segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

António Fernandes e o Império do Monomotapa

Grande Zimbabwe (Casa de Pedra), situada perto da 
cidade de Fort Victoria: a sede política do Império
do Monomotapa entre os séculos XII e XVIII.
Graças à longa e sólida monografia intitulada António Fernandes, Southern-Rhodesia's first pioneer, escrita por um historiador de origem inglesa, Hugh Tracey, traduzida por Caetano Montez e publicada em Lourenço Marques (1940), temos conhecimento dos feitos heróicos de um português no continente africano. Afinal, quem foi esse português chamado António Fernandes? António Fernandes, carpinteiro de naus e degredado, foi deixado em Quíloa, na costa oriental de África, pela armada de Pedro Álvares Cabral. Demorando-se pouco tempo em Quíloa, António Fernandes foi para Sofala, o entreposto comercial, a porta do Império do Monomotapa para o exterior desde o século XIV, já dominada nesse tempo pelo feitor português Pedro da Naia. Com efeito, Sofala foi, nas primeiras décadas da ocupação portuguesa, o grande entreposto do comércio do ouro do Monomotapa, onde os portugueses substituíram com sucesso os árabes, captando as boas graças dos nativos e apoderando-se do sistema de tráfico pré-existente. Os mercadores árabes não resistiram à pressão portuguesa e estabeleceram uma nova linha de comércio para o norte, pelo Baixo Zambeze até à costa. Ora, como isso fez diminuir a afluência do ouro a Sofala, os portugueses foram forçados a penetrar no rio Zambeze. Entretanto, antes mesmo de ocorrer essa penetração portuguesa no interior do sertão africano, António Fernandes já tinha visitado o Império do Monomotapa e o seu Imperador, muitos dos seus régulos e dos reinos vizinhos, tendo traçado o roteiro económico desta vasta região, assinalado o desvio do tráfico árabe para o norte e apontado o meio seguro de o sustar, de modo a restituir a Sofala a sua antiga prosperidade que datava do século XIV. Os feitos de António Fernandes, o português que ousou descobrir e explorar o interior do sertão africano até às profundidades da Rodésia, são ilustrados por dois documentos da época: o roteiro das suas viagens, escrito em Sofala por Gaspar Veloso e dirigido ao rei em 1515, e a carta de João Vaz de Almada, alcaide-mor da fortaleza, datada de 1516, onde podemos ler estas palavras: «E sabe já a língua da terra um António Fernandes (...) que já tem ido ao Monomotapa e tem tanto crédito por todas estas terras que o adoram como Deus e que onde ele for, ainda que haja guerras, logo por amor dele são apagadas». Para circular livremente nos sertões africanos e visitar os régulos, António Fernandes precisava não só de conhecer a língua da terra para comunicar directamente com eles, mas também do auxílio e da confiança dos nativos. Adorado como um deus, qual Cortez entre os astecas, António Fernandes regressava das suas expedições acompanhado por muitos cafres e com abundante carga de ouro, recebida em troca dos indispensáveis e atractivos presentes que oferecia aos régulos. Mas, tal como sucedia com Cortez, o ouro tomou posse da mente de António Fernandes, dando-lhe plena consciência do valor político, económico e militar dos seus conhecimentos e propostas para combater as manobras dos comerciantes árabes. Como escreveu Gaspar Veloso no final do seu roteiro: «Todas estas cousas tinha António Fernandes em segredo, sem as dizer a ninguém, para as dizer a Vossa Alteza. E porque ele voltou ao Monomotapa, com risco de morrer, por causa das muitas guerras que há nestas terras, roguei-lhe que se algumas coisas de vosso serviço tinha guardadas para dizer a Vossa Alteza mas dissesse para eu as escrever a Vossa Alteza, por ele sempre me dizer que desejava ir a Portugal para dizer a Vossa Alteza coisas do seu serviço». É provável que António Fernandes não tenha voltado a Lisboa, pelo menos para partilhar os seus segredos com o rei, conforme era o seu desejo, mas confiou as suas descobertas e coisas reveladas ao funcionário da feitoria de Sofala, Gaspar Veloso, que lhes deu forma escrita para as enviar ao rei de Portugal. Vitorino Magalhães Godinho dedica cerca de 27 páginas da sua monumental obra Os Descobrimentos e a Economia Mundial ao ouro do Monomotapa, as quais pecam pela escassez de molduras factuais longas susceptíveis de agarrar o leitor à complexidade das relações comerciais, políticas e militares entre portugueses, árabes e negros. Além disso, Magalhães Godinho negligencia o papel de António Fernandes na exploração do sertão africano, como se as tentativas portuguesas para abrir o caminho pelo Cuama (Zambeze) - a primeira das quais remonta a 1513 - não tivessem nada a ver com as suas expedições. Os portugueses lançaram-se ao descobrimento do caminho marítimo para a Índia (Vasco da Gama) em demanda das especiarias e não em busca do ouro: a costa oriental de África - em especial a costa de Sofala e a ilha da Lua (Madagáscar) - garantia segurança e comodidade às viagens comerciais por esta rota que acompanha de largo quase todo o litoral africano do oceano Índico. Porém, em 1505, depois de apurado o conhecimento do ouro do Monomotapa, extraído das três regiões de Butua (região do Transval), Mokaranga (planalto da Rodésia do Sul) e Manica (planalto de Manica e serra de Inyanga), e exportado nas cidades litorais para o mar Roxo, a política comercial pacífica e aberta dos portugueses, da qual tinha resultado a abertura da feitoria de Sofala em 1502, foi substituída pelo estabelecimento do monopólio do ouro (João de Barros) pela força das armas e pela presença militar, de preferência com o apoio dos cafres contra os mouros, inimigos da fé católica. A viragem operada em 1505 tinha como fim último garantir a apropriação do tráfico do ouro, através do estabelecimento do domínio político sobre Sofala e Quíloa. A construção colonial de Moçambique foi um processo demasiado longo, marcado por muitas peripécias, algumas das quais serão descritas mais adiante: a viragem de 1505 traduz o interesse de Portugal em ocupar as terras do Monomotapa, integrando-as e inscrevendo-as inicialmente nos circuitos comerciais e na geografia política do Império Português do Oriente, cuja história foi reconstruída por Jaime Cortesão.

