domingo, 22 de abril de 2012

A Filosofia segundo Wittgenstein

Ludwig Wittgenstein
«O método correcto da Filosofia seria o seguinte: só dizer o que pode ser dito, isto é, as proposições das ciências naturais - e portanto sem nada que ver com a Filosofia - e depois, quando alguém quisesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que nas suas proposições existem sinais aos quais não foram dados uma denotação. A esta pessoa o método pareceria ser frustrante - uma vez que não sentiria que lhe estávamos a ensinar Filosofia - mas este seria o único método estritamente correcto. /As minhas proposições são elucidativas pelo facto de que aquele que as compreende as reconhece afinal como falhas de sentido, quando por elas se elevou para lá delas. (Tem que, por assim dizer, deitar fora a escada, depois de ter subido por ela.) /Tem que transcender estas proposições; depois vê o mundo direito. /Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em silêncio.» (L. Wittgenstein)

No espaço de língua oficial portuguesa, muitos são os que invocam o nome de Wittgenstein, mas poucos são os que leram a sua obra e a compreenderam. O texto que aparece em epígrafe foi sacado de uma tradução portuguesa do Tratado Lógico-Filosófico de Wittgenstein: reparem que os dois últimos parágrafos estão traduzidos de um modo grosseiro que dificulta a compreensão elegante das frases originais de Wittgenstein, como se o tradutor se tivesse posicionado logo à partida diante de um enigma indecifrável. Ora, a linguagem de Wittgenstein é simples e perfeitamente inteligível: ele não foi um filósofo "obscuro" como Heraclito ou Hegel. Os utentes da língua portuguesa têm o terrível hábito de tornar obscuro aquilo que é transparente, mas nós já sabemos que esse hábito resulta da sua impreparação para a Filosofia, que, no caso brasileiro, tende a ser agravada pelo empobrecimento da própria língua. A Filosofia só pode ser dita e pensada numa língua dotada de uma gramática precisa e de uma ortografia que não permita equívocos. (Abaixo o Acordo Ortográfico!) Quem não domina plenamente a língua materna não pode compreender qualquer outra língua e muito menos traduzi-la para a sua própria língua: o resultado fatal desta mediocridade linguística são as más traduções que enchem as nossas livrarias. A indigência cognitiva e mental começa com a regressão linguística: os utentes da língua portuguesa são utentes medíocres, incapazes de falar sobre aquilo que pode ser dito e pensado na sua língua. A Filosofia é precisamente o contrário daquilo que Wittgenstein pensa ser: a Filosofia é o esforço de dizer aquilo que aparentemente não pode ser dito. A Filosofia nunca se cala. Todo o silêncio filosófico é cúmplice do mal-existenteeis a tese que pretendo opor à concepção de Wittgenstein. 

Como é evidente, para expor a concepção de Filosofia de Wittgenstein, seria necessário abordar toda a sua filosofia, em especial as temáticas da certeza, do mundo, do sujeito, da duplicação da realidade, da temporalidade, da linguagem, da compreensão, do complexo e coisa, do significado como jogo de linguagem, das regras, da exactidão e inexactidão, da gramática e lógica, do dado, enfim da vontade, religião e ética, levando em conta o desenvolvimento do seu pensamento filosófico. De momento, para avançar, sou obrigado a deixar esse estudo mais exaustivo para uma outra oportunidade, provavelmente quando resolver confrontar Wittgenstein com Althusser, um exercício que já levei a cabo num seminário: ambos encaram a Filosofia como uma actividade: «A Filosofia não é uma ciência da natureza. (...) O objectivo da Filosofia é a clarificação lógica dos pensamentos. A Filosofia não é uma doutrina, mas uma actividade. Um trabalho filosófico consiste essencialmente em elucidações (conceptuais). O resultado da Filosofia não é "proposições filosóficas", mas o esclarecimento de proposições (científicas). A Filosofia deve tornar claros e delimitar rigorosamente os pensamentos, que doutro modo são como que turvos e vagos» (Wittgenstein). Karl Popper escreveu um texto - How I see Philosophy - onde ataca esta concepção da Filosofia como actividade: o alvo da sua crítica foi a concepção de Friedrich Waismann e, por seu intermédio, a concepção de Wittgenstein e do Círculo de Viena. O texto de Popper assume a forma de uma apologia pro vita sua, isto é, de uma defesa da sua existência, cujo modelo se encontra na Apologia de Sócrates de Platão. Também Merleau-Ponty fez o seu Elogio da Filosofia, Heidegger elaborou o seu texto Qu'est-ce que la Philosophie? e Adorno escreveu a sua Justificação da Filosofia: a Filosofia precisa de fazer a sua própria apologia sempre que as épocas não sejam favoráveis ao seu sangue vital, a crítica. A necessidade deste exercício de defesa da sua existência mostra que a Filosofia incomoda o poder instituído na sociedade, e incomoda-o porque tenta dizer a verdade que o poder oculta: a Filosofia diz aquilo que o poder não quer que seja dito. Wittgenstein preocupou-se mais com a relação entre filosofia e ciências do que com a relação entre filosofia e política: Lenine ensinou-nos que a Filosofia se define por um duplo vínculo, o vínculo com as ciências (ponto nodal nº 1 de Althusser) e o vínculo com a política (ponto nodal nº 2 de Althusser). Ao contrário da ciência que une sem dividir, a Filosofia divide e só pode unir dividindo. Sabemos o que isso significa para a filosofia de Lenine: a Filosofia é, em última instância, luta de classes na teoria. Ora, dado que representa a política na instância das ciências, «a Filosofia não se explica pela simples relação que mantém com as ciências» (Althusser): eis aqui a divergência fundamental entre as posições de Lenine e as de Wittgenstein, aliás evidenciada na sugestão de Lenine sobre como analisar adequadamente "este copo de água" sobre a mesa, de modo a descobrir a história na fala quotidiana - a linguagem diária de Wittgenstein - como uma dimensão oculta de significado. No entanto, apesar do apego do segundo Wittgenstein ao uso comum da linguagem, a leitura aprofundada da sua obra permite descobrir uma concepção similar de Filosofia como prática filosófica, da qual me distancio através de uma inversão completa das posições filosóficas em relação às ciências. Para expor essa inversão seria obrigado a fazer a minha própria defesa da Filosofia, tarefa que está fora do âmbito deste texto. Em vez disso, vou recriar os textos de Wittgenstein, acampanhando-os a par e passo, de modo a subverter de dentro a sua própria concepção da Filosofia.

