buscar o título da sua obra a Demócrito sem ter suspeitado da existência da lógica modal. Cultura filosófica frágil? Talvez..., mas isso não impede um autor de ser original.

5. Sei que os capítulos de Monod sobre actividade enzimática não são claros, mas acho que o seu objectivo nunca foi fazer uma exposição da biologia molecular.

6. Reconheço que é preciso fazer uma exposição filosófica clara da biologia molecular e da evolução.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, mas estamos de acordo no fundamental: a necessidade de pensar filosoficamente as ciências e a estranha sensação de que tudo nos foge das mãos. Estaremos esgotados?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ok, sei que escrevi uma frase polémica dizendo que não é polémica. Mas para mostrar a fragilidade do conhecimento é preciso introduzir variações de ritmo no discurso... Caso contrário, ficamos bloqueados!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A verdade é esta: desconhecemos a solução dos problemas fundamentais e, quanto tentamos clarificá-los, introduzimos conceitos estranhos para adiar a sua solução sem questionar a materialidade brutal do mundo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ai, acho que preciso de nova pausa: está calor e, de repente, fiquei com fome, o impulso primordial da vida: comer em vez de ser comido! :-)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hmmmm... está a ser complicado concluir este estudo, porque sou obrigado a limitar a minha voz para não abafar a voz de Monod. O meu impulso filosófico e científico poderia apagar Monod: auto-controle, disciplina conceptual, rigor. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Gosto destes exercícios-limite para me disciplinar: entregar-me completamente ao pensamento do outro, reservando para mim uma actividade enzimática - de enzima alostéria que regula as vias do metabolismo intermediário. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mas a actividade do eu-enzima faz mais estragos - no bom sentido - do que a actividade do eu-proteína estrutural. :-)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Infelizmente, ainda tenho que ir comprar o meu jantar, estou a ficar sem tempo e isso deixa-me com stress. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Dois aforismos que partilhei no facebook:

1. A Europa e o Ocidente estão de tal modo decadentes que a única forma de ganhar dinheiro consiste em vender o corpo, tanto nos palcos reais da vida como nos nichos virtuais. Os jovens alienam-se facilmente no mundo virtual porque estão desocupados, mental e materialmente: o vício sexual é já um sintoma da crise ocidental. Um aspecto curioso é o facto da decadência cultural liquidificar as barreiras sexuais: o sexo perdeu solidez...

2. Infelizmente, quando criou os portugueses, Deus esqueceu-se de lhes dar inteligência: a alienação dos portugueses é uma constante na história de Portugal. Os portugueses poderiam ter todo o tempo do mundo ao seu dispor que não mudavam nada: a luta por uma vida justa não está inscrita no seu genoma.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, já só falta concluir a FEC, o que falta da ciência é muitíssimo pouco, mais uma clarificação que uma exposição das proteínas.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Está finalmente concluído! :)