O estudo do Império do Monomotapa coloca um desafio à teoria marxista da sucessão descontínua dos modos de produção. Os intelectuais terroristas da Frelimo, o partido que conquistou barbaramente o poder político em Moçambique em 1975, depois da não menos bárbara e curta descolonização portuguesa, difundiram por má-fé o erro de apresentar o Império do Monomotapa como uma articulação entre uma civilização da era dos metais e uma organização feudal, como se fosse possível a existência de um modo de produção feudal na África Negra. Graças aos estudos de J. J. Maquet e de Jean Suret-Canale, sabemos que as sociedades africanas pré-coloniais, com excepção das sociedades primitivas dos Pigmeus e dos Bosquímanos, podem ser classificadas em dois tipos principais: as sociedades sem Estado (sociedades tribais), tendo como célula fundamental a família patriarcal, baseadas tanto no parentesco matrilinear como no parentesco patrilinear, e organizadas em aldeias que agrupavam diversas famílias; e as sociedades com uma organização estatal (sociedades de classes), dotadas de uma estratificação social assente sobre as mesmas bases das sociedades sem Estado. Três tipos de sociedades que coexistiram em África durante o período pré-colonial: as comunidades primitivas, as sociedades tribais e as sociedades de classes, nenhuma das quais parece assentar no modo de produção esclavagista ou no modo de produção feudal. Ora, se não foram sociedades esclavagistas ou sociedades feudais, as sociedades africanas parecem estar estruturalmente mais em sintonia com modelos embrionários do modo de produção asiático. A existência de escravatura ou de relações de vassalagem não são elementos suficientes para definir uma sociedade como esclavagista ou como feudal, respectivamente. A escravatura estava de tal modo enraizada na África pré-colonial do século XV que os negreiros europeus não tiveram de se esforçar muito para desenvolver essa instituição no contexto do mercado mundial gerado pelo modo de produção capitalista, utilizando como fornecedores intermediários africanos. A distinção entre cativo e homem livre gera uma clivagem social que, mesmo nas sociedades tribais, rompe com o igualitarismo primitivo. Mas a perda da liberdade que se verifica nessas sociedades não significa que o cativo tenha um papel economicamente definido na produção social: o cativo está incorporado - na maioria dos casos - na família patriarcal ou na aldeia, no seio das quais desempenha frequentemente funções públicas. Sendo mais jurídica do que económica, a condição de cativo nunca foi usada para explorar a sua mão-de-obra em grandes domínios agrícolas, a não ser em casos tardios e marginais como os da utilização de cativos nos palmeirais pelos reis de Daomé no século XIX e nas plantações criadas no mesmo século em Zanzibar e nas outras ilhas do oceano Índico. Na África pré-colonial, a escravatura nunca constituiu a base de um modo de produção com uma extensão geográfica considerável. As sociedades tribais constituem formas de transição das comunidades primitivas para as sociedades de classes: a partir do momento em que o estado das forças produtivas permite o aparecimento de um excedente económico, as sociedades tendem a diferenciar-se socialmente, surgindo classes privilegiadas que se apropriam de algum modo desse excedente. Mas as sociedades africanas pré-coloniais que seguiram esta via da diferenciação social não foram sociedades feudais, como se pensou erradamente durante muito tempo: a expressão feudalismo africano é, portanto, destituída de conteúdo. Com efeito, nas sociedades de classes africanas, as colectividades familiares e aldeãs continuam a funcionar como quadros da produção social: os campos colectivos, destinados a satisfazer o imposto em géneros, tornam-se, em parte, campos dos chefes, cujas funções tradicionais servem de cobertura à introdução da exploração e da dominação de classe. E, mesmo quando estes poderes se estendem a grupos vizinhos mediante o uso da força militar, eles não mudam de forma: ao lado dos chefes ou dos reis tradicionais, herdeiros directos dos antigos chefes de terra, surgem chefes de bandos que se impõem pela força das armas e pela violência. Os explorados não são os indivíduos mas os membros da aldeia, cujo chefe se encarrega de recolher os tributos, as rendas e os impostos para os enviar ao rei, no caso de não ser ele próprio o rei. Mas tanto os explorados como os exploradores são títulos colectivos: o rei só utiliza uma ínfima parte dos seus rendimentos em fins estritamente pessoais, sendo o grosso usado para manter a família patriarcal, demasiado extensa devido à poligamia, ou a "casa real" que também inclui um séquito de cativos. Nestas sociedades hierarquizadas, o aparelho de Estado confunde-se com a "casa real" e com a classe dominante, e, logo que o Estado adquire dimensões grandiosas, o rei cede aos seus dignitários ou funcionários o benefício, total ou parcial, das rendas que recebe. A hierarquia aristocrática e o desenvolvimento do Estado não modificam o estatuto da propriedade: a terra constitui um bem colectivo inalienável e, pelo que sabemos, a África Negra pré-colonial não conheceu um regime de propriedade de bens de raiz que comportasse a existência de direitos privados. Ora, na ausência de verdadeiros feudos, não podemos falar de relações de produção feudais. As sociedades africanas pré-coloniais seguiram uma outra via de desenvolvimento social, a via "oriental" do modo de produção asiático. Alfred Métraux estabeleceu uma analogia entre o Império dos Incas e o antigo reino de Dahomey, de modo a descartar as falsas analogias com Roma Antiga, os modernos Estados ou mesmo as repúblicas de Utopia. O Estado de Dahomey foi fundado a partir das sucessivas conquistas realizadas pelos soberanos de Abomey, que, tal como os Incas, respeitavam a autoridade das comunidades aldeãs e dos seus chefes locais: em vez de serem substituídos, os chefes tradicionais eram integrados na hierarquia de funcionários do Estado, dominada no topo pelos membros da família real. Os reis de Dahomey mantinham-se informados sobre os recursos do Estado, através de censos da população classificada por idades que mandavam efectuar periodicamente. A recolha de tributos e o recrutamento de soldados eram realizados com todo o rigor pelo corpo administrativo do Estado. O Estado era temido e obedecido e os enviados do rei (recadères) tinham a mesma autoridade que os inspectores do Inca (tokoyrikok). As mulheres que as comunidades submetidas proporcionavam ao rei eram alistadas num exército feminino, em vez de serem enclausuradas em conventos para servir os nobres e os deuses, como sucedia na sociedade inca. A analogia entre uma civilização pré-colombiana, a civilização inca, e o antigo reino de Daomé é aqui utilizada para demonstrar que uma administração de tipo burocrático pode desenvolver-se num povo sem escrita, americano ou africano, ao mesmo tempo que nos permite minar a argumentação ideológica dos intelectuais terroristas da Frelimo. Mas, antes de encerrar este parágrafo, pretendo partilhar a ideia de Alma predominante em Daomé. Este povo africano acreditava que todas as pessoas têm, pelo menos, três almas, e os adultos do sexo masculino, quatro almas. Uma dessas almas herda-se de um antepassado e constitui o "espírito guardião" de um indivíduo. Antes de assumir o seu papel de guardião, o espírito descobre a argila com a qual será feito o corpo daquele que tem de proteger em vida. A segunda é a alma pessoal e a terceira é a pequena porção do Criador que «vive em todo o corpo da pessoa». Em termos de pensamento ocidental, a primeira alma pode ser concebida como o aspecto biológico de um indivíduo, a segunda como a sua personalidade, e a terceira como o seu intelecto ou intuição. A quarta destas almas, a dos adultos do sexo masculino, está associada com a ideia de Destino. Esta última alma ocupa-se não só dos assuntos do indivíduo, que assumiu a sua adoração formal, mas também do destino colectivo da sua casa familiar: o homem de Daomé pensa que, quando atinge a idade adulta, a sua vida pessoal não pode alcançar o seu desenvolvimento pleno fora das vidas daqueles que partilham o mundo da vida com ele. Um pensamento profundo que nos reconduzirá à temática da monarquia divina, um tema que levou Géza Róheim - ofuscado com o poder do falo! - a considerar os reis do Egipto como os verdadeiros representantes da realeza africana, como se não houvesse um fosso entre a realeza egípcia e a realeza banto.