Diz Wittgenstein que o homem tem o impulso de investir contra os limites da linguagem: «Lutamos com a linguagem. Estamos envolvidos numa luta com a linguagem» (1931). As raízes do filosofar fundam-se neste impulso, mediante o qual o homem procura ir mais além da linguagem, dizendo o que não pode ser dito. Este investimento contra os limites da linguagem manifesta-se no espanto. Não há nada mais auto-evidente do que o facto de que eu sou e de que o mundo é, e, no entanto, espanto-me com a existência do mundo ou mesmo quando me ouço a falar. O espanto não é uma pergunta, nem tão-pouco pode expressar-se em forma de pergunta, porque não há resposta para ele. O espanto mostra o limite. Todas as filosofias são extremamente complicadas quando procuram dar uma resposta à pergunta O que nos faz pensar? Wittgenstein retoma o espanto admirativo - algo que é sofrido - não tanto como ponto de partida do pensar, como sucede na filosofia grega, mas sobretudo como o mostrar o limite: «Os resultados da Filosofia são a descoberta da simples falta de sentido e das bolhas feitas pelo intelecto ao chocar com as fronteiras da linguagem. Elas, as bolhas, levam-nos a reconhecer o valor daquela descoberta. (...) Qual é a tua meta na Filosofia? Mostrar à mosca o caminho para sair do caça-moscas». O objectivo da Filosofia é, pois, eliminar mal-entendidos e ensinar saídas. O pensamento filosófico de Wittgenstein é atravessado por uma ruptura epistemológica, a qual, sendo preparada por um período de transição, durante o qual Wittgenstein realizou uma revisão radical da análise da linguagem como imagem da realidade, substitui a teoria da linguagem do Tratado Lógico-Filosófico por uma nova teoria da linguagem explicitada nas Investigações Filosóficas, cujo conceito-chave é o de que o significado de uma palavra ou de uma proposição é o seu uso na linguagem. Porém, esta ruptura não foi total, nem sequer foi uma abertura total a novos horizontes de significatividade linguística, na medida em que não envolveu o conceito da sua própria filosofia, elaborado em oposição à filosofia tradicional, caracterizada como essencialista e metafísica: a tarefa e o método da filosofia não foram abrangidos por esta ruptura. O Tratado Lógico-Filosófico acusa enfaticamente a filosofia tradicional de estar repleta de confusões conceptuais, afirmando que as proposições filosóficas carecem de sentido. Por isso, a tarefa da sua filosofia não é criar conteúdos filosóficos (doutrinas, teorias), mas clarificar e delimitar os pensamentos que podem ser ditos na linguagem significativa: a linguagem da filosofia tradicional está de tal modo doente que os seus problemas «surgem de uma má interpretação das nossas formas linguísticas» e de analogias equivocadas. E, para superar este estado de confusão mental, é necessário reconduzir «as palavras do seu uso metafísico (essencialismo) ao seu uso quotidiano (na linguagem ordinária)». Para Wittgenstein, os problemas filosóficos são pseudo-problemas, mais precisamente estados patológicos que surgem do encantamento da mente humana. A filosofia de Wittgenstein propõe-se lutar contra este encantamento ou enfeitiçamento, através da análise linguística. Ela é, portanto, uma terapia e a sua função é combater os problemas que carecem de sentido, não com o objectivo de os resolver, mas sim com o objectivo de os eliminar: «A linguagem arma a todos as mesmas ratoeiras: é uma imensa rede de caminhos transviados facilmente acessíveis. E assim vemos os homens, um após outro, a andar pelos mesmos caminhos e já sabemos onde é que tomarão um desvio, onde continuarão a andar em frente sem reparar na bifurcação, etc. etc. O que tenho de fazer é, portanto, erigir postes de sinalização em todas as bifurcações em que há caminhos errados, de modo a ajudar as pessoas perto dos locais perigosos» (1931). A tarefa da nova filosofia do primeiro e do segundo Wittgenstein é fundamentalmente a mesma, embora a sua crítica da filosofia tradicional tenha sido radicalizada no decurso do segundo período. Wittgenstein recusou sempre em todos os seus textos, mesmo nos textos anteriores ao Tratado, o domínio do meta-descritivo, que ele identifica com o domínio metafísico, como se ambos fossem o mesmo domínio. Em 1913, o jovem-Wittgenstein já dizia que «não há deduções em filosofia; a filosofia é puramente descritiva»: o método da sua filosofia é sempre descrever e tão-somente descrever, eliminando o que há de metafísico nos conteúdos da filosofia. A sua análise da linguagem pretende tão-somente fazer desaparecer os problemas filosóficos fazendo ver que são pseudo-problemas, para os quais não há respostas dentro dos limites da linguagem significativa. A descrição analítica da linguagem é o único método correcto de fazer e de praticar filosofia, porque, sem ele, recaímos na enfermidade da linguagem que a descrição analítica quer curar. A fuga à descrição implica sempre a renúncia à luta contra o encantamento patológico, do qual surgem os pseudo-problemas, porque somente com a descrição podemos eliminá-los e descobrir que não são verdadeiros problemas: «E não devemos produzir nenhuma espécie de teoria. Na nossa investigação não deve haver nada de hipotético. Toda a explicação tem que acabar e ser substituída apenas pela descrição. E esta descrição recebe a sua luz, isto é, a sua finalidade, dos problemas filosóficos. É claro que estes não são problemas empíricos, a sua solução estará antes no conhecimento do modo como a nossa linguagem funciona, de maneira a que de facto este modo seja reconhecido - apesar de um instinto para o não compreender. Estes problemas serão resolvidos não pela adução de novas experiências, mas pela compilação do que é há muito conhecido. A Filosofia é um combate contra o embruxamento do intelecto pelos meios da nossa linguagem. (...) De nenhuma maneira deve a Filosofia tocar no uso real da linguagem; só o pode enfim descrever. (...) A Filosofia, de facto, apenas apresenta as coisas e nada esclarece nem nada deduz. E uma vez que tudo está à vista, também nada há a esclarecer. Porque aquilo que está oculto, não nos interessa». A análise linguística do segundo Wittgenstein, as suas engenhosas perguntas e as suas brilhantes reflexões, não ultrapassam o âmbito da descrição, procurando pacientemente os possíveis significados - ou não-significados - das palavras, das questões e das proposições nos seus diversos usos em função dos variados contextos e circunstâncias, dentro de novos jogos de linguagem, e vendo-os em todas as suas facetas conforme o seu lema: «não penses, olha!» Estas análises terminam geralmente com uma nova interrogação que põe em questão tudo o que disse ao longo do exame do sentido da palavra ou da proposição. Se o primeiro Wittgenstein fazia afirmações, enunciando teses, o segundo Wittgenstein prefere colocar perguntas ou questões, satisfazendo-se mais com a busca de novos caminhos do que com as respostas. No entanto, ao reduzir o seu método filosófico à descrição, Wittgenstein estreitou logicamente o conteúdo da sua filosofia: o campo das suas questões filosóficas fica demasiado limitado ao descritível, o que o leva a ficar calado sobre as questões fundamentais do homem que ultrapassam o âmbito do fenoménico. É certo que o Tratado tinha referido algumas dessas questões - ética, sentido da vida, Deus, etc. -, mas fê-lo remetendo-as ao inexprimível na linguagem significativa e qualificando-as como tentativas desesperadas do investimento humano contra os limites da linguagem. O segundo Wittgenstein reconhece o carácter auto-mutilante da sua filosofia: «Donde provem a importância da nossa investigação (filosófica), uma vez que ela parece destruir tudo o que é interessante, isto é, tudo o que é grande e importante? (Como todos os trabalhos de construção, que só deixam atrás de si algumas pedras e lixo!) Mas só destruímos castelos no ar, libertando o terreno da linguagem em que assentavam». Wittgenstein descarta-se do interessante, grande e importante, dizendo que essas questões não fazem parte do campo do exprimível da linguagem significativa. O místico - a sua realidade, a sua vivência da experiência do limite como tal e a sua inefabilidade - que tinha ocupado um lugar importante no Tratado, desaparece completamente nos textos de transição e na sua última obra. É certo que o homem Wittgenstein confessa a sua nostalgia da fé perdida ao seu amigo Engelmann, mas o filósofo Wittgenstein não altera substancialmente a sua perspectiva filosófica. A diferença entre os limites da linguagem significativa no primeiro e no segundo Wittgenstein pode ser formulada de maneira precisa: o primeiro afirma que só são significativas as proposições das ciências naturais; o segundo diz que só são significativas as proposições descritivas de todas as ciências humanas e da linguagem diária, bastando pensar nas observações sobre O Ramo Dourado de James Frazer. O primeiro Wittgenstein coloca a fronteira da linguagem significativa no metafísico, afirmando que «a totalidade das proposições verdadeiras é toda a ciência natural (ou a totalidade das ciências da natureza)», cabendo à Filosofia a tarefa de «delimitar o que é pensável, do interior, através do pensável». O segundo Wittgenstein põe a fronteira da linguagem significativa no meta-descritivo, cuja fronteira é a mesma do metafísico. Apesar da fronteira imposta pelas ciências da natureza ter sido ampliada, até incluir o campo das ciências humanas e da linguagem ordinária, a fronteira constituída pelo descritivo deixa intacta a fronteira do metafísico. Wittgenstein justifica o seu método filosófico pelos seus resultados: denunciar e eliminar os pseudo-problemas do meta-descritivo, reconduzindo-os ao seu uso na linguagem ordinária, a matriz de toda a linguagem significativa. Os resultados da investigação filosófica de Wittgenstein não são tão "magros" como se pensa: os seus textos póstumos permitem esboçar uma concepção do homem - uma "solução" para a questão do homem - que se situa para lá da experiência e da verificabilidade empíricas. Além disso, Wittgenstein não foi um admirador incondicional da ciência: «As questões científicas podem interessar-me, mas de facto nunca me prendem. Isso só acontece com questões conceptuais e estéticas. No fundo, é-me indiferente a solução dos problemas científicos; mas não a de problemas de outra espécie» (1949). As Investigações Filosóficas dão conta de uma outra faceta da ampliação da fronteira, a do pluralismo dos métodos e das terapias: «Não há um método mas há na Filosofia, de facto, métodos, tal como há diversas terapias». O que devemos questionar na filosofia de Wittgenstein é o facto da recondução das questões fundamentais ao seu uso real na linguagem comum obrigar a Filosofia a deixar «tudo ser como é»: «O filósofo é quem tem de curar em si mesmo muitas doenças do intelecto, antes de poder aceder às noções do senso-comum» (1944). Este elemento ideológico que se abriga no seio da filosofia de Wittgenstein foi denunciado por Marcuse, que viu nas suas declarações mais enfáticas a exibição de um sadomasoquismo académico, de uma auto-humilhação e de uma auto-denúncia do intelectual cujo trabalho não repousa nos logros científicos e técnicos: «Através de todas as obras dos analistas da linguagem encontra-se esta familiaridade com o homem comum, cuja maneira de falar desempenha um papel fundamental na filosofia linguística. A simplicidade da palavra é essencial enquanto exclui desde o início o vocabulário intelectual da "metafísica"; milita contra o não-conformismo inteligente, ridiculariza o intelectual "cabeça de ovo". A linguagem de Fulano e de Sicrano é a linguagem que o homem da rua verdadeiramente fala; é a linguagem que expressa o seu comportamento; é, portanto, o signo da concreção. Contudo, é também o signo de uma falsa concreção. A linguagem que fornece a maior parte do material para a análise é uma linguagem purgada não apenas do seu vocabulário "não-ortodoxo", mas também dos meios de expressar quaisquer outros conteúdos que não sejam fornecidos aos indivíduos pela sua sociedade. A análise linguística descobre esta linguagem purgada como um facto real e usa esta linguagem empobrecida tal como a encontra, isolando-a daquilo que não está nela expresso, embora entre no universo estabelecido do discurso como um elemento e um factor do seu significado. Rendendo homenagem à variedade dominante de significados e usos, ao poder e ao senso-comum da fala ordinária, enquanto bloqueia (como material estranho) a análise do que essa fala (quotidiana) diz sobre a sociedade que a fala, a filosofia linguística suprime uma vez mais o que é continuamente suprimido neste universo do discurso e do comportamento. A autoridade da filosofia dá a sua bênção às forças que fazem este universo. A análise linguística abstrai-se do que a linguagem ordinária revela ao falar como fala: a mutilação do homem e da natureza». O confronto das perspectivas de Gramsci e de Wittgenstein sobre o senso-comum ajudaria a clarificar esta crítica de Marcuse e, sobretudo, a definir a especificidade da linguagem filosófica por oposição à linguagem quotidiana de Fulano, Sicrano e Beltrano. (Adorno elucidou a linguagem filosófica ou, como lhe chamou, a terminologia filosófica naquele que foi o seu derradeiro curso de iniciação à Filosofia para estudantes graduados.) No seu esforço contínuo de dizer o que não pode ser dito, dentro dos limites do discurso do poder instituído, a Filosofia recusa reduzir a sua linguagem ao seu uso humilde e comum: o programa de Wittgenstein de redução masoquista da linguagem ao uso comum é-lhe absolutamente estranho. A Filosofia recusa comprometer-se, em todos os seus conceitos, com o estado de coisas estabelecido: o seu grande compromisso é com a possibilidade de uma nova experiência, precisamente aquela experiência que não pode ser dita dentro dos limites do discurso dominante.