Como é evidente, a construção teórica da história do Império do Monomotapa esbarra contra a ausência de documentos escritos nativos: uma civilização do ferro, como lhe chamou Magalhães Godinho, que não descobriu nenhuma forma de escrita, não pode ser apresentada como uma civilização desenvolvida, dotada - na imaginação de alguns pobres de espírito! - de técnicas sofisticadas de extracção do ouro. Uma parte significativa dos documentos escritos sobre o Monomotapa é da autoria dos cronistas, feitores e missionários portugueses. O esboço da história do Império do Monomotapa que a seguir vou apresentar, visa desconstruir a história de Moçambique, tal como foi elaborada pelos intelectuais terroristas da Frelimo. Cerca de 1325, uma tribo banto, os Makaranga, atravessou o rio Zambeze e fixou-se no planalto central da Rodésia do Sul, entre os rios Save e Pungue, donde estendeu gradualmente o seu território até formar uma confederação de tribos chonas - a saber: manhica, zezuru, kalanga, ndau e korekone - que falavam a mesma língua. Esta confederação tribal está na origem do Império do Monomotapa, cujo domínio territorial e político se estendia do Zambeze ao Limpopo e do deserto do Kalahari ao oceano Índico. Os intelectuais terroristas da Frelimo violam o espírito de rigor da teoria marxista da história, provavelmente em nome de um marxismo africano!, quando tentam definir um modo de produção a partir de uma forma de organização estatal: «Certamente, a servidão e a sujeição à corveia não constituem uma forma especificamente medieval e feudal; encontramo-la por todo o lado ou quase por todo o lado onde o conquistador obrigou os antigos habitantes a cultivar a terra por sua conta» (Engels). Definindo o feudalismo como «um sistema em que todos trabalham para servir um único chefe e proprietário de tudo» (sic), os intelectuais terroristas da Frelimo não se inibem quando declaram que «o Império do Monomotapa era um estado feudal», na medida em que, sendo «o chefe supremo de tudo que havia no reino», o rei obrigava todos - os agricultores, os mineiros e os trabalhadores de ferro - a trabalhar para ele. É certo que parece haver uma vacilação entre o uso económico e o uso jurídico-político do termo feudalismo, mas no essencial ele é usado para designar o modo de produção do Império do Monomotapa, colocado ao mesmo nível do feudalismo que se desenvolveu na Europa do Norte. Quando definida como uma aliança de tribos chonas sob o domínio do Monomotapa, o Senhor das Minas, que governava como um grande soberano, tendo vários outros reis ou chefes de tribos debaixo da sua autoridade, a organização política do Império do Monomotapa pode ser comparada com o aparecimento do Ghana (região Achanti) na costa ocidental de África, mencionado nos textos árabes a partir do século VIII. A própria palavra Ghana, título do soberano, significa chefe de guerra: o Ghana era o chefe de uma confederação tribal que, além disso, tinha as atribuições de um chefe de terra ou, pelo menos, de senhor do ouro. A exploração dos aluviões auríferos era praticada no quadro da comunidade patriarcal: os nativos dedicavam-se a ela na estação morta, após as colheitas, sendo a abertura de um depósito celebrada com cerimónias similares às do início dos trabalhos agrícolas, com o chefe da família e, acima dele, o chefe de terra a repartir os jazigos auríferos. O rei do ouro, o chefe supremo da terra, tinha direito às pepitas, e os mineiros contentavam-se com o pó de ouro, do qual o senhor do ouro recebia provavelmente um dízimo. Ao qualificar o Ghana de país do ouro, os árabes deixam transparecer que o ouro já era objecto do comércio local, muito antes deles terem dado um impulso considerável ao comércio do ouro: os mercadores árabes ou berberes iam buscar o ouro à capital, Koumbi Saleh, cidade dupla que compreendia a residência do rei e da sua casa real (cidade real) e, a uma grande distância, a cidade comercial, habitada por mercadores muçulmanos. O ouro era levado pelos comerciantes autóctones dos jazigos auríferos do sul para a capital, onde o trocavam pelas mercadorias (sal, cobre) trazidas pelos mercadores muçulmanos. O chefe de guerra recebia as suas taxas nessa ocasião, ao mesmo tempo que assegurava a boa ordem das transacções comerciais. Esta função comercial desempenhou um papel fundamental na origem e consolidação da maior parte dos Estados da África negra, não só na costa ocidental mas também na costa oriental, as duas costas africanas exploradas e ocupadas muito mais tarde pelos portugueses sedentos de ouro. De facto, os Estados do Ghana e do Monomotapa baseiam-se na articulação de uma confederação tribal e de um mercado, cuja boa ordem é assegurada pelo grande soberano e do qual ele tira uma parte importante dos seus rendimentos. Ao ouro o Império do Monomotapa acrescentou o ferro e o marfim, os três grandes produtos que exportava para o mundo árabe. O ouro das jazidas do Monomotapa apresenta-se sob quatro formas diferentes: em pó fino, em grãos pequenos ou graúdos, em lascas espessas ou finas, e em pedras ou mesmo pedregulhos, sendo a escavação o método mais corrente de extracção. As actividades mineiras tinham ritmos diferentes de exploração nas regiões auríferas de Manica e do Mokaranga: em Manica podiam prosseguir durante todo o ano, enquanto que no Mokaranga estavam reduzidas aos meses de Agosto, Setembro e Outubro, os três meses da estação do crimo, quando, depois de acabar a monção, as chuvas começavam a cair moderadamente, fornecendo as águas indispensáveis aos trabalhos de extracção do ouro. Quando se aproximava a estação do crimo, os cafres e as suas famílias dirigiam-se para as zonas auríferas e dividiam-se em aldeias, cada uma das quais sob o governo de um chefe. Cada grupo escavava um poço (marondo), dentro do qual traçava uma escada, e, a partir do fundo, abria galerias que seguiam os filões referenciados: as rochas auríferas eram quebradas com grandes alavancas de ferro, a terra aurífera era arrancada com enxadas de folha de ferro e as matacas (pedaços de ouro) eram transportadas em recipientes de madeira que passavam de mão em mão. A vida dos mineiros estava constantemente em perigo: as abóbadas das galerias, raramente suportadas por uma estrutura de paus e vigas, ruíam com frequência, soterrando os mineiros. Quando em Novembro chegavam as chuvas diluvianas, os poços e as galerias sofriam inundações «por falta de engenho para esgotar a água» (Padre Manuel Barreto). Outro método usado de extracção do ouro era a apanha das areias auríferas (Moquet), à qual podiam dedicar-se todo o ano, sendo essa apanha mais produtiva na estação das chuvas e logo depois de esta acabar. Os cafres preferiam o ouro das ribeiras ao ouro das minas (bar), apesar do ouro das minas do Mokaranga igualar (ou superar) em teor o ouro das ribeiras de Manica, onde não era tão abundante devido ao clima mais seco. Ora, no Império do Monomotapa, os mineiros não podiam extrair ouro sem autorização régia, sob pena de morte (Carta de Diogo de Alcáçova). No entanto, apesar dessa exigência régia, o rei nada cobrava do ouro extraído, além de não cobrar quaisquer impostos prediais: os cafres só estavam sujeitos, em relação ao Monomotapa e aos senhores (encoses), a corveias ou geias, obrigatórias e regulamentadas, e, para serem recebidos por eles, tinham de lhes oferecer dádivas, por modestas que fossem. Nas feiras que se realizavam no Império do Monomotapa, os comerciantes punham de lado alguns dos artigos (panos de algodão, por exemplo), que depois enviavam ao Monomotapa para serem recebidos por ele. Embora não fossem obrigados a fazê-lo, os cafres ofereciam dádivas ao Monomotapa quando o visitavam: as ofertas faziam deles homens do reino e não meros párias. Quando pretendia o ouro, o Monomotapa mandava distribuir algumas vacas entre os mineiros, consoante o seu número, e estes exprimiam a sua gratidão oferecendo-lhe uns grãos de ouro, até um mitical cada (João de Barros), ou prestando-lhe alguns dias de trabalho, a descontar nas corveias que lhe deviam (Padre Manuel Barreto, Padre Monclaro). Apesar da ausência de impostos sobre a extracção, os mineiros eram explorados: os senhores e os seus acostados e escravos apoderavam-se frequentemente do ouro pela força, levando os mineiros a contentar-se com pouco ou mesmo a fugir das minas. A extracção do ouro atingiu o seu máximo rendimento durante o reinado de Matope, quando a afluência da riqueza à capital do Império despertou a cobiça dos outros reinos: o grosso da produção aurífera escoava para os portos marítimos de Sofala e Quíloa, e toda a sua exportação por mar estava nas mãos dos mouros, que, embora não tenham tentado exercer qualquer domínio sobre as zonas mineiras, estavam ligados ao processo produtivo, através da venda prévia aos indígenas de artigos que os incitavam a ir trabalhar. O despertar da mineração aurífera na África meridional-oriental remonta ao início do século VII, sendo o seu comércio dominado pelos árabes pré-maometanos e outros ribeirinhos do mar Roxo. Os séculos XI e XII representam provavelmente uma segunda grande transformação do comércio do ouro nestas regiões africanas. Mas foi nos séculos XIV e XV que surgiu a civilização do Monomotapa, aquela com a qual contactaram os portugueses: os mercadores do mar Roxo abriram e traçaram a grande rota marítima do ouro, edificando cidades marítimas - Mogadoxo, Melinde, Mombaça, Quíloa, Moçambique, Angoxa ou Sofala - ao longo de todo o seu percurso, de preferência nos lugares de escala de navegação ou de realização de feiras, nas entradas das picadas de penetração terrestre ou fluvial e nas ilhas. Os portugueses conquistaram mais tarde esta grande rota marítima do ouro, expulsando os mouros e apoderando-se das minas auríferas do Monomotapa. O Império do Monomotapa não foi uma confederação tribal estável, sendo a sua história marcada por inúmeras guerras de conquista e por revoltas das tribos submetidas à autoridade do Monomotapa, para já não falar das lutas pelo poder que ocorriam sempre que morria um imperador. Não admira que os cronistas portugueses temessem pela vida dos seus quando estes iam visitar o Monomotapa ou qualquer outro régulo no interior profundo do sertão africano: o litoral era mais seguro do que o interior, até porque os reis cafres da terra-firme não se interessavam nada pelo litoral, permitindo a sua ocupação pelos mercadores estrangeiros. Os intelectuais terroristas da Frelimo dividiram abusivamente a história do Império do Monomotapa em três períodos: o primeiro período chona (1325-1600), o período de declínio do império (1500-1600) e o segundo período chona (1600-1700). Porém, a ascensão da dinastia Changamine e a concomitante divisão do Império em dois reinos, aquilo a que chamam o período de declínio do Monomotapa, marcam o fim do próprio Império, acelerado pela chegada dos portugueses à costa oriental de África. O segundo período chona não consegue reconstruir o império, cujo ocaso coincide com a morte de Matope em 1480: a ruptura da aliança entre as tribos chonas sob domínio do Monomotapa implicou uma regressão de modo de produção, com os diversos reinos a voltar aos antigos modelos de sociedades tribais. O comércio com os árabes tinha facilitado a formação de um Estado Despótico nesta região oriental de África, mas a partir do momento em que os portugueses se apoderaram desse comércio e da própria exploração das minas de ouro essa condição de consolidação do Estado Chona desapareceu, forçando as tribos banto a regressar às sociedades tribais. Por isso, em vez de acompanhar uma divisão arbitrária, de contornos cronológicos duvidosos, o melhor será substituí-la pela clássica expressão de Ascensão e Queda do Império do Monomotapa.

Ascensão e Apogeu do Império do Monomotapa. A tribo dos makaranga que fundou o Império do Monomotapa era uma tribo patrilinear que se dedicava à agricultura, à pastorícia e à transformação dos minerais em ferro e ouro. Quando se fixou no planalto central da Rodésia do Sul, NeMbire era o seu chefe tribal. Foi ele que, com a ajuda do seu cunhado Mutota Churuchamutapa ("aquele que assiste o Senhor das Minas", o Monomotapa), alargou o território para o sul, submetendo diversas tribos chonas à sua autoridade. O seu reinado foi marcado não só pela política centralizadora, mas também pelo desenvolvimento do trabalho nas minas, cujos produtos - o ouro e o ferro - eram enviados até ao porto de Sofala, onde os mercadores árabes os trocavam por outras mercadorias. Depois da sua morte, sucedeu-lhe no trono o seu filho mais velho, NeMbire II, que continuou a sua política centralizadora, submetendo cada vez mais tribos ao seu domínio. Porém, quando tentou dominar uma tribo Rozwi, instalada perto do Alto Limpopo, NeMbire II encontrou uma tal resistência que teve de enviar os seus homens armados para depor o chefe Rozwi e colocar o seu neto Chicura na chefia dessa tribo. Deste modo, através de uma sucessão de conquistas, formou-se o Império do Monomotapa como uma confederação tribal submetida ao domínio do rei Makaranga. Três tribos chonas - cada uma das quais com os seus clãs! - agruparam-se sob a autoridade do rei Makaranga: a tribo dos Makaranga que dominava a zona central entre o Zambeze e o Save, a tribo dos Rozwi que dominava o sul entre o Save e o Limpopo, e a tribo dos butua que dominava o interior leste deste território. Quando NeMbire II morreu em 1420, iniciou-se uma luta pelo poder que levou ao trono do Monomotapa o chefe tribal dos Rozwi, Chicura. Porém, coube a Mutota a tarefa de submeter as tribos Manica e Quiteve, de modo a garantir o acesso a Sofala, onde os árabes tinham uma fortaleza dirigida por um sultão que pagava tributo ao chefe de Quiteve. A capital foi instalada por Mutota no Nordeste do Império, perto do rio Uteve na colina Chitako e, tal como as restantes cidades, era um Zimbabwe, isto é, uma fortaleza feita de grandes blocos de pedra ajustados uns aos outros sem a utilização do cimento para os unir. O Estado Rozwi que emergiu neste reinado era um Estado teocrático: o rei era considerado como um deus, portanto, como um ser de origem divina, sendo a realeza divina simbolizada por figuras de pássaros esculpidos em pedra-sabão, associados com cultos de fecundidade e fertilidade: «Um antigo historiador português conta-nos que o quiteve, ou rei de Sofala, no sudeste da África, é um cafre de cabelos encarapinhados, um pagão que não adora coisa alguma e não tem nenhum conhecimento de Deus. Pelo contrário, considera-se o deus de todas as suas terras, sendo como tal também considerado e reverenciado pelos seus súbditos. Quando estes são assolados pela escassez ou têm necessidade de alguma coisa, recorrem ao rei, acreditando com firmeza que ele lhes pode dar o que desejam ou de que precisam e que pode tudo obter dos seus antecessores mortos, com os quais, é crença geral, está em contacto. Por isso, pedem ao rei que lhes dê chuva, quando necessário, e outras condições atmosféricas adequadas para a colheita. Ao fazerem tais pedidos, oferecem-lhe presentes valiosos, que o quiteve aceita, dizendo-lhes que voltem para casa, pois as suas solicitações serão atendidas. São tão bárbaros que, embora vejam com que frequência o rei não lhes dá o que pedem, não se sentem decepcionados, dando-lhe presentes ainda maiores. Tantos dias são gastos nessas idas e vindas que a chuva afinal chega, e os cafres sentem-se satisfeitos, acreditando que o rei os atendeu enquanto não havia recebido presentes suficientes e enquanto não havia sido bastante importunado, como ele próprio afirma, com o fim de os manter no seu engano» (James Frazer).