obsessão pela linguagem de Wittgenstein deve ser compreendida num contexto mais amplo, onde a filosofia continental - filosofia existencialista, fenomenologia, ontologia fundamental, teoria crítica, marxismo, hermenêutica, crítica da ideologia - se cruza com a filosofia anglo-saxónica - filosofia analítica, positivismo lógico, semântica. Esta oposição espiritual que expressa oposições relacionadas à mentalidade humana, em especial à mentalidade nacional, além das oposições de orientação objectiva e metódica do pensamento, pode ser ilustrada por meio de uma geografia cultural: de um lado, o território de predominância teuto-francesa, com irradiações na Europa Meridional e na América Latina, e, do outro lado, o território de predominância anglo-saxónica, com irradiações na Escandinávia. O empreendimento heideggeriano do desdobramento da metafísica em técnica choca frontalmente com o carácter progressista da filosofia anglo-saxónica, traduzindo o ressentimento humanista das culturas latinas contra a predominância da civilização tecnológica. Karl-Otto Apel realizou uma análise interessante do cruzamento entre estas duas grandes tradições do pensamento ocidental, através do confronto-relação-aproximação entre Heidegger e Wittgenstein, estabelecendo como ponto comum o questionamento da metafísica ocidental enquanto ciência teórica: a desconstrução da metafísica foi levada a cabo por Heidegger a partir do esquecimento do Ser, isto é, da auto-alienação da "ek-sistência" humana que não compreende verdadeiramente o seu anseio mais próprio, o Ser, sucumbindo à visão do ente com o qual se confronta intramundanamente, e por Wittgenstein a partir da auto-alienação da linguagem, cuja verdadeira função foi esquecida pela filosofia. Ora, estas duas desconstruções da metafísica foram precedidas pela desconstrução de Marx, cuja crítica da metafísica tradicional tem como ponto de partida uma suspeita fundamental: a suspeita ideológica de Marx contra a metafísica que antecedeu - possibilitando-a - a suspeita wittgensteiniana da falta de sentido e a suspeita heideggeriana do esquecimento do ser. (A leitura de Kostas Axelos de Marx como pensador da técnica aproxima-o de Heidegger: uma obra brilhante eclipsada pelo pensamento frouxo neoliberal.) A ponta de lança da obsessão da filosofia pela linguagem foi, sem dúvida, a filosofia anglo-saxónica, logo a partir do empirismo e do nominalismo de John Locke e David Hume: «Estamos convencidos de que a filosofia não está em condições de rivalizar directamente com as ciências, das quais é, por assim dizer, uma actividade secundária, o que quer dizer que não versa directamente sobre os factos, mas sobre a maneira em que expressamos os factos». A. J. Ayer tematiza aqui a secundariedade da filosofia em relação às ciências: as ciências ocupam-se da descrição e da explicação da realidade extralinguística, enquanto a filosofia se ocupa da linguagem, sobretudo da linguagem na qual as ciências formulam a sua representação da realidade. A filosofia que no passado foi "escrava da teologia", seria hoje escrava da ciência: a ambição ontológica da filosofia de falar do real e de enunciar a verdade mais definitiva a propósito da realidade mais essencial deve ser abandonada a favor das ciências e de uma actividade filosófica metalinguística. Esta posição defendida pelo neopositivismo lógico encontra-se presente no Tratado Lógico-Filosófico de Wittgenstein (1921), sendo posteriormente generalizada de modo a fazer da filosofia uma descrição e uma análise da linguagem, dos usos e das funções de todas as linguagens e não apenas da linguagem das ciências. Foi um filósofo continental, precisamente Wittgenstein, que ajudou a difundir esta análise filosófica da linguagem no universo anglo-saxónico. A filosofia analítica enquanto filosofia da linguagem ordinária, em oposição à filosofia da linguagem lógica e científica praticada pelo neopositivismo lógico, sobretudo por Rudolf Carnap, ganhou corpo a partir das Investigações Filosóficas de Wittgenstein (1953). A filosofia da linguagem ordinária foi professada por grupos filosóficos, dos quais V. C. Chappell destacou dois dos mais importantes: o primeiro grupo inclui filósofos que foram influenciados mais ou menos directamente por Wittgenstein, tais como Wisdom, Malcolm, Waismann, Anscombe, Bouwsma e Lazerowit, todos eles interessados em mostrar a correcção da linguagem comum; e o segundo grupo conhecido como Escola de Oxford, cujos membros mais eminentes foram Gilbert Ryle, John L. Austin, Peter F. Strawson, Hart, Hampshire, Hare, Urmson e Warnock, interessou-se mais pelos detalhes reais da linguagem comum e pela elaboração de conclusões filosóficas gerais. Assim, por exemplo, Austin, em vez de se questionar sobre a percepção como processo real, interrogou-se sobre o vocabulário da percepção e sobre a maneira como utilizamos os termos e as expressões que pertencem ao campo semântico da palavra "percepção". Como estamos distantes da grandiosa reacção hegeliana ao poderio crescente das ciências e do pensamento positivo! Desafiada pelas conquistas das ciências, a filosofia académica capitula e afunila a sua ambição teórica, entregando o destino da humanidade e da biosfera aos caprichos da racionalidade instrumental. É certo que muitos destes filósofos estavam convencidos de que as suas investigações linguísticas ajudavam a clarificar a realidade, mas o espírito que presidia a elas era o de preparar o terreno para futuras investigações científicas, como o demonstra a teoria dos actos de fala de John Searle. No entanto, como a consciência e a experiência humanas das coisas estão mediadas pelas palavras e pelos símbolos (Cassirer), um mediação pensada de modo brilhante por Mikhail Bakhtin, cuja obra A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais é, toda ela, uma filosofia (marxista) da linguagem, a filosofia analítica não resistiu ao poder de atracção exercido pela fenomenologia da linguagem, tal como foi esboçada, por exemplo, por Merleau-Ponty. Esta convergência da filosofia linguística e da fenomenologia pós-husserliana atenuou o abismo que separava a filosofia continental e a filosofia anglo-saxónica, dando início à própria decomposição da filosofia analítica, até porque o interesse pela linguagem surgiu no continente europeu como reacção à tecnociência contemporânea, cuja missão é a transformação técnica da realidade e a reestruturação radical da condição humana. O vínculo operativo - e não simbólico - da tecnociência (Derrida) com a realidade deslocou a primazia do homo locuax para o homo faber, fazendo com que a linguagem perdesse importância na definição da forma de vida e enfraquecendo a definição aristotélica do homem como "ser vivo que fala" (zoon logon ekhon). É contra este questionamento radical do privilégio da linguagem para a forma de vida que reagem o segundo Heidegger e Derrida. A segunda teoria da linguagem de Wittgenstein não é alheia a esta nova problemática filosófica. Graças à filosofia analítica, a análise descritiva da linguagem constitui uma base necessária e insubstituível para toda a filosofia, embora não se deva reduzir toda a actividade filosófica a essa descrição analítica da linguagem. As Investigações Filosóficas de Wittgenstein denunciam a sua concepção anterior da linguagem como imagem da realidade e como cálculo lógico, ao mesmo tempo que levam a cabo a desconstrução dos mitos subjacentes a essa concepção, um dos quais é o mito do logos, segundo o qual o pensamento é uma espécie de linguagem interior, imaterial e racional, capaz de realizar o ideal linguístico que as línguas naturais e concretas não conseguem encarnar de modo perfeito. A filosofia tradicional descreveu o pensamento como o atributo ou a actividade própria de uma substância ou de um ente muito especial, denominado espírito ou alma. Ora, para o segundo Wittgenstein, o pensamento mais não é do que o uso monológico, interior e silencioso da linguagem, a qual é fundamentalmente pública, dialógica e social. Ao negar o carácter privado da linguagem, Wittgenstein aproxima-se da filosofia da linguagem de Bakhtin, mas o seu cogito é de tal modo sobre-socializado que se torna incapaz de pensar para além dos limites impostos pela linguagem comum falada pela sua sociedade e pelo poder instituído: a "mosca" não consegue sair da garrafa e a filosofia tal como a define Wittgenstein pouco pode fazer para a ajudar a encontrar uma saída: «Não podes construir nuvens. E é por isso que o futuro com que sonhas nunca se realiza» (1942). (E, no entanto, o mesmo Wittgenstein é autor de dois aforismos magníficos: «Querer pensar é uma coisa: ter talento para o fazer, outra» (1944), ou então: «Ninguém pode pensar por mim um pensamento, da mesma maneira que ninguém pode por mim pôr o meu chapéu» (1929).) A linguagem é constituída por uma quantidade indefinida de jogos de linguagem que estão associados a actividades práticas executadas em determinados contextos naturais, sociais, técnicos ou mesmo históricos: todo o jogo de linguagem é solidário de uma forma de vida. Embora só apareça cinco vezes nos textos de Wittgenstein, o termo "Lebensform" desempenha um papel importante na teoria dos jogos de linguagem enquanto mediadores das relações palavra-objecto (Cf. Merrill B. Hintikka & Jaakko Hintikka): «Falar uma linguagem é participar numa forma de vida». A forma de vida é algo que pertence à linguagem e que a constitui: a atitude do homem no seu «modo de pensar e de viver» a sua vida está implicada no uso da linguagem. Para o segundo Wittgenstein, o significado de uma palavra ou de uma proposição é o seu uso na linguagem: as palavras entram em diversos contextos linguísticos segundo determinadas regras explícitas ou implícitas (Cf. S. Kripke). Wittgenstein chama gramática do profundo ao conjunto das regras de uso que constituem o significado de um signo, atribuindo-lhe a tarefa de descrever o uso dos signos, sem recurso a uma super-regra susceptível de regular o uso das regras. A linguagem com as suas regras responde a determinadas necessidades e exigências da vida humana e exerce determinadas funções em situações concretas: o uso nasce da vida e muda ao longo do tempo. Wittgenstein contrapõe à linguagem formalizada das ciências a linguagem diária, não como algo absoluto, mas como algo básico e insubstituível na análise linguística: a linguagem quotidiana está aí como um facto previamente dado e sempre vivo na criação de novos modos de a usar e no uso fluído que os homens fazem dela. A linguagem diária é a matriz permanente da qual nascem todas as outras linguagens, o único meio universal da comunicação entre os homens. A linguagem das ciências não goza de nenhum privilégio como ponto de partida da análise linguística e, por isso, não deve ser tomada como modelo ou ideal do conhecimento humano, até porque, ao unificar e dar homogeneidade àquilo que flui, nega a diversidade e o devir dos múltiplos jogos de linguagem. Não há, portanto, jogo privilegiado de linguagem: a descrição teórica é apenas um jogo de linguagem-forma de vida entre tantos outros instrumentos que funcionam de acordo com regras e finalidades completamente diferentes e irredutíveis entre si. Cada um dos diversos jogos de linguagem tem um carácter público, no sentido de ser partilhado por um grupo de sujeitos falantes que jogam o mesmo jogo e observam as mesmas regras. O que garante a estabilidade e a identidade de um jogo de linguagem é o facto de depender desta prática comum, unida à educação, ao treino, à cultura, aos hábitos, aos costumes, à observância, enfim à forma de vida partilhada por todos os membros de um grupo. Compreende-se agora o interesse de Wittgenstein pela etnologia: ela revela-lhe uma multiplicidade de jogos de linguagem heterogéneos e irredutíveis entre si. A linguagem humana é uma instituição que não foi estabelecida nem por Deus nem pela natureza: a regra que governa a acção comum só existe enquanto essa acção a respeite e a aplique. A observância da regra exclui a busca de um fundamento último: as implicações desta proibição no domínio da filosofia da matemática e da lógica - uma meta-linguagem é um outro jogo de linguagem! - são sobejamente conhecidas; o que ainda não se compreendeu é que as Investigações Filosóficas tentam desviar-nos da própria ideia de "teoria". O pessimismo congénito de Wittgenstein levou-o - depois de 1945 - a desejar que a bomba atómica provocasse a destruição total da humanidade e da sua "água suja": a ciência moderna. Como seríamos todos mais felizes se a humanidade fosse extinta! 