Ao referir o caso da divinização do rei de Quiteve, um dos reinos integrados na confederação tribal do Monomotapa, James Frazer captou o núcleo essencial da religião do Império do Monomotapa. Magalhães Godinho precipita-se quando diz que «não há classe sacerdotal, mas praticou-se o regicídio ritual ligado ao culto do céu fertilizante». Deitando mão da teoria da genitalidade proposta por Sándor Ferenczi, Géza Róheim procurou demonstrar que, nas sociedades primitivas, os feiticeiros - os praticantes da magia negra - foram os ancestrais dos homens-médicos, porque, sendo o coito uma espécie de auto-castração, no final do qual o homem se livra do sémen, uma parte do seu próprio corpo, os homens primitivos têm necessidade de um castrador, projectando no espaço a sua imagem. O feiticeiro assume nessas sociedades o papel de castrador e, para não ser castrado pelos outros e não perder a sua semente no mergulho carnal no interior uterino do corpo maternal, como sucede com os homens comuns quando copulam com as suas mulheres, evita a mulher e a experiência do orgasmo, de modo a conservar intacto o seu bastão, a sua vara, o seu pénis, a origem e o substrato do seu imenso poder mágico. Ora, o seu pénis castrador torna-se responsável pela morte, a qual se deve à magia negra: o simbolismo coital da morte mais não é do que uma astúcia do inconsciente, uma genitalização do instinto da morte. O homem-medicina começa a sua carreira morrendo, e, quando renasce, dedica toda a sua vida aos doentes e aos cadáveres. A carreira do feiticeiro e do homem-medicina é moldada pelas forças das organizações pré-genitais da libido, podendo ser acompanhada da fase oral à fase genital ou fálica, passando pela fase anal: o que significa que todas as possibilidades libidinais são representadas e condensadas nas figuras do feiticeiro e do homem-medicina, de modo a conservar e a perpetuar o seu sadismo essencial, cuja atitude anal devém destrutiva, com o pénis a figurar como arma mágica. Nas suas relações com o sobrenatural, o feiticeiro e o homem-medicina aparecem como personagens vencidas pelo coito, a mãe, e nas suas relações com os laicos, são o pai ameaçador, a mãe protectora e a criança que mama. Porém, sem entrar na subtileza da teoria de Géza Róheim, convém passar do plano do indivíduo (feiticeiro) e da arte médica (homem-medicina) para o da própria sociedade, cujas forças responsáveis pela formação dos grupos são as mesmas atitudes libidinais descobertas na cura da doença, o ritual mediante o qual o homem-medicina aspira por sucção a doença do seu paciente e a digere. Com a divinização do rei, o simbolismo fálico torna-se mais evidente do que no seu precursor, o homem-medicina. Deixando atrás de si os traços das organizações pré-genitais, o rei divino surge como um phallus, o pára-raios ou bode expiatório da sociedade. A soberania é uma mulher, e o homem que a conquista é o Grande Senhor das mulheres. Na evolução da humanidade, a fase representada pela realeza divina é uma lembrança da horda primitiva: o rei é não só o homem que comete o incesto, como sucedia no Egipto Antigo, e que é assassinado, mas também o pénis erecto que lembra que o pai primordial deve ser o falo do grupo. À horda primitiva sucede uma sociedade democrática ou, pelo menos, uma sociedade gerontocrática: um corpo social desprovido de centralização fálica e, portanto, de genitalidade, que, quando recapturado pela realeza divina, implica um retorno à organização original, a sociedade de um único pénis, o pénis mágico - quase fantasma - do rei divino. Os súbditos do Monomotapa evitavam ver a cara do rei quando este lhes falava atrás de uma espécie de cortina: eis aqui um comportamento de reverência e de temor - o temor de perder uma parte do corpo! - que testemunha a divinização do rei, o homem-deus que, quando morria, era sepultado num túmulo - o útero materno! - no interior do seu palácio-templo. E, em Daomé, tal como na Índia do século XIX, grupos inteiros de esposas e de servidores eram sacrificados no túmulo do rei defunto. Como vimos no texto dedicado à religião dos bantos, cada linhagem e cada clã tinha as suas próprias deidades, que eram deuses para os seus descendentes, sem no entanto serem ignorados pelos membros de outros grupos de parentesco. Os grupos dos clãs reais eram adorados não só pelos membros da família real, mas também por todos os súbditos do rei. Nestes cultos de adoração dos antepassados desta ordem, o membro de posição mais antiga do grupo de parentesco era, simultaneamente, o seu chefe e o seu sacerdote, que, pelo facto de estar mais próximo dos deuses ancestrais, intercedia junto deles a favor dos seus parentes. Em Daomé, a apresentação de uma mensagem real aos antepassados no templo ancestral era acompanhada pela execução de algumas vítimas, pelo menos quando o rei tinha alguma coisa importante para comunicar aos antepassados. Além disso, cada clã realizava uma vez por ano uma festa sumptuosa em nome dos deuses ancestrais, cujas cerimónias incluíam ladainhas, danças, oferendas de alimentos, libações de bebidas e sacrifícios de animais ou mesmo de seres humanos, no caso da festa anual do clã real. Ora, se os deuses distantes das agitações da vida terrena podem morrer, como contam as cosmogonias de diversos povos, os homens-deuses que têm a sua morada num frágil tabernáculo de carne degenerativa - ou, como diríamos hoje em linguagem genética, num tumor andante! - não escapam ao mesmo destino fatal. É certo que houve reis africanos que se imaginavam imortais em virtude das suas poderosas feitiçarias, mas os povos notaram que os seus reis envelheciam, tornando-se fracos e acabando por morrer. Acreditavam que as suas vidas e a segurança dos seus mundos dependiam de um desses homens-deuses, e, por isso, cuidavam da vida do rei, como medida de preservação das suas próprias vidas. A fragilidade da vida do rei divino levou-os a pensar nas catástrofes que podiam ocorrer com o enfraquecimento gradual dos seus poderes e com a sua morte, e, para evitar essas catástrofes, alguns povos africanos matavam os seus reis, antes deles começarem a perder os seus poderes sobrenaturais, transferindo assim o vigor da sua alma para um sucessor. Infelizmente, carecemos de uma cartografia religiosa exaustiva da África pré-colonial. Embora o regicídio e o canibalismo ritual façam parte integrante do complexo da realeza divina, não tenho conhecimento da prática do regicídio ritual no Império do Monomotapa, como sugere Magalhães Godinho, pelo menos durante o período histórico que estamos a analisar, aquele que corresponde verdadeiramente ao domínio do Monomotapa: o que podemos dizer é que muito mais a norte, no vale do Nilo Branco, os dinkas não deixavam o fazedor-de-chuva morrer de morte natural, porque pensavam que, se tal facto adverso ocorresse, a tribo sofreria de doenças e de fome e os rebanhos de gado bovino não se multiplicariam. Assim, quando o fazedor-de-chuva se sentia velho e doente, os dinkas abriam uma grande cova - o útero materno acolhedor e quente!, onde ele se deitava e permanecia durante horas ou mesmo mais de um dia, rodeado pelos amigos e parentes, até pedir que o cobrissem com terra. A terra lançada sobre ele causava-lhe a morte por sufocação, e o seu valioso espírito passava ao seu sucessor.

No tempo de Mutota, a sociedade era já uma sociedade de classes: a própria estrutura ou forma arquitectónica das cidades-fortalezas de pedra revela essa estrutura de classes. A arqueologia mostrou que cada um dos reis ou dos chefes tribais que pagava um imposto anual ao Monomotapa vivia numa cidade de pedra, chamada Zimbabwe. As ruínas dessas cidades - cerca de 58 cidades de pedra foram estudadas! - permitem distinguir três tipos de edifícios: o templo oval cercado por uma muralha, no interior da qual se erguiam duas torres cónicas; uma fortaleza situada numa elevação a 500 metros do templo; e as ruínas de habitação entre a fortaleza e o templo. A divisão do trabalho entre mineiros e agricultores gerou diferenças sociais: os artesãos e os mineiros faziam parte da estrutura social do Império, embora não pertencessem às suas camadas sociais superiores, enquanto os agricultores conservavam as tradições tribais. Mas esta não era a única diferença social nem sequer a mais importante: as ruínas revelam que nos arredores da cidade havia palhotas tradicionais, cabanas circulares de pau, cobertas de colmo ou terra, habitadas pelos membros das classes exploradas, bem como cercados para o gado. Havia, portanto, duas cidades: a cidade dos homens ricos e poderosos, a cidade real ou acrópole, o grande centro da vida urbana e comercial do reino, habitada pelo senhor máximo e pelos seus militares ou funcionários, e, nos seus arredores, os subúrbios urbanos - ou aldeias - da população explorada que se dedicava à agricultura - cultivo do milho miúdo, sorgo e outros cereais, além dos legumes - e à criação de gado bovino e ouvino. Mutota morreu em 1450 sem ter conseguido anexar toda a região entre o Zambeze e o Limpopo, tarefa que será realizada pelo seu filho e sucessor. Com efeito, Matope submeteu ao seu domínio os povos báruè e a região do estuário do Zambeze, que lhe deu mais uma porta para o comércio exterior: Quelimane. A riqueza acumulada pelo Monomotapa despertou a cobiça dos chamados reis vassalos que sonhavam com a conquista do poder central: alguns desses reis revoltaram-se e tentaram escapar ao poder do Monomopata, não lhe pagando os tributos ou impostos. Para consolidar o seu poder, Matope reuniu um grande exército e subjugou pela violência todos os reinos que ousaram pôr em causa a sua autoridade. Além disso, dividiu o império em diversas províncias, cujos governos eram entregues a membros da sua família. A zona sudeste do império foi dividida em sete províncias - Chidima, Utonga, Báruè, Shiringa, Manica, Quiteve e Mandanda, governadas pelos filhos de Matope. A região sul foi entregue a dois parentes Rozwi, Torwa e Changa, e a região norte do vale do Zambeze ficou nas mãos dos seus irmãos. O reinado de Matope constitui o apogeu do Império do Monomotapa, ao mesmo tempo que acentua as suas contradições internas: o poder central era obedecido em todo o território, o comércio com o exterior floresceu de modo exuberante, as minas alcançaram o seu maior rendimento, e a autoridade de Matope era temida pelo povo e pelos reis vassalos. Contudo, a divisão administrativa do império não foi suficiente para consolidar a sua unidade territorial e política: a ausência de meios de transporte e de comunicação - não havia estradas! - produziu o isolamento de certas províncias deste vasto território, cujos governantes começaram a identificar-se como reis divinos. Os árabes sentiam-se ameaçados com o poder absoluto do Monomotapa: o aumento dos preços do ouro e de outros metais levou-os a incitar certas tribos à rebelião. O chefe Rozwi, Changa, foi o primeiro a declarar-se independente do Monomotapa, tendo recebido dos árabes o título honorífico de Emir e passando por isso a usar o nome de Changamire. A morte de Matope em 1480 deu origem a uma série de guerras pelo poder que arruinaram a estrutura política do império. Nhahuma que sucedeu a Matope enviou um exército para depor o rei rebelde, mas, como foi derrotado em diversas batalhas, não conseguiu reunificar o império sob o seu domínio. O vitorioso Changamire convenceu o rei Torwa e, pouco depois, o reino de Quiteve a unirem-se a ele contra o Monomotapa. A aliança rebelde levou à fragmentação do império: de um lado, Changamire e os seus aliados (Torwa e Quiteve), apoiados pelos árabes de Sofala, e, do outro lado, Monomotapa e os seus vassalos fiéis (Manica, Báruè e Butua). Nhahuma foi derrotado em todas as guerras que travou contra os reis rebeldes, tendo sido forçado a refugiar-se nas províncias do norte do império. Em 1490, os aliados rebeldes sob o comando de Changamire atacaram em força o Zimbabwe de Nhahuma. O assassinato de Nhahuma permitiu a Changamire instalar-se em Zimbabwe e tomar o trono do Monomotapa, fundando a breve dinastia Changamire (1490-94). Para evitar que a descendência de Nhahuma pudesse recuperar o trono, Changamire assassinou todos os seus filhos e parentes próximos, deixando escapar inadvertidamente o seu filho mais velho. Kakuyo Komunyama - o seu nome - fugiu e abrigou-se junto dos batua. Pouco mais tarde, com a ajuda dos vassalos fiéis ao Monomotapa, Kakuyo dirigiu-se para o Zimbabwe, onde estava instalado Changamire, para reconquistar o trono. Após três dias de batalha, Changamire e os residentes de Zimbabwe foram mortos e o trono voltou a pertencer ao herdeiro de Matope.

Agonia e Queda do Império do Monomotapa. Apesar do trono ter sido recuperado pelo herdeiro de Matope, o Império do Monomotapa nunca mais conseguiu recuperar a antiga estrutura de uma aliança multi-tribal sob a autoridade do Monomotapa. Os sucessores de Changamire e os seus aliados não desistiram da luta pela independência e da conquista do império: as guerras entre as duas dinastias - a de Changamire e a do Monomotapa - serão utilizadas pelos portugueses para penetrar no interior do sertão africano em busca das minas de ouro do Monomotapa. Quando os portugueses chegaram à costa oriental de África, com a frota de Vasco da Gama a aportar na ilha de Moçambique em 1498 e a lançar os primeiros tiros de canhão contra os mouros que tinham aí um entreposto comercial, o Império do Monomotapa encontrava-se já dividido em dois reinos: o reino dos Changamires que, juntamente com os seus aliados (Torwa e Quiteve), dominava Sofala, e o reino dos descendentes de Mutota que, com a colaboração dos seus fiéis vassalos (Manica, Batua e Báruè), dominava o Sena. A ilha de Moçambique, onde aportou a frota de Vasco da Gama, era dominada por um sultão árabe que dependia do sultão de Kilwa: a rota do monopólio árabe do comércio na costa oriental africana ia do Cabo Guardafui (Somália) até Sofala (Moçambique). Sentindo-se ameaçado com a presença dos portugueses, o sultão de Moçambique tentou sabotar a viagem de exploração de Vasco da Gama, mas não foi bem sucedido, porque, em 1505, os portugueses enviaram uma esquadra militar que destruiu Kilwa e Mombaça, ao mesmo tempo que construíram fortalezas em Kilwa, Mombaça, Sofala e Moçambique. A fortaleza construída na ilha de Moçambique tinha como finalidade garantir a posse do comércio do ouro do Monomotapa. Porém, em 1510, os árabes conseguiram expulsar os portugueses da fortaleza de Kilwa, levando-os a fundar um novo entreposto comercial no estuário do Zambeze, em Angoche: o comércio com o Monomotapa foi retomado, com os portugueses a ir de barco até Sena, donde expulsaram os árabes em 1530, fundando a sua primeira feitoria e penetrando no interior do sertão africano através do rio Zambeze. Em 1537, os portugueses fundaram uma outra feitoria no alto Zambeze, Tete, a partir da qual conseguiram ter acesso a uma feira - Massapa - no interior do Monomotapa, não muito longe do Zimbabwe de Mutota, onde ocorriam periodicamente reuniões de trocas comerciais. Deste modo, os portugueses começaram a contactar directamente com o Monomotapa, pagando-lhe anualmente um tributo ou imposto sobre o comércio que realizavam. Das lutas que o Monomotapa travava com as tribos vizinhas resultavam prisioneiros que eram vendidos aos portugueses como escravos. Em 1544, criou-se uma feitoria em Quelimane, donde os escravos levados pelo Monomotapa seguiam para a Índia, sendo vendidos aos indianos e chineses, e, em menor número, para o Brasil e Portugal. Os naufrágios frequentes no Cabo da Boa Esperança tornavam arriscado e pouco rendoso o transporte de escravos para o Brasil: eles eram preferencialmente transportados para a Índia, onde estava sediada a administração portuguesa do oceano Índico. Nesta altura, os portugueses já tinham ocupado Sofala, Tete, Sena, Quelimane e Moçambique: o interior do sertão africano começava a ser explorado e as relações comerciais com o Monomotapa estavam estabelecidas. Mas o contrabando árabe e as exigências exageradas em tributos feitas pelo Monomotapa e reinos vizinhos dificultavam de tal modo o comércio português que a coroa portuguesa resolveu ocupar o rio Zambeze, de Quelimane até Tete, enviando degredados e missionários - jesuítas e dominicanos - para as zonas ocupadas, o primeiro esboço da colonização física e mental de Moçambique. Em 1561, D. Gonçalo da Silveira, padre jesuíta, foi até ao Zambeze do Monomotapa para baptizar o rei e a sua família, tendo sido morto quando o Monomotapa o acusou de ser um espião, cuja missão era estudar o número de guerreiros e a localização das minas. Com o assassinato do jesuíta, os portugueses foram obrigados a abandonar o plano da conquista pacífica pelo plano da conquista militar. Em 1571, um exército de 1000 soldados portugueses atacou o Monomotapa, a partir do Sena, mas o seu general foi morto na batalha e os portugueses (180 dos 1000?) regressaram ao Sena. Em 1574, voltaram a atacar o Monomotapa, partindo de Sofala, mas foram novamente derrotados. O plano de dominar o Monomotapa acabou por ser abandonado, até porque Portugal tinha perdido a sua independência sob o domínio filipino, o que gerou divisões entre os próprios portugueses que estavam instalados em Tete, Sena, Sofala, Quelimane e Moçambique. O comércio com os reinos do interior do sertão africano não foi suspenso durante este longo período, embora tenha declinado significativamente. A paz aparente que se seguiu foi aproveitada pelos reinos africanos independentes para retomar o protagonismo perdido a favor dos portugueses: a agressividade natural dos indígenas africanos mergulhou os seus reinos tribais em guerras intestinas e intermináveis. Durante todo este período histórico que estamos a analisar, o domínio português estendia-se na costa do oceano Índico, desde o Cabo da Boa Esperança até ao Próximo Oriente, sendo Goa o grande centro administrativo de todo este vasto Império do Oriente. Em Goa, residia o Vice-Rei que detinha um poder quase absoluto sobre todo este território, que estava dividido em capitanias, cada uma das quais governada por um capitão que recebia ordens de Goa. As capitanias eram entregues aos nobres portugueses por um período de três anos, durante os quais controlavam o monopólio de todo o comércio, tendo amplos poderes tanto no campo militar como no campo económico. Ao fim desses três anos os governadores das capitanias pagavam uma quantia substancial ao Vice-Rei. Na costa oriental de África, havia três grandes capitanias: Moçambique, Sofala e Mombaça, e cada uma delas possuía várias feitorias. Assim, por exemplo, a capitania de Moçambique possuía as feitorias de Tete e Quelimane, e a capitania de Sofala a feitoria de Manica. O governador da capitania de Moçambique controlava toda a costa moçambicana desde Cabo Delgado até à foz do rio Zambeze, bem como os territórios interiores do sertão africano. O governador da capitania de Sofala exercia o seu poder sobre toda a zona a sul da foz do rio Zambeze. 