J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 21 de abril de 2012

Porto: Boavista Prime Office




Cidade do Porto: Avenida da Boavista: Edifício Boavista Prime Office.

Porto, Cidade Inglesa



Porto: Edifício da Feitoria Inglesa
A economia e a sociedade portuguesas estão a entrar em colapso e este facto deve ser interpretado como resultado da incapacidade inata dos portugueses, sobretudo das classes dirigentes (banqueiros, gestores, empresários, políticos), para dirigir o destino de um país. A prova está aqui no edifício da Feitoria Inglesa no Porto: projectado por John Whitehead em estilo neopaladiano, o edifício começou a ser construído em 1785, ficando concluído em 1790. Se não fosse a forte presença inglesa no Porto Setecentista e Oitocentista, responsável pelo comércio do Vinho do Porto, a cidade não teria entrado na via do desenvolvimento efectivo. Há povos que nasceram idiotas e, infelizmente, o povo português é um desses povos idiotas que precisa ser governado por uma raça superior para entrar na via do desenvolvimento efectivo e não aparente (Galbraith). O problema de Portugal são os próprios portugueses: o seu espírito idiota, imbecil, invejoso, submisso, oportunista, medroso, trapaceiro, preguiçoso, provinciano, parolo, saloio, sacana e vigarista. Na verdade, só vejo uma solução para Portugal: fragmentar o território em regiões e entregar cada uma delas à governação de um país do Norte da Europa: os portugueses nasceram para obedecer e não para mandar. (A extinção dos portugueses seria uma bênção genética para a humanidade ocidental: a queda da natalidade é já um bom indicador da libertação do território para a chegada dos povos do Norte.) A substituição das elites do poder é fundamental: o Porto precisa de elites estrangeiras.

J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Economia e Filosofia

Um Edifício do Porto: Sede da Associação
dos Jornalistas e Homens de Letras
«"Assim", diz Marx, ao falar de economia burguesa, "houve história, mas deixou de haver". (...) Essa essência não-histórica, anti-histórica do pensamento burguês aparece-nos com a maior clareza se considerarmos o problema do presente como problema histórico. (...) A total incapacidade de todos os pensadores e historiadores burgueses para apreenderem os acontecimentos presentes da história mundial como acontecimentos históricos e mundiais, depois da guerra mundial e da revolução mundial, deverá ser uma recordação terrível para qualquer homem de juízo são.» (Georg Lukács)

Estou cada vez mais convencido de que não há verdadeiramente projecto político de Esquerda fora da órbita do pensamento filosófico de Karl Marx: o afastamento da social-democracia europeia da sua matriz marxista fez dela cúmplice do triunfo do neoliberalismo. A crítica radical da social-democracia, de resto já esboçada por Walter Benjamin, é a única via que temos não só para renovar substancialmente o marxismo, como também para ousar pensar um novo projecto político para a Esquerda. Chegou a hora de enterrar a social-democracia, cuja agenda económica coincide sempre com a do neoliberalismo. Há mundo para além da falsa alternativa entre a agenda comunista e a agenda social-democrata, embora se aprenda mais com o marxismo soviético do que com a social-democracia. Toda a história da social-democracia é uma história de traições e de corrupção. "O socialismo é merda": Com esta declaração Althusser reconheceu que o marxismo, pelo menos no nosso tempo, carece de política. Não há efectivamente uma política marxista e a praxis corrupta da social-democracia europeia, cuja preocupação social fortaleceu o capitalismo monopolista, os monopólios do mercado da electricidade e da banca, por exemplo, como o demonstra a governação do PSD e do PS em Portugal, é responsável por esta lacuna. Se hoje em Portugal a EDP controla o poder político, o PS não pode descartar-se da sua própria responsabilidade nessa captura do poder político pelo poder económico. A social-democracia fortaleceu de tal modo o Estado que acabou por fazer dele, de lés a lés, um Estado da classe dos administradores dos monopólios e oligopólios, que invade abusivamente toda a nossa vida privada e que bloqueia o crescimento económico. Ao denunciar o Estado social-democrata, o marxismo descobre a sua própria raiz liberal. A social-democracia tem tido uma ligação estranha com o capitalismo monopolista que não lhe permite diferenciar-se do neoliberalismo. Ora, esta ligação fatal é profundamente estranha ao marxismo que está mais próximo do verdadeiro liberalismo do que da social-democracia: a defesa da individualidade e da liberdade numa situação de justiça social garantida. Reinventar uma nova política para o marxismo implica uma reformulação substancial da sua concepção da história e da economia: a ideia de progresso tornou-se claramente inimiga da continuidade da aventura biológica e antropológica na Terra. O capitalismo monopolista é darwinista, tal como a social democracia: a demolição do neodarwinismo constitui uma tarefa prioritária do pensamento de Esquerda que deseja o regresso da Grande Política. A caducidade do mundo e a mortalidade do homem chocam frontalmente com as ideias irracionais de crescimento infinito e de progresso constante. Quanto mais avançamos na senda do progresso tecnológico, mais próximos estamos do colapso total: a grande esperança do século XX é a nossa desgraça de hoje e das gerações que não chegarão a nascer. O mundo que entregou o passado ao esquecimento foi brutalmente privado de futuro: vivemos a eterna agonia do presente sem sabermos se haverá um novo dia. Estou convencido de que a preocupação social deve ceder lugar à grande política que tem como missão preparar-nos para fazer face a situações de catástrofe natural, social e civilizacional. Estamos cansados da pequena política feita a partir dos meios de comunicação social e toda ela centrada em pequenos problemas relativos à troca metabólica do homem com a natureza, como se estes homens de hoje fossem os últimos homens. As micro-lógicas das libertações periféricas inspiradas no macro-modelo marxista da libertação social empobrecem o pensamento de Esquerda, ao mesmo tempo que invertem completamente as prioridades políticas, precipitando a irracionalidade e a catástrofe. O marxismo não é uma filosofia para animais, para mulheres que imitam os homens nas suas piores características, para indivíduos sexualmente promíscuos ou para outras minorias loucas: o homem que ousa falar em direitos dos animais já não é digno de viver na cidade dos homens, onde cada um tem direito à palavra e ao uso público da razão. Toda a grande filosofia é antropocêntrica e o marxismo retoma essa tradição ocidental, desafiando o homem a superar a sua animalidade. A grande política só é possível a partir do pressuposto de que o homem é capaz de superar a sua animalidade, mesmo que a filosofia já tenha perdido a confiança no homem. Ora, esta perda de confiança no homem traduz-me imediatamente na definição da grande política como luta sem tréguas contra o animal que há em cada homem. O marxismo não tem qualquer dificuldade em incorporar no seu seio a simplicidade da quadratura (Heidegger) em que os mortais habitam: a terra e o céu, os mortais e os deuses: «Salvando a terra, acolhendo o céu, aguardando os deuses, conduzindo os mortais, é assim que acontece propriamente um habitar. Acontece enquanto um resguardo de quatro faces da quadratura. Resguardar diz: abrigar a quadratura em seu vigor de essência. O que se toma para abrigar deve ser velado. Onde, porém, o habitar guarda a sua essência quando resguarda a quadratura? Como os mortais trazem à plenitude o habitar no sentido desse resguardar? Os mortais jamais o conseguiriam se habitar fosse tão-só uma de-mora sobre a terra, sob o céu, diante dos deuses, como os mortais. Habitar é bem mais um demorar-se junto às coisas. Enquanto resguardo, o habitar preserva a quadratura naquilo junto a que os mortais se demoram: nas coisas» (Heidegger). Cada uma das quatro faces da quadratura constitui uma preocupação política e todas juntas definem um projecto político que visa garantir o resguardo da quadratura em seu vigor de essência, salvando a terra, acolhendo o céu, aguardando os deuses e conduzindo os homens. A exclusão dos animais da quadratura é sintomática: a filosofia escolheu como alvo de abate o animal que ameaça a humanidade do homem, não o animal da selva, mas o animal-homem, sem no entanto romper com uma perspectiva biófila da natureza.