Com a entrada em cena dos portugueses no palco da história na costa oriental de África e a expulsão dos árabes da grande rota marítima do ouro, os bantos saíram de cena, refugiando-se no interior profundo do sertão africano, sem compreender o espírito dos novos tempos: eles continuaram a viver os seus contos de mentira, como se ainda fossem os protagonistas principais da história que os portugueses faziam no seu território. Os intelectuais terroristas da Frelimo sentem uma espécie de prazer sádico quando relatam os episódios de resistência dos indígenas ao domínio português, enumerando as baixas sofridas pelos conquistadores portugueses nas guerras travadas com as diversas tribos moçambicanas, mas esquecendo que, sem ajuda exterior, os africanos não conseguem livrar-se da estagnação em que se encontram há milénios. Em África, lá onde deixaram «vencer» os auto-denominados movimentos de «libertação» (sic), a barbárie e a miséria regressaram com uma tal força que o modo de produção regrediu significativamente para formas tribais degenerativas e caóticas, sendo as antigas farmacocracia, o reino do feiticeiro ou do homem-medicina, e falocracia, o reino do rei divino, substituídas pela cleptocracia mais brutal e hedionda. Retomemos a história indígena dos reinos de fantasia divina e das tribos desta vasta região africana! Entre 1600 e 1700, aproximadamente, havia diversos reinos africanos nesta região de África: o reino do Monomotapa ao norte, entre os rios Umfuli e Zambeze, vindo a ser absorvido pelos Changamine; o reino de Changamine ao sul, do rio Umfuli até Limpopo, cujas feiras - Massapa, Bokuto e Luanze - eram frequentadas pelos portugueses, a partir das suas feitorias de Tete e de Sena; o reino Báruè, onde os portugueses tinham a feitoria de Sena; o reino Quiteve ao sul, onde os portugueses tinham a feitoria de Sofala; o reino Manica, situado no interior de Sofala e rico em ouro, com o qual os portugueses tinham relações comerciais, a partir de Sofala; e o reino Sedanda, situado a sul de Manica e estendendo-se até à foz do Limpopo, onde os portugueses negociavam o marfim, as peles, os dentes de hipopótamo e as pérolas das ilhas Bazaruto, para já não falar do reino Zimba, situado a nordeste de Tete, perto do rio Shire, do reino Chicoa, situado também a nordeste de Tete e sendo rico em prata, e do reino Macua, localizado entre os rios Zambeze e Rovuma, os últimos dos quais - mais tribos do que reinos! - opuseram uma forte resistência à presença dos portugueses, ao mesmo tempo que lhes vendiam marfim, escravos e prata. A anexação do reino do Monomotapa pelos Changamines permite-nos falar de um único reino, o reino de Changamine ou simplesmente do Monomotapa, tal como o conheceram os portugueses, sendo Gatse Rusere o seu Monomotapa, a quem os súbditos davam o nome de Mambo que, em língua chona, significa rei. Ora, nos finais do século XVI e princípios do século XVII, o Mambo já não gozava dos mesmos poderes amplos dos antepassados do Monomotapa, sendo apenas um grande senhor tribal, cujo reino agrupava um número significativo de tribos. Gatse Rusere mantinha fortes relações comerciais com os portugueses que tinham feitorias em Tete e Sena, deixando-os frequentar as suas feiras. As suas relações amistosas com os portugueses que, entretanto, tinham tomado posse das terras à volta da fortaleza e da feitoria de Tete, para onde enviavam os degredados, geraram o descontentamento de algumas tribos do seu reino. Em 1597, Chunzo, um chefe tribal, revoltou-se contra o Monomotapa, que, graças à ajuda da força armada enviada pelos portugueses de Tete, conseguiu derrotar o chefe revoltoso. Mas Chungo não desistiu e, depois de convencer Chicanda a ajudá-lo, voltou a atacar o Monomotapa em 1599, que, novamente com o apoio do exército português, conseguiu derrotar os dois chefes rebeldes. Todas as restantes revoltas de outros chefes tribais tiveram o mesmo fim, sendo todos eles derrotados com o auxílio dos militares portugueses. Dominado pela ambição de reconstruir o antigo Império do Monomotapa, Gatse Rusere fez um acordo com os portugueses para atacar os seus inimigos Báruè. Em troca da sua ajuda, os portugueses exigiram-lhe que o herdeiro do Monomotapa fosse enviado a estudar em Goa e que a localização das minas de ouro lhes fosse revelada. Em 1607, após ter aceitado as condições impostas pelos portugueses, Gatse Rusere assinou um tratado de paz com eles, e, no mesmo ano, o seu exército atacou os báruè, que, sob o comando de Matuzianhe, lhe resistiram, obrigando-o a recuar. Em 1608, Matuzianhe, moralizado com a vitória, atacou Gatse Rusere, que, sem a ajuda dos portugueses, com os quais tinha rompido devido à derrota militar de 1607, foi obrigado a fugir para Chidima, no reino de Chicoa, onde pediu abrigo, deixando o trono do Monomotapa entregue ao vencedor Matuzianhe. Gatse Rusere negociou no exílio um novo acordo com os portugueses, e, em 1610, estes mandaram vir da Ilha de Moçambique e de Sofala um grande exército que conseguiu derrotar Matuzianhe na Batalha de Magide Cochena, obrigando-o a regressar ao reino Báruè. Retomando a posse do trono do Monomotapa, Gatse Rusere entregou todos os prisioneiros de guerra aos portugueses para serem vendidos na Índia. Os portugueses construíram feitorias em Massapa, Bokuto e Luanza, onde tinham guarnições militares, e instalam-se no interior do reino, apoderando-se de todo o seu comércio. Ningomaxa aconselhou Gatse Rusere a expulsar os portugueses do seu território para conquistar a confiança dos súbditos descontentes, tarefa que tentou executar de modo violento em 1613 quando os portugueses se concentraram na costa para combater os piratas holandeses e ingleses que disputavam o seu monopólio do comércio. Entretanto, ainda no decurso da lutas com os piratas europeus, os portugueses incentivaram um chefe de tribo do Monomotapa, Marenga, a revoltar-se contra Gatse Rusere: os exércitos enviados por Gatse Rusere para liquidar Marenga foram derrotados pelo exército português e a região de Tete foi reconquistada. Em 1613, a morte do chefe dos báruè, Matuzianhe, deu origem a uma luta de poder entre dois candidatos que reclamavam o trono: o candidato apoiado pelos portugueses foi derrotado pelo seu rival, Chombe, que, uma vez instalado no trono, enviou os seus guerreiros para ocupar o estreito de Lupata no Zambeze, usado pelos portugueses para ir até Sena e Tete. Como não aceitaram pagar grandes tributos para passar o estreito, os portugueses reforçados com contingentes oriundos de Quelimane e Sofala atacaram Chombe em Lupata, derrotando-o na célebre Batalha de Lupata, no decurso da qual 8 000 homens de Chombe foram feitos escravos. Em 1615, chegou da Índia D. Filipe, nome de baptismo dado pelos conquistadores ao filho mais velho de Gatse Rusere, que, devido à sua linhagem real, conseguiu saber da localização das minas, revelando-a aos portugueses que imediatamente se dirigiram para o local para explorar as minas de prata. O sistema administrativo português foi alterado em 1618 para fazer face às demoras das comunicações entre Goa e Moçambique e intensificar a exploração das minas de Chicoa: Moçambique passou a ter um governador que, apesar de depender do Vice-Rei da Índia, tinha poderes mais amplos do que os antigos capitães, usando o título de capitão dos rios de Cuama. À morte de Gatse Rusere em 1623 seguiu-se uma longa luta pela sucessão entre os seus filhos, D. Filipe, apoiado pelos portugueses, e Capranzine, hostil aos portugueses. Com o auxílio dos reis de Báruè e Manica, Capranzine venceu D. Filipe e conquistou o trono do Monomotapa. A decisão de expulsar de novo os portugueses do interior - Massapa, Bokuto, Luanza e Chicoa - selou o trágico destino de Capranzine, cujo tio, Mavura, educado pelos missionários dominicanos, foi incentivado pelos conquistadores a lutar contra o Mambo. Em 1628, Mavura, com a ajuda dos portugueses, atacou Capranzine, fazendo-o recuar para o reino Karanga e ocupando as feiras de Massapa, Luanza, Bokuto e Zimbabwe. Mavura prestou a seguir vassalagem ao rei de Portugal, dando-lhe todas as minas de prata, ouro, cobre, estanho e ferro do seu reino. Além disso, permitiu que várias famílias portuguesas e indianas - as últimas provenientes de Goa e Cochim - se instalassem nas suas terras e que os missionários fizessem a catequização dos seus súbditos, sendo ele próprio baptizado, bem como a sua família e o irmão de Capranzine, enviado para Goa para ser educado pelos dominicanos. Em 1631, os portugueses atacaram sem sucesso Capranzine, mas, depois do ataque eficaz contra Manica em 1632, que levou ao poder um aliado de Portugal, os portugueses privaram Capranzine do seu fiel aliado. Ora, sem o apoio de Manica, Capranzine não conseguiu vencer Mavura, quando o invadiu, sendo derrotado e deixando nas suas mãos as minas que os portugueses começaram logo a explorar. Cada família portuguesa ou indiana que se instalava em Moçambique recebia uma porção de terra, ou prazo, na qual tinha todos os poderes, pelo menos por um período de três gerações. Deste modo, com a chegada dos primeiros colonos, iniciou-se o sistema de prazos que deu forma estruturada e organizada à colonização de Moçambique. As terras eram cultivadas pelos escravos e os prazeiros começaram a fazer as suas próprias guerras de conquista e de captura de escravos que vendiam clandestinamente aos árabes ou mesmo aos mercadores portugueses. Com os prazeiros vieram os missionários que, para evangelizar os indígenas, construíram igrejas, até mesmo no Zimbabwe de Mavura. Quando Mavura morreu em 1652, o filho que lhe sucedeu no trono, Siti Kazurukumusapa, já tinha sido batptizado, recebendo o nome de D. Domingos. A sua fidelidade aos portugueses desencadeou o descontentamento entre alguns chefes tribais e, em 1655, um deles revoltou-se matando D. Domingos: o irmão de Mavura - uma mente absolutamente primitiva e retrógrada! - tomou o trono, recebendo o título de Mambo: ele bem tentou atacar os prazeiros e recuperar as terras mas em vão, sem compreender que o tempo e o espaço já não lhe pertenciam. As sementes da colonização portuguesa já estavam semeadas aguardando que o tempo as fizesse germinar e fortificar. Do outro lado do mundo, os portugueses intensificavam a colonização do Brasil, dedicando a essa tarefa quase todos os seus homens, recursos e barcos, enquanto os africanos brincavam às guerras intertribais, matando-se uns aos outros, absolutamente alienados da história que se fazia no seu tempo e que privava o seu sonho de reconstruir o antigo Império do Monomotapa de uma base económica e comercial estável. Narrar a história indígena durante este período até cerca de 1830 é o mesmo que contar a história de uma fantasia sempre-já morta, a fantasia de tribos que passaram ao lado da história. Em 1680, os rozwi, sob o comando de Changamire, invadiram o território dos batua e apoderaram-se do seu trono. A seguir, em 1684, atacaram o Monomotapa, matando-o na Batalha de Maungo: os filhos do Monomotapa fugiram e refugiaram-se na feitoria de Tete. O domínio do reino do Monomotapa permitiu a Changamire reconstruir o antigo Império do Monomotapa, pelo menos em fantasia, levando-o a anexar o reino dos báruè que se submeteram à sua autoridade. Em 1699, Changamire reinava sobre quase todo o território que tinha pertencido ao Império do Monomotapa, faltando-lhe apenas conquistar os reinos de Manica e de Quiteve, tarefa que levou a cabo em 1690. Para administrar este vasto território, Changamire cedeu o reino Butua à dinastia Torwa e o trono do seu pai ao filho do antigo Monomotapa, Nyacunimbire, deixando o reino Báruè sob a dinastia Chombe. Porém, quando exigiu a todos estes reis que lhe pretassem vassalagem e lhe pagassem tributo, Changamire não se apercebeu que a base da riqueza do antigo Império do Monomotapa - o comércio com o exterior - tinha desaparecido, estando sob o controle dos portugueses. Ora, sem laços económicos a unir os reinos, a aliança militar e a vassalagem já não se justificavam: o reino que tinha reconstruído à imagem do antigo Império do Monomotapa era um reino de fantasia, destituído de verdadeira centralização fálica. Não admira que, passado pouco tempo, os chefes tribais e os reis começassem a recusar pagar tributos e prestar vassalagem a Changamire, seguindo o exemplo rebelde do rei báruè. Para evitar a divisão do seu reino de fantasia, Changamire atacou em 1695 Chombe, rei de Báruè, na região de Tete, mas foi morto na Batalha de Nyampaza: a sua morte implicou necessariamente o desmembramento do seu império de fantasia, porque nenhum dos outros reis prestou vassalagem ao seu sucessor, Dombo. O reino de Karanga (Monomotapa) continuou a ser governado por Nyacunimbire, que foi sucedido em 1695 por Chirimbi, que, tendo sido educado em Goa, era amigo dos portugueses. Dombo que odiava os portugueses atacou Chirimbi, forçando-o a refugiar-se no norte de Tete e conquistando o seu reino, de modo a reinar num território - reinos Rozwi e Karanga - que ia desde o Limpopo até ao Zambeze. Mas os reinos de Butua, Báruè, Manica e Quiteve recusaram fazer parte integrante do reino de fantasia imperial de Dombo, destituído do título de Monomotapa: a dinastia Changamire reinou - sem governar! - até 1830, quando as invasões dos guerreiros zulus destruíram as suas cidades. Ora, no início do século XVIII, os portugueses resolvem levar a cabo a colonização organizada de todo o território, revitalizando e reforçando o sistema de prazos, e intensificando o comércio, através do desenvolvimento da feira de Zumbo, onde iam buscar o cobre de Kazembe. Do império de fantasia de Dombo e do seu pai restam apenas as construções de Mapungubwe, Dlo-Dlo, Khami e Inyanga, para só referir as mais interessantes. (Fim)