Como é evidente, a minha grande preocupação neste momento é renovar a economia marxista, cujo crescimento científico foi bloqueado tanto pelos comunistas e anarquistas libertários como pelos sociais-democratas. A actual crise financeira e económica sela o fracasso total da economia burguesa, em qualquer uma das suas versões. É por isso que ela constitui a grande oportunidade de retomar a economia marxista e de lhe imprimir um novo rumo mais em sintonia com os grandes desafios do nosso tempo indigente e sombrio. O facto da EDP desfrutar de um poder total que lhe permite demitir um secretário de Estado levou-me a reler uma obra de Joan Robinson sobre a concorrência imperfeita - The Economics of Imperfect Competition (1933), onde questiona o pressuposto da concorrência perfeita, o ideal cínico da economia neoliberal dos nossos dias, possibilitando o conhecimento crítico do sistema monopolista de preço e da concorrência monopolista. Ora, a substituição do sistema competitivo tradicional pelo sistema de preço monopolista e a análise das suas implicações para a totalidade da economia foram devastadoras para as pretensões do capitalismo de ser considerado como uma ordem social racional que serve para promover o bem-estar e a felicidade de todos os seus membros. A mão invisível de Adam Smith deixa que a miséria seja gerada «em tão grande abundância como a riqueza» (Marx): os homens ditos de Esquerda que hoje reclamam a herança de Adam Smith e de Ricardo, em vez da de Marx, fazem o jogo do seu inimigo declarado, o neoliberalismo, esquecendo que o que importa nessa herança da economia clássica - o seu método histórico e descritivo - pode ser usado para denunciar a indigência mental e cognitiva dos actuais economistas da praça pública portuguesa. A superioridade da economia marxista em relação à economia burguesa reside, antes de tudo, no carácter histórico do seu método, que lhe permite reivindicar justamente os títulos da cientificidade. Na sua obra Miséria da Filosofia, Marx é peremptório a este respeito: «Os economistas têm uma singular maneira de proceder. Para eles só há duas espécies de instituições, as da arte e as da natureza. As instituições do feudalismo são instituições artificiais, as da burguesia são instituições naturais. Assemelham-se nisto aos teólogos, que, também eles, estabelecem duas espécies de religiões. Toda a religião que não é a sua é uma invenção dos homens, ao passo que a sua própria religião é uma emanação de Deus. Quando dizem que as relações actuais - as relações de produção burguesa - são naturais, os economistas querem dizer com isso que se trata de relações nas quais se cria a riqueza e se desenvolvem as forças produtivas em conformidade com as leis da natureza. Portanto estas relações são elas próprias leis naturais independentes da influência do tempo. São leis eternas que devem reger sempre a sociedade. Assim, houve história, mas já não há. Houve história, visto que houve instituições de feudalismo, e nestas instituições de feudalismo se encontram relações de produção totalmente diferentes das da sociedade burguesa, que os economistas querem fazer passar por naturais e portanto eternas». Paul Samuelson estabeleceu - ainda recentemente - a data da publicação da obra de Adam Smith (A Riqueza das Nações) como a da fundação da economia moderna, lembrando que 1776 foi também marcado pela Declaração da Independências dos EUA: «Não é uma coincidência que ambas as ideias tenham surgido ao mesmo tempo. Do mesmo modo que os revolucionários norte-americanos proclamavam a liberdade contra a tirania, Adam Smith pregava uma doutrina revolucionária para emancipar o comércio e a indústria das grilhetas da aristocracia feudal». (E os trabalhadores não terão o direito e o dever de lutar contra as grilhetas da burguesia?) A economia moderna nasceu "natural" e não histórica: as suas leis, formuladas mais tarde com a ajuda de instrumentos matemáticos, são leis naturais e eternas que regem sempre a sociedade. Com a fundação da economia burguesa, deixou de haver história: os economistas burgueses fogem da história como o Diabo da cruz, porque, lá no fundo, eles sabem que o capitalismo não é uma ordem natural regida por leis eternas. O carácter anti-histórico da economia burguesa priva-a da problemática da crítica, fazendo dela mera apologia ideológica do status quo. É por isso que Paul Samuelson e William Nordhaus não referem, em Economia, uma única vez os nomes dos economistas marxistas, tais como Paul Sweezy, Paul Baran ou Ernest Mandel, e, quando discutem as ideias de Marx e de Lenine, fazem-no de um modo que envergonha os seus leitores inteligentes: a omissão dos nomes dos economistas marxistas é reforçada pela formulação do princípio marginalista, segundo o qual se «deve olhar para os custos e proveitos marginais das decisões e ignorar os custos do passado ou irrecuperáveis»: «Águas passadas não movem moinhos. Não olhe para o passado. Não chore sobre leite derramado nem lamente as perdas do passado. Faça um cálculo inteligente dos custos adicionais, em que incorrerá por qualquer decisão e pondere-os com as vantagens adicionais. Tome uma decisão baseada nos custos e nos proveitos marginais». A regra de obtenção do lucro máximo pelas empresas que deriva deste princípio, desvaloriza a história e liquida o passado, o que, em termos práticos, significa que a lição central da economia burguesa sacrifica tudo, incluindo o tempo histórico, e todos à maximização dos rendimentos, dos lucros ou das utilidades, ao curto prazo, como se vivêssemos fora da história e, portanto, bem longe do tempo. A crítica da economia política, tal como Marx a realizou, deve ser retomada, com o objectivo de livrar a economia do véu ideológico que a cobre. A utilização de um instrumental matemático e estatístico não garante a "cientificidade" da economia burguesa, na medida em que ele é orientado pelo interesse de domínio e utilizado para glorificar e perpetuar uma ordem social profundamente injusta. Basta confrontar as obras económicas dos actuais economistas burgueses com as obras clássicas do marxismo ou mesmo da Escola Clássica para vermos o abismo que as separa: a indigência cognitiva e a pobreza de experiência dos economistas neoliberais evidenciam-se de tal modo que lá onde escrevem a palavra "ciência" devemos ler "ideologia". Faz parte integrante da rotina da actividade científica, filosoficamente orientada, sobretudo no domínio da história, o domínio das ciências sociais, elaborar modelos alternativos: encarar a realidade social existente como uma fatalidade não é uma atitude digna de uma mente científica. Os economistas burgueses não são verdadeiramente cientistas sociais, mas sim representantes da classe dominante. A crítica da ideologia é fundamental para mostrar os limites de classe das categorias económicas, mas não é suficiente para elaborar uma ciência económica objectiva e formular novas políticas económicas: a nova economia marxista já não pode opor-se à economia burguesa como "economia do proletariado". Os interesses e as aspirações da classe trabalhadora são salvaguardados na definição, não do corpo teórico da economia, mas das políticas económicas. O marxismo deve falar hoje a linguagem da humanidade universal em sofrimento e da natureza devastada. Há, portanto, muito trabalho teórico e político a realizar...

J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 15 de abril de 2012

Ocaso da Literatura

Porto: Casa da Música
«Deste modo, o problema prático mais importante da nossa época é justamente o de saber em que direcção agir, que atitude tomar, de forma a contribuir para dar à evolução social uma orientação diferente da que ela parece estar a adquirir espontaneamente - uma orientação que permitisse modificar uma evolução que corre o risco de suprimir o elemento qualitativo e a personalidade humana, ao mesmo tempo que aumenta consideravelmente o nível de vida e as possibilidades de consumo dos indivíduos e cria assim uma situação de que já uma vez caracterizei o elemento paradoxal no plano da cultura, escrevendo que corremos o risco de acabar por ter uma produção considerável de diplomados da Universidade e de doutores analfabetos - para a substituir por uma orientação para uma estrutura social capaz de assegurar efectivamente um desenvolvimento harmonioso, tanto do sujeito libidinal, como da personalidade intrasubjectiva e socializada, um desenvolvimento harmonioso do indivíduo e da personalidade.» (Lucien Goldmann)

Ontem ofereceram-me uma enorme mala cheia de livros sobre teatro, peças e ensaios, entre os quais estava, talvez por engano, um romance de Paulo Coelho, um escritor que nunca quis ler. O romance de Paulo Coelho intitula-se Veronika Decide Morrer: folheei-o e li algumas partes, mas acabei por desistir da leitura integral, porque o achei "fora de prazo" e profundamente patético. Retomei depois a releitura das obras de Lucien Goldmann, cuja sociologia da criação cultural foi injustamente esquecida pela crítica académica. O seu conceito de estreitamento da esfera da consciência possível ajuda a compreender o ocaso da literatura - e da arte - no nosso tempo indigente. Convém retomar o elemento paradoxal introduzido pelo capitalismo tecnocrata no plano da cultura - a produção massificada de diplomados da Universidade e de doutores analfabetos, previsto por Goldmann, e associá-lo ao próprio declínio da cultura, através desse fenómeno terrível que é o estreitamento da personalidade. Deste modo simples, formulei uma hipótese que permite abrir um novo horizonte de pesquisa futura, onde se joga a renovação da teoria marxista e a formulação de uma nova praxis política. O desenvolvimento desta hipótese exige a análise detalhada das causas e das consequências da crise financeira de 2008, tarefa que não vou levar a cabo aqui. No entanto, devo dizer que aquilo que os marxistas ocidentais julgaram estar ultrapassado na teoria de Marx está - depois desta crise profunda do capitalismo - na ordem do dia: a teoria da pauperização que o actual governo português converteu em programa político. De certo modo, os marxistas ocidentais, colocados entre duas paredes, a dos adversários liberais do marxismo e a do próprio marxismo soviético, não conseguiram reescrever O Capital, de forma a formular uma teoria forte do desenvolvimento do capitalismo: cederam lá onde Marx é actual e profundo. Mas esta cedência precipitada e impensada que enfraqueceu o projecto político da Esquerda, fazendo-a seguir numa direcção errada e suicida, pode ser corrigida à luz dos ensinamentos da actual crise económica, como já tentei demonstrar noutros textos. Depois da morte de Marx e talvez durante os seus últimos doze anos de vida, o marxismo foi mal-pensado: a prioridade dada ao materialismo sobre a dialéctica foi fatal, tanto para o marxismo ocidental como para o marxismo soviético. E, quando hoje procuramos dar o lugar de destaque à dialéctica, somos obrigados a abandonar o materialismo, o maior erro de todos os tempos. Quando formulou o estruturalismo genético que suporta a sua "sociologia dialéctica", Goldmann estava consciente disso, mas não foi capaz de se livrar de vez da tentação positivista, presente no seu projecto de uma sociologia dialéctica elucidada por oposição à sociologia positivista. Combateu a tecnocracia sem ter suspeitado da sua presença nas próprias ciências sociais e humanas, cujo desenvolvimento contribuiu mais para a adaptação social do que para a mudança social qualitativa. A teoria do equilíbrio que retomou de Jean Piaget é absolutamente estranha à dialéctica, como o demonstra o facto de N. Bukharin a ter usado para apresentar o "materialismo histórico" como "sociologia geral": Goldmann comete o mesmo erro que critica no marxismo soviético, apesar de ter referido o nome de Dilthey que nos reconduz directamente ao idealismo transcendental de Schelling como fio condutor capaz de orientar a pesquisa filosófica sobre a tipologia das concepções do mundo. O materialismo bloqueou o desenvolvimento da teoria marxista e desviou-a da sua verdadeira praxis política: o aumento do nível de vida de um número considerável de pessoas no mundo ocidental, o impulso materialista realizado, não trouxe consigo qualidade de vida e muito menos aperfeiçoamento da humanidade. Opor a autogestão - a célebre experiência da Jugoslávia - à tecnocracia não constitui um programa político adequado para a Esquerda. A dialéctica implica uma nova ontologia fundamental que, uma vez elucidada, impõe limites à formulação de novas políticas. Como é evidente, não posso explicitar aqui todas estas ideias, nem sequer posso elucidar a relação entre sociedade e literatura preconizada por Goldmann. No entanto, para explicitar a minha hipótese do ocaso da literatura, vou socorrer-me dos ensaios de Goldmann, onde ele esboça uma crítica inteligente da psicanálise.