Sugestão histórico-teórica: Proponho a expressão Império Português do Ocidente para designar o domínio do oceano Atlântico e a colonização do Brasil, em articulação com a costa ocidental de África e as ilhas atlânticas. Assim, teremos dois Impérios Portugueses: o Império do Oriente, o domínio do oceano Índico, e o Império do Ocidente, o domínio do oceano Atlântico, cuja história já foi narrada por Frédéric Mauro. Uma mudança de terminologia implica uma mudança de problemáticas e uma nova estratégia para o futuro.

J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Introdução à Religião Banto

Expansão dos Bantos 
«Pelos fins do século XVIII, um oficial militar português visitou a baía e, depois de ter passado um ano e oito meses nestas paragens, enviou ao prelado de Moçambique um muito curioso relatório sobre a agricultura, o comércio e a civilização da região. Eis uma das frases do relatório: "Estes povos são hotentotes e não têm religião nenhuma". Que ele tenha ignorado a diferença entre Bantos e Hotentotes, não é senão natural: a etnologia da África meridional não existia ainda. Mas que, após tão demorada permanência entre os indígenas, ele tenha declarado que esta gente não tinha religião, isso, na verdade, parece estranho! Posso, no entanto, compreender e escusar este erro. Entre os Tongas, não há templos, não há dia reservado ao culto, não há classe de padres, nada de exterior, efectivamente, que chame a atenção para a sua religião. Ainda que tivesse assistido a alguma das cerimónias religiosas da tribo, o visitante poderia muito bem tomá-las por simples reuniões de família, porque nada teria notado que se assemelhasse ao temor religioso na oferenda do sacrifício, roubada pelos bàtuculo, na oração entrecortada por risos ou nos cantos, semelhantes àquelas que se ouvem todos os dias e que podem ter, mesmo, por vezes, carácter um tanto obsceno. Contudo - como é real a Ancestrolatria, a religião dos Tongas, e, de facto, a de todos os Bantos da África meridional! Quão frequentes e múltiplas as suas manifestações! Ela é a primeira e a mais evidente das suas instituições religiosas e todo o europeu que tenha estado nas suas aldeias, aprendido a sua linguagem e esforçando-se por compreender os seus costumes terá ocasião de se familiarizar com essa religião. Há, porém, uma segunda série de intuições religiosas, menos fáceis de apreender. No quartzo de "veldt" sul-africano, os mineiros, no decurso das suas pesquisas, encontram, às vezes, um filão; quebram a rocha dura, lavam-na, aplicam-lhe certos processos químicos e descobrem que há ouro no filão. Tive uma experiência semelhante, ao lidar com os indígenas tongas. De maneira absolutamente inesperada, ouvi-os falar do Céu, não como uma espécie de ser impessoal mas como de um rei, cheio de poder e omnisciente, que deve ser receado pelos ladrões, porque os conhece. Foi prosseguindo a minha investigação que descobri esta segunda série de intuições religiosas, inteiramente distinta da primeira e que pode chamar-se, justamente, uma concepção teísta do Céu.» (Henrique A. Junod)