Goldmann esboçou uma periodização da história já demasiado longa do mundo capitalista ao nível da economia, distinguindo três períodos de desenvolvimento capitalista, a cada um dos quais correspondem determinadas formas de filosofia e de literatura. Quando elaborou esta periodização do capitalismo, Goldmann, discípulo de Lukács, encontrava-se em diálogo produtivo com Marcuse e com a Escola de Frankfurt. Ora, a influência de Marcuse, sobretudo da sua teoria do homem unidimensional, implicava um ajuste de contas filosófico com a sua obra anterior. A estética da Escola de Frankfurt fê-lo mudar de perspectiva em relação ao Nouveau Roman, levando-o a reconhecer mais tarde a pobreza e a secura dessa criação cultural: «Porque é certo que, se a unidade destas obras é rigorosa, o outro pólo, a integração nessa mesma unidade das possibilidades e das virtualidades das realidades humanas que ignora ou cujo sacrifício exige, ocupa nelas um lugar relativamente restrito», como o demonstra o primeiro romance de Robbe-Grillet, Les Gommes. Embora sejam obras autênticas e representativas, «elas exprimem um empobrecimento geral da criação literária e cultural, análogo e paralelo àquele que Herbert Marcuse assinalou como característico do mundo moderno ao constatar que, das duas dimensões da existência que caracterizam o homem, o real e o possível, a última, na qual se baseia o essencial da criação literária, tende a desaparecer progressivamente das consciências, conduzindo àquilo a que ele chamou o homem unidimensional». Na sua derradeira obra publicada em vida, A Dimensão Estética, Marcuse tenta elaborar uma estética marxista, mediante a impugnação da sua ortodoxia predominante que interpreta a «qualidade e verdade de uma obra de arte em termos da totalidade das relações de produção existentes», isto é, que considera a obra de arte como expressão dos interesses e da visão do mundo de determinadas classes sociais de um modo mais ou menos preciso. Não é preciso avançar muito mais na explicitação da crítica de Marcuse à ortodoxia estética do marxismo para compreender que um dos seus alvos é precisamente a estética esboçada por Goldmann em Le Dieu Caché. A concepção da obra de arte como expressão de uma visão do mundo coerente, isto é, do máximo de consciência possível de uma determinada classe social, é impugnada por Marcuse, em nome de dois princípios da teoria marxista: a análise da arte no contexto das relações sociais prevalecentes, de forma a podermos atribuir-lhe uma função política, e a defesa da autonomia da arte perante essas mesmas relações sociais. A estética de Marcuse visa salvaguardar a subjectividade da depreciação ou desvalorização a que foi sujeita pela ortodoxia marxista e da sua dissolução na consciência de classe: «as qualidades radicais da arte, ou seja, a sua acusação da realidade estabelecida e a sua invocação da bela imagem (schöner Schein) da libertação baseiam-se precisamente nas dimensões em que a arte transcende a sua determinação social e se emancipa a partir do universo real do discurso e do comportamento, preservando, no entanto, a sua presença esmagadora. Assim, a arte cria o mundo em que a subversão da experiência própria da arte se torna possível: o mundo formado pela arte é reconhecido como uma realidade suprimida e distorcida na realidade existente. Esta experiência culmina em situações extremas que explodem na realidade existente em nome de uma verdade normalmente negada ou mesmo ignorada. A lógica interna da obra de arte termina na emergência de outra razão, outra sensibilidade, que desafiam a racionalidade e a sensibilidade incorporadas nas instituições sociais dominantes». Daqui resulta que a universalidade da arte não radica na visão do mundo de uma determinada classe social, como pressupõe Goldmann, mas sim na humanidade concreta - universal - que, não podendo ser personificada por uma classe particular, luta pela libertação das potencialidades reprimidas do homem e da natureza, abrindo assim no seio da própria totalidade repressiva uma nova dimensão da experiência: o renascimento da subjectividade rebelde. Hans-Dietrich Sander analisou os contributos de Marx e de Engels para uma teoria da arte, chegando à conclusão de que a ortodoxia marxista é uma inversão total da perspectiva dos fundadores do marxismo. Que pena Marx não ter cumprido o seu projecto de escrever um livro sobre Balzac e o capitalismo, para o qual contribuiu mais tarde Lukács: o autor de O Capital lia atentamente A Comédia Humana de Balzac, descobrindo nela afinidades com o seu próprio pensamento. 

Capitalismo concorrencial e romance de personagem problemática. O primeiro período da história do capitalismo estende-se até ao ano de 1910 e, no plano económico, corresponde ao capitalismo liberal. Goldmann caracteriza-o como «período individualista, no qual a ideia de conjunto, de totalidade, tende a desaparecer da consciência». No plano do pensamento filosófico, o período liberal do capitalismo exprime-se pelas «duas formas de filosofia individualista radical que são o racionalismo e o empirismo, as duas grandes correntes da chamada filosofia clássica, e, no plano da literatura, entre outros, pelo romance clássico, o romance de personagem problemática». Goldmann considera que, na história da cultura ocidental, existe quase sempre uma relação de homologia rigorosa entre as grandes tendências e correntes filosóficas e as grandes criações literárias. Assim, por exemplo, pares homólogos de universos imaginários criados por escritores e de sistemas conceptuais elaborados por filósofos são as obras de Pascal e de Racine, de Descartes e de Corneille, de Gassendi e de Molière, de Kant e de Schiller e de Schelling e dos Românticos. A título de exemplo, destaca-se particularmente a colaboração entre escritores e filósofos nos círculos literários e de amizade de Jena, da qual resultou a elaboração do romantismo de Jena, cuja concepção romântica era determinada pela filosofia idealista de Schelling, em especial pela sua filosofia da natureza. O órgão de difusão da concepção romântica foi o periódico Athenaeum (1798-1800): o romantismo de Jena resultou da colaboração próxima entre Novalis, os irmãos Schlegel, Goethe, Schleiermacher e Schelling. Goldmann detestava de tal modo o estruturalismo não-genético de Althusser que se descartou da sua teoria do todo complexo a-dominante, sem ter visto que ela podia ajudá-lo a estabelecer as homologias entre sistemas filosóficos e criações literárias, levando em conta os desfasamentos das temporalidades de cada uma das estruturas da totalidade social em relação às outras. O período liberal é de tal modo longo que Goldmann teve dificuldade em descobrir um escritor cuja obra correspondesse rigorosamente ao racionalismo: o par formado por Descartes e Corneille é diferente dos restantes pares referidos, porque só um certo número das peças de Corneille parece ser a expressão literária da posição racionalista de Descartes que marcou toda a cultura ocidental. O romance de personagem problemática é o género literário que corresponde ao período do capitalismo liberal. Goldmann confronta-se aqui com o problema do romance de personagem problemática não ser homólogo nem ao empirismo nem ao racionalismo, nem à Filosofia das Luzes, porque este romance é, ao mesmo tempo, uma forma literária crítica, que implica o elemento positivo da afirmação do indivíduo e do valor individual, e uma crítica social extremamente rigorosa: o romance da personagem problemática mostra que a sociedade em que vivem os seus heróis não permite ao indivíduo desenvolver-se e realizar-se. Ora, este problema liga-se à problemática da crítica e da revolta na literatura moderna, embora ele não exista à luz da estética da Escola de Frankfurt, para a qual toda a grande obra de arte é recusa da ordem estabelecida. Goldmann nunca conseguiu «reconciliar» a sua obra anterior sobre a sociologia do romance e sobre a visão trágica do mundo com a problemática da crítica, tendendo a ser mais afirmativo - a cultura afirmativa de Marcuse - do que crítico. Numa obra anterior, Pour une Sociologie du Roman, Goldmann tinha retomado a tipologia do romance de Lukács, distinguindo quatro tipos de romance: o romance do idealismo abstracto (D. Quixote de Cervantes e O Vermelho e o Negro de Stendhal, por exemplo), caracterizado pela actividade do herói e pelo seu conhecimento muito estreito em relação à complexidade do mundo; o romance psicológico ou do romantismo da desilusão (A Educação Sentimental de Flaubert, por exemplo), orientado para a análise da vida interior e caracterizado pela passividade do herói e pelo seu conhecimento muito amplo para o levar a encontrar satisfação no âmbito do mundo da convenção; o romance educativo (Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister de Goethe, por exemplo), consumado por uma auto-limitação - a maturidade viril de Lukács - que, sendo uma espécie de renúncia à pesquisa problemática, não é nem uma aceitação do mundo nem um abandono da escala implícita dos valores; e, por fim, uma quarta possibilidade que, surgindo em 1920, se exprime nos romances de Tolstoi, orientados para a epopeia. Como é que Goldmann articula esta tipologia do romance com a sua perspectiva posterior? Ele deixou de falar dela nas obras posteriores, integrando os três primeiros tipos de romance sob a designação geral de romance de personagem problemática. As peripécias da personagem ao longo da história da literatura moderna permitem-lhe acompanhar de perto o destino do indivíduo ao longo dos três períodos de evolução do capitalismo: o eclipse da personagem no romance corresponde ao eclipse do indivíduo na sociedade. Esta é uma ideia extremamente produtiva que merece ser desenvolvida, até porque vai ao encontro de uma das preocupações fundamentais da teoria crítica da Escola de Frankfurt. E é esta ideia brilhante que estou a utilizar para elucidar o eclipse da literatura no nosso tempo indigente.

Capitalismo em crise, imperialismo e romance da comunidade. O segundo período da história do capitalismo é o período imperialista, cuja origem se situa por volta de 1910-1911. Goldmann destaca outras datas significativas para mostrar a dificuldade de estabelecer o equilíbrio económico e social durante este período imperialista: em 1914, a Primeira Guerra Mundial, a partir de 1917-1918, uma profunda crise social e política, entre 1929 e 1933 a grande crise económica, em 1933 a tomada do poder por Hitler, e, entre 1939 e 1945, a Segunda Guerra Mundial. O carácter provisório e instável dos equilíbrios económicos e sociais alcançados durante este período explica-se, em parte, pelo facto do mecanismo de regulação através do mercado, essencial para a economia do período liberal, ter sido perturbado pelo desenvolvimento dos monopólios e dos trustes. Goldmann é muito esquemático na caracterização económica dos períodos, negligenciando neste caso os contributos económicos fundamentais de Lenine, de Rosa Luxemburgo, de Sweezy e de Baran. Além disso, como veremos já a seguir, ao omitir a Revolução de Outubro de 1917, talvez para se distanciar do marxismo soviético, tende a esquecer a literatura que surgiu dessa revolução e do movimento operário: o realismo socialista também é a expressão de uma determinada visão do mundo, de resto bem explicitada pela obra de Maximo Gorki. Os pensadores marxistas que viveram nesta época estavam convencidos de que ela representava a crise final do capitalismo: a perspectiva de queda do capitalismo e de passagem ao socialismo - alimentada pela frequência das crises sociais e económicas que culminam com a crise de 1929 - justifica a designação de capitalismo em crise dada pelos marxistas a este período. No plano filosófico, ao período imperialista - infelizmente um período de transição - corresponde a filosofia existencialista (Heidegger, Sartre, Jaspers, por exemplo) que, apesar de reter elementos individualistas do período liberal, já não tem por centro nem a razão (racionalismo) nem a percepção (empirismo), mas sim os limites do indivíduo, em especial o limite por excelência que é a morte. O existencialismo tomou por centro, no plano psíquico, o sentimento que se desenvolve a partir da consciência dos limites e da morte: a angústia. O facto de Sartre ter sido filósofo e escritor mostra que, no período imperialista, a literatura estava muito próxima da filosofia: as obras de Kafka (A Metamorfose, América), Musil (O Homem Sem Qualidades), Sartre (A Náusea) e Camus (O Estrangeiro) mostram a dificuldade do indivíduo em se adaptar ao mundo social que o rodeava. O tema da dificuldade do indivíduo em se adaptar à sociedade já estava presente no romance de personagem problemática: ele foi retomado para elucidar o choque do romance com o problema da personagem que determinará a sua evolução futura. No plano económico, a passagem do capitalismo liberal ao capitalismo monopolista foi marcada pela perda de importância económica e social do indivíduo, a qual explica o enorme sucesso da psicanálise nos Estados Unidos: «Ora o escritor não pode dar forma senão ao que é essencial na realidade a partir da qual elabora a sua obra e, tendo o desenvolvimento económico diminuído a importância do indivíduo, teria sido difícil criar uma grande obra literária contando a história de uma personagem, uma biografia que, no plano da realidade, mais não apresentava que um carácter anedótico». No campo do pensamento socialista e na sua proximidade, houve tentativas de substituir a personagem pela colectividade e escrever romances de personagem colectiva, como testemunham Les Thibault de Roger Martin du Gard, os romances da família de Thomas Mann (Budenbrooks) e de John Galsworthy (The Forsyte Saga) e o romance da comunidade revolucionária de Malraux (La Condition Humaine). Porém, como a revolução socialista não conseguiu transformar substancialmente a sociedade ocidental, o romance da comunidade não se tornou uma forma literária predominante. É fácil captar as semelhanças e as diferenças entre as perspectivas de Lukács e de Goldmann: toda a obra sociológica e filosófica de Goldmann é tributária da estética de Lukács, embora tenha tentado analisar aquilo que Lukács condenou, a literatura de vanguarda.

Capitalismo de organização, revolta das letras e Nouveau Roman. O terceiro período do desenvolvimento do capitalismo iniciou-se depois do fim da Segunda Guerra Mundial, sendo marcado pela concentração considerável do poder de decisão nas mãos de um grupo relativamente pouco denso de tecnocratas e pelo aparecimento de técnicos com um nível de conhecimentos muito elevado na sua especialidade profissional para poderem executar as decisões tomadas pelo grupo restrito dos tecnocratas. Esta caracterização genérica do terceiro período capitalista justifica a designação de sociedade tecnocrática que lhe foi atribuída. Goldmann retoma outras designações, tais como sociedade de consumo, capitalismo de organização e sociedade de massas, sublinhando que cada uma delas destaca um dos aspectos principais da sociedade que se estruturou depois do fim da Segunda Guerra Mundial. A articulação de todos esses aspectos numa totalidade não é suficiente para elaborar uma teoria marxista do capitalismo de organização, cuja ausência explica a trajectória suicida seguida pela Esquerda europeia. O chamado capitalismo de organização caracteriza-se pelo aparecimento de mecanismos conscientes de auto-regulação: a classe dirigente tomou consciência da totalidade e dos problemas de organização global da economia e da sociedade, pelo menos ao nível da vontade e do comportamento dos seus membros, de modo a evitar a sucessão de crises verificada no período imperialista. A introdução dos mecanismos de regulação reforçaram a integração social e cultural do conjunto da sociedade, através do aumento do nível de vida que, de certo modo, neutralizou os efeitos do esquema da pauperização das classes médias proposto por Marx. Ora, uma das consequências psicológicas do aumento do nível de vida da maioria da população, incluindo a classe trabalhadora, foi o enfraquecimento significativo das forças de oposição tradicionais. A sociedade de consumo foi até agora uma sociedade altamente integrada que, além de enfraquecer a oposição tradicional, preparou o terreno para a hegemonia ideológica do neoliberalismo, que se consuma plenamente após a Queda do Muro de Berlim. A crítica aristocrática da cultura de massas (Ortega y Gasset) e a crítica do sistema de indústria cultural (Adorno, Horkheimer, Marcuse) alertaram para os efeitos nefastos do processo de integração social e cultural, mas o mocinho satisfeito - a consciência feliz de Marcuse - preferiu continuar a pensar mais com a marmita estomacal do que com a cabeça. Porém, com o triunfo do neoliberalismo à escala global a crise voltou a ocupar o lugar central da agenda: a crise financeira e económica de 2008 acordou brutalmente o mocinho satisfeito, o Zé-Ninguém da marmita, do seu sono metabolicamente reduzido, o sono sem sonhos de um mundo melhor (Bloch). A miséria regressa assim à ordem do dia e, acossado pela mera sobrevivência, o mocinho satisfeito não sabe o que fazer, até porque ele já não sabe pensar de modo autónomo. Mas antes de retomar este tema, convém analisar uma contradição da sociedade tecnocrática: o aumento da competência não conduz a grande maioria dos indivíduos a participar nas decisões essenciais e, o que é mais preocupante, reduz consideravelmente a sua vida psíquica e atrofia os seus órgãos cognitivos. Ora, como demonstrou Goldmann, aliás na peugada de Marcuse, a sociedade de organização é a sociedade dos especialistas analfabetos ou, de modo mais provocante, dos doutores analfabetos: o seu elevado nível de qualificação profissional e de competência técnica choca frontalmente com a sua atrofia mental e cognitiva. À era tecnocrática dos gestores e dos economistas corresponde a miséria da "ciência económica", uma mera técnica ideológica de adaptação social incapaz de integrar uma visão de conjunto da sociedade, da cultura e da economia, bastando folhear os manuais de economia para confirmar essa fragmentação: a instrumentalização da razão, a perda de visão da totalidade e a liquidação do indivíduo constituem aspectos de um mesmo processo de liquidação da realidade e de regressão civilizacional do Ocidente. Marcuse demonstrou que, antes do advento da sociedade de consumo, o homem se definia por duas dimensões fundamentais nas quais se desenvolviam a sua vida psíquica e o seu comportamento: a dimensão da adaptação ao real e a dimensão da transposição do real em direcção ao possível, a um outro princípio de realidade que os homens deverão criar pelo seu próprio comportamento. Goldmann articula estas duas dimensões do homem através da teoria do equilíbrio que, de certo modo, eclipsa a teoria da revolução. Apesar do seu mérito, Sciences Humaines et Philosophie é uma obra falhada, no sentido de não ter resistido dialecticamente às seduções da sociedade de consumo: a Filosofia não precisa das ciências humanas para pensar o possível - contra a fragmentação da totalidade social operada pelas ciências sociais. Goldmann lembra a definição do homem de Pascal - o homem como ser infinitamente maior do que aquilo que é, para lhe dar uma perspectiva dialéctica: o homem é maior do que aquilo que é por ser puro devir e estar continuamente a construir um mundo novo. O seu optimismo não lhe permitiu ver que a perda da dimensão do possível implica uma regressão antropológica fatal: o homem reconduzido à sua animalidade, isto é, o homem como animal metabolicamente reduzido.

A análise da sociedade contemporânea de Marcuse é infinitamente superior à de Goldmann. Quando escreveu os ensaios que estou a comentar, Goldmann estava convencido de que a problemática fundamental das sociedades capitalistas modernas não se situa ao nível da miséria nem ao nível de uma liberdade directamente limitada pela lei ou pela coacção exterior, mas sim ao nível do estreitamento da consciência: «O estreitamento da personalidade e da individualidade, o qual constitui um fenómeno inquietante, já mesmo no período de transição que vivemos (sic), corre assim o risco de se tornar cada vez mais grave se a evolução social se orientar efectivamente para uma adaptação perfeita dos homens a uma sociedade em que, na maior parte, eles se tornarão simples executantes bem pagos, tendo um nível de vida elevado e férias mais ou menos longas, e vivendo cada vez melhor enquanto técnicos especializados, mas com a consciência restringida». Como já vimos, a crise financeira de 2008 alterou completamente este quadro, pondo na ordem do dia os três níveis referidos por Goldmann. No entanto, como o nível do estreitamento da consciência se agravou cada vez mais com a produção em massa de diplomas atribuídos a indivíduos que nada fizeram para os merecer, excepto apropriar-se ilicitamente do pensamento dos outros, como se fossem "comunas-replicadores", continuarei a acompanhar a análise de Goldmann no que se refere às suas implicações na criação cultural. A elaboração hegeliana do fim da arte consumou-se literalmente no nosso tempo indigente: o aumento do número de diplomados não trouxe consigo a intensificação da criatividade cultural; pelo contrário, degradou-a de forma brutal. Qual é a filosofia que corresponde melhor ao terceiro período do desenvolvimento capitalista? Goldmann não respondeu a esta questão, embora tenha retomado a crítica do positivismo elaborada pela Escola de Frankfurt para demarcar a sua sociologia dialéctica da sociologia positivista: «a grande diferença (entre ambas) consiste precisamente no facto de a primeira (a sociologia positivista) se contentar em desenvolver uma fotografia tão exacta, tão minuciosa quanto possível da sociedade existente (ou uma modelação da sociedade em função de modelos prévios?), enquanto que a segunda (a sociologia dialéctica) tenta desenredar, na sociedade que estuda, a consciência, as tendências virtuais que estão prestes a desenvolver-se e que estão orientadas para a sua superação. Em resumo, a primeira tenta dar conta do funcionamento da estruturação existente, a segunda tem por centro as possibilidades de variação e de transformação da consciência e da realidade sociais». Ao analisar o pensamento unidimensional, isto é, a filosofia positiva, Marcuse esboçou uma primeira resposta a esta questão. Henri Lefebvre e Alfred Schmidt levaram essa análise mais longe quando associam o estruturalismo à tecnocracia. E, pouco mais tarde, Alex Callinicos acusa justamente o pós-estruturalismo (Derrida, Deleuze, Foucault) e os discursos da pós-modernidade (Lyotard, Jameson) de fazerem o jogo do neoliberalismo. É certo que Goldmann criticou severamente os estruturalismos não genéticos de Lévi-Strauss e de Althusser, mas, em vez de estabelecer uma homologia entre o estruturalismo e o Nouveau Roman, deslocou o problema, dizendo que, contrariamente a Marcuse, «creio que existem tendências para a superação desta situação e que o homem de uma única dimensão representa apenas um único termo da alternativa diante da qual se encontram as sociedades industriais contemporâneas». Goldmann descobre essa alternativa na revolta no interior da criação cultural, o que não constitui uma novidade para quem conheça bem a obra filosófica de Marcuse: o que é novidade é a distinção de dois aspectos diferentes e complementares dessa revolta das letras, a saber o aspecto da revolta formal de uma arte que, não aceitando uma sociedade, encontra formas de expressão para a recusar, e o aspecto do próprio tema da revolta no interior da obra de certos escritores e artistas. O primeiro aspecto manifesta-se no Nouveau Roman, e o segundo, nas peças de teatro de Sartre e, sobretudo, de Jean Genet. Esta distinção não faz muito sentido à luz da estética da Escola de Frankfurt e não se compreende bem a razão que levou Goldmann a introduzi-la na criação cultural do terceiro período da história do capitalismo, quando na verdade ela já podia ter sido introduzida nos períodos anteriores. Jean-Pierre Sarrazac lembra que o teatro tem sido acusado de não ter acompanhado as grandes tendências da literatura moderna, como se tivesse ficado parado no tempo, mas, quando abordaram os temas da luta de classes, da revolta e da revolução, Genet e Sartre passaram ambos do romance ao teatro. O teatro de Sartre que tem por tema a revolução - Les Mouches e Les Séquestrés d'Altona, por exemplo - aborda-o ainda na perspectiva da filosofia clássica, em termos de relação antagónica entre o indivíduo e a realidade social exterior, isto é, de conflito entre a ética e a história. Genet aborda o mesmo tema - nas suas quatro grandes peças de teatro que são Les Bonnes, Le Balcon, Les Nègres e Les Paravents - em termos de conflito entre dominados e dominadores: as personagens são colectivas, o real é sempre mentiroso, inautêntico e odioso, e os valores autênticos são os do ritual realizado pelos dominados. Pelo facto de abordar os temas da luta de classes, da revolta e da revolução numa sociedade tecnocrática na qual as forças de contestação foram enfraquecidas, Jean Genet é visto por Goldmann como o maior escritor da revolta na literatura francesa: o seu teatro reage a esse enfraquecimento da oposição tratando nas próprias obras a revolta dos dominados dentro da e contra a sociedade que recusam e contando a história das forças de contestação quando estas ainda não existem ou estão prestes a desaparecer. Ora, de acordo com as categorias da estética de Marcuse, para romper o nexo social da destruição e da submissão, de modo a tornar possível a libertação dos homens e da natureza, não é preciso tematizar a própria revolução, como sucede nas obras esteticamente mais perfeitas, onde a necessidade da revolução constitui o a priori da arte. Ao contrário do que pensa Goldmann, a tematização da revolução pela obra não faz dela necessariamente uma verdadeira obra de arte: «A literatura pode ser revolucionária num determinado sentido, só em referência a si própria, como conteúdo tornado forma. O potencial político da arte baseia-se apenas na sua própria dimensão estética. A sua relação com a praxis é inexoravelmente indirecta, mediatizada e frustrante. Quanto mais imediatamente política for a obra de arte, mais ela reduz o poder de afastamento e os objectivos radicais e transcendentes de mudança. Neste sentido, pode haver mais potencial subversivo na poesia de Baudelaire e de Rimbaud que nas peças didácticas de Brecht». Estas palavras de Marcuse não são dirigidas contra o teatro de Genet que admirava, mas sim contra a preferência de Lukács pelo realismo como modelo da arte progressista, preferência essa que levou os marxistas ortodoxos a difamar o romantismo, a denunciar a arte decadente e a condenar todas as manifestações literárias e artísticas que não expressassem os interesses e a visão do mundo de uma classe ascendente. (Marcuse acusa a estética soviética de ter imobilizado a dialéctica da libertação.) Mas esta diferença entre Marcuse e Goldmann que deriva, em última análise, de concepções diferentes da relação entre sociedade e literatura, entre teoria social e teoria estética, e do problema das mediações, abordado por Sartre em Questions de Méthode, não deve levar-nos a descartar o contributo fundamental de Goldmann à teoria marxista da arte e da literatura, até porque a sua análise nos ajuda a compreender o ocaso da criação cultural e artística na sociedade contemporânea, retomando o conceito de homem unidimensional de Marcuse. Na sociedade contemporânea na qual o indivíduo perdeu importância e as forças de oposição foram enfraquecidas, o grande escritor que queira dizer o essencial sobre a situação do homem na sociedade estabelecida, esbarra com um duplo obstáculo. Por um lado, o escritor não pode já colocar os grandes problemas da situação do homem numa sociedade que afunila a sua consciência e o priva da sua relevância social e psicológica, ao nível de uma história imediatamente perceptível, isto é, ao nível da biografia de uma personagem central, porque, se o fizer, se arrisca a permanecer prisioneiro de factos casuais sem significação essencial. Mas, por outro lado, se tentar pôr os problemas de conjunto, é forçado a situar-se num nível que, sem ser conceptual, se torna de tal modo totalizante que perde cada vez mais a relação com aquilo que é imediatamente perceptível e vivido. Ao situar-se a este nível mais abstracto, o escritor arrisca-se a não ser compreendido pelos leitores das suas obras, os quais, devido ao estreitamento psíquico e intelectual, são cada vez menos aptos a discernir os fenómenos a este nível de abstracção e de generalização. Goldmann dá-nos o exemplo de uma passagem do romance La Jalousie de Alain Robbe-Grillet: «O calçado ligeiro, de sola de borracha, não faz o mínimo ruído nos ladrilhos do corredor». Os leitores, incluindo um professor americano, não compreendem o sentido essencial desta passagem, interpretando-a em termos de experiência vivida, como se Robbe-Grillet tivesse escrito "um homem caminha em pés-de-lã", em vez de "o calçado ligeiro (...) não faz o mínimo ruído". O que o leitor não compreende é que Robbe-Grillet foi obrigado a contar as coisas de uma maneira diferente, não por ser ridículo, mas porque as próprias coisas se tornaram de tal modo diferentes que não podem ser ditas da maneira consagrada. Para dizer o essencial da sociedade tecnocrática, Robbe-Grillet é obrigado a substituir a forma consagrada - "o homem avança" - por uma nova forma - "o calçado avança": «A história de um homem ciumento é apenas um facto casual, enquanto que as solas que arrastam o homem se tornaram o fenómeno central da vida quotidiana de todos nós, quer disso estejamos conscientes ou não». Deste modo, ao procurar exprimir a ausência de deuses (valores) no mundo moderno, Robbe-Grillet denuncia a reificação vigente, responsável pelo facto de serem realmente as solas quem avança e arrasta o homem, um fenómeno que Goldmann analisou em Recherches Dialectiques. A arte da recusa fala, pois, uma nova linguagem, operando aquilo a que Goldmann chama revolta formal na arte, que, sem a ajuda da crítica, corre o risco de não ser compreendida pelo público: «Quase toda a arte contemporânea é uma arte da recusa que se interroga sobre a existência do homem no mundo moderno e que é obrigada, por isso, a situar-se a um nível abstracto, isto é, a deixar de falar baseada na história de um indivíduo ou até num acontecimento vivido, porque o próprio indivíduo não é já um elemento essencial na sociedade contemporânea, como o era na época de Stendhal, de Balzac ou de Flaubert». Porém, quando reconhece que o Nouveau Roman exprime um empobrecimento geral da criação cultural e literária, Goldmann caminha na direcção do pessimismo que impregna a arte autêntica, advertindo contra a consciência feliz da praxis radical. O caminho que vai do estreitamento da consciência até ao ocaso da literatura, passando pela liquidação do indivíduo, curvou-se sobre si mesmo e fechou-se. A mudança social exigida pela arte não está garantida. E os homens com acesso facilitado às praças da alimentação dos Shoppings deixaram de ser criadores e receptores inteligentes de obras de arte: a afluência - acompanhada pela intolerância ao sofrimento e pela incapacidade de sentir alegria - significa regressão mental e cognitiva, a grande doença do nosso tempo. 

J Francisco Saraiva de Sousa