Junod desculpa a ignorância do oficial militar português, mas, depois da nossa viagem pelos mundos das civilizações pré-colombianas conquistadas pelos espanhóis, não podemos ser tão benevolentes para com o oficial português como foi o missionário suíço. De um modo geral, os portugueses que descobriram o mundo, incluindo os missionários, nunca prestaram atenção às culturas indígenas. (Já repararam que o padre António Vieira pouco nos diz sobre a vida tribal dos indígenas do Brasil?) Embora tenham sido mais cruéis do que os portugueses, os espanhóis, talvez movidos pelo remorso, tentaram redimir-se do seu crime cultural escrevendo sobre a história dos indígenas conquistados e convertidos à força ao cristianismo. A falta de curiosidade intelectual dos pioneiros portugueses pela vida social dos povos indígenas dos mundos que descobriram pode ser atribuída a uma espécie de complexo de superioridade, pelo menos esta foi a hipótese proposta por Silva Dias. Mas quem conheça verdadeiramente o desleixo dos portugueses - o seu primitivismo mental! - sabe que eles nutrem uma aversão inata pelo conhecimento: o português típico está nos antípodas do filósofo, preferindo esbanjar a sua vida em rituais da mentira, onde julga desempenhar magicamente o "papel de sábio" por inerência do cargo ocupado e conquistado através de um esquema fraudulento, em vez de cultivar a sua mente, de modo a abri-la ao mundo em mudança que urge conhecer. A escassez de textos etnográficos e históricos de qualidade superior testemunha desde logo este perfil cognitivo típico dos portugueses. Porém, pior do que a escassez de documentos etnográficos e históricos é o esquecimento a que são condenados pelos actuais herdeiros da cultura portuguesa das descobertas: os bandidos que povoam as Faculdades de Letras das Universidades Portuguesas não cumprem a sua missão de zelar pela renovação da tradição. Caídos de pára-quedas no corpo docente das faculdades, eles nem sequer suspeitam da existência desses documentos etnográficos, e, quando tentam fazer a história dos descobrimentos portugueses, continuam a exibir a mesma ignorância de sempre pela vida social dos povos colonizados. Os portugueses promovem a auto-imagem de um povo que realizou o discurso e a prática da mestiçagem: a prática - é certo! - deixou vestígios, mas o discurso da mestiçagem não o consigo encontrar por mais que o procure: os descobridores portugueses que exploraram a costa ocidental africana dos escravos nunca se aperceberam - com olhos de ver e de registar com o mínimo de objectividade! - das civilizações que lá existiam, algumas delas com um nível de desenvolvimento muito próximo do da civilização inca, como por exemplo o antigo reino de Dahomey (Daomé), com o qual entraram em contacto. Mas o que mais me choca é o facto dos portugueses nunca terem tentado fazer uma história do Império do Monomotapa ou do Mwene Mutapa, cujas minas de ouro cobiçavam, do Império de Gaza, com o qual travaram uma guerra total de conquista, ou do Império Marave, todos eles estando em ou abrangendo território moçambicano. Foi preciso esperar pelos finais do século XIX e, sobretudo, pelo Estado Novo, para vermos surgir entre os portugueses um interesse genuinamente etnográfico e etnológico digno de ser revisitado e divulgado: os arquivos portugueses estão repletos de obras etnográficas e etnológicas que merecem regressar à luz do dia para retomarmos em novos moldes teóricos aquilo que elas iniciaram: a história dos contactos civilizacionais entre os portugueses e os povos indígenas dos mundos que descobriram e que colonizaram. A História de Portugal só poderá estar completa quando for realizada essa tarefa de narrar a história dos povos de outros quadrantes étnico-culturais do mundo integrados pela civilização portuguesa. O universalismo que Jaime Cortesão atribuiu à História de Portugal exige a elaboração da História da Civilização Portuguesa.

O texto de Junod, citado em epígrafe, menciona dois grandes eixos da religião banto, tomada a partir dos tongas, a ancestrolatria - o culto dos antepassados divinizados depois da morte - e a concepção teísta do Céu, embora evite falar de um sistema de pensamento, alegando que «nunca um teólogo ou filósofo indígena classificou esta massa de ideias religiosas um pouco confusas» sob uma tal designação lógica. Apesar de não ter procurado nessa massa de ideias «alguma coisa de lógico ou de orgânico», Junod deu-lhes «um pouco de ordem», esforçando-se por expor fielmente as ideias indígenas. A ancestrolatria, termo forjado por Junod para designar o culto dos antepassados, uma religião extremamente antiga na humanidade, cujos vestígios mais remotos são os sepulcros pré-históricos do Musteriense, é uma religião clara e bem definida, que tem a sua teologia, os seus sacrifícios e as suas orações. A concepção teísta do Céu tem entre os bantos um carácter muito diferente, porque, devido à sua natureza essencialmente deísta, não era acompanhada de nenhum culto. Contudo, a presença de duas categorias de ideias religiosas parece ser universal entre os bantos: todos eles acreditavam num Ser Supremo que recebeu diferentes nomes, em função da língua usada por cada um dos seus grupos. A concepção desse Ser Supremo era menos precisa nas tribos do sul de África do que nas regiões do centro de África. Curiosamente, os zulos e os tongas utilizavam as palavras mulungo, bàlungo, para designar os brancos de todas as proveniências, sejam europeus, sejam asiáticos, cujo diminutivo bàlunguana era o nome dado aos anões - seres celestes - que habitavam no Céu ou firmamento (Tilo). Ora, dando crédito ao raciocínio de Junod, podemos reservar o termo Mulungo para designar o Ser Supremo, termo conhecido pelas tribos que habitam nos arredores de Lourenço Marques, do qual resta apenas uma pista: o termo bàlunguana usado para designar não só os seres celestes que descem ocasionalmente à terra, mas também a "raça superior" cuja sabedoria pareceu sempre "sobrenatural" aos bantos. Junod tenta articular os dois conjuntos de crenças religiosas, com o objectivo de estabelecer uma prioridade, recorrendo a três ordens de factos para concluir que a concepção do Ser Supremo, a forma desfigurada do antigo monoteísmo anterior à dispersão dos bantos, monoteísmo que Evans-Pritchard redescobriu mais tarde entre os Zande (povo nilota), dando-lhe o nome de teologia Zande, precedeu provavelmente o culto dos antepassados. É provável que o espírito de evangelização de Junod tenha toldado a sua mente, até porque o último facto referido por ele é usado para mostrar a caducidade da religião tonga e a sua incapacidade para resistir ao ascendente das religiões reveladas: o islamismo e o cristianismo. Porém, os dois conjuntos de crenças religiosas não são incompatíveis: as famílias que prestavam culto aos seus antepassados podiam usá-los para que intercedessem a seu favor junto do Ser Supremo. Embora forneça diversos exemplos que testemunham esta articulação, Junod prefere destacar a prioridade da concepção do Ser Supremo, de modo a facilitar a adesão indígena ao Deus cristão, esquecendo que a religião dos mortos parece ter sido a religião mais antiga entre os homens, pelo menos esta é a hipótese defendida por Fustel de Coulanges: «Antes de conceber e de adorar Indra ou Zeus, o homem adorou os seus mortos; teve medo deles e dirigiu-lhes preces. Parece ser esta a origem do sentimento religioso. Foi talvez diante da morte que o homem teve, pela primeira vez, a ideia do sobrenatural e quis abarcar mais do que os seus olhos humanos podiam mostrar-lhe. A morte foi pois o seu primeiro mistério, colocando-o no caminho de outros mistérios. Elevou o seu pensamento do visível para o invisível, do transitório para o eterno, do humano para o divino». Os gregos chamavam demónios ou heróis às almas humanas divinizadas pela morte, os romanos deram-lhes o nome de lares, manes ou génios, e os tongas apelidaram-nas de chicuembo, dividindo-as em duas categorias: os deuses da família e os deuses do país que habitam nos bosques sagrados. Segundo Apuleio, os antepassados dos romanos chamavam lares aos manes benfazejos e larvas ao manes malfazejos. E Cícero clarifica: «Aqueles que os gregos chamam demónios, damos-lhes o nome de lares». As informações pormenorizadas recolhidas por Junod sobre o culto banto dos antepassados permitem-nos comparar os "fogos sagrados" dos gregos, romanos e bantos, tarefa que levarei a cabo num outro texto.

O carácter espiritualista e animista do culto banto dos antepassados - «os espíritos, e só os espíritos, são o objecto do culto» - obriga-nos a esclarecer a sua ligação com a magia e a ciência indígenas. Tylor definiu o animismo como «a crença em seres espirituais», vendo nele a origem da religião. Marett restringiu a sua significação para lhe emprestar alguma precisão científica: o animismo implica a atribuição não só da personalidade e da vontade mas também a atribuição de «uma alma ou de um espírito» aos objectos da natureza, e, pelo facto de conceber a sua existência distinta como espíritos, distingue-se do animatismo, a concepção de que esses objectos são apenas dotados de personalidade e de vontade sem gozar de uma existência espiritual distinta. Usa-se o termo dinamismo para designar a concepção segundo a qual o poder atribuído aos objectos da natureza é concebido como uma energia mais ou menos independente. As crenças colectivas dos tongas são tributárias destas três grandes concepções religiosas. Três das sete crenças tongas inspiram-se claramente no animismo. A alma humana continua a existir além da morte, revestindo novos poderes que a tornam objecto de respeito e de temor (1): os espíritos dos antepassados são os principais objectos da adoração religiosa e constituem a categoria fundamental dos espíritos chamados psicuembo. Alguns desses espíritos dos defuntos, sobretudo aqueles que pertencem a tribos estrangeiras, podem tomar possessão de pessoas humanas vivas e causar-lhes tormentos que têm de ser tratados pelo exorcismo (2). A esta segunda categoria os tongas acrescentam uma terceira categoria de espíritos, a dos deitadores de sortes (bàlóii): certos indivíduos têm o poder de se desdobrar magicamente durante a noite e os seus espíritos saem do corpo para atormentar, matar e devorar outras pessoas (3). A quarta crença tonga, a crença no nuro, resulta de uma mistura entre o animismo e o dinamismo: há no homem e num certo número de animais grandes um princípio espiritual, chamado nuro (4): quando um indivíduo - homem ou animal - é morto na guerra ou na caça, o seu nuro escapa-se do corpo para se vingar do matador, levando-o à loucura. A quinta crença tonga é claramente dinamista: há nas plantas, nos animais e nas pedras virtudes ocultas que podem ser úteis ou nocivas ao homem (5): os médicos indígenas (linhanga) e os curandeiros (bangoma) conhecem e dominam essas virtudes ocultas, usando-as no exercício da sua arte medicinal ou mágica. A sexta crença tonga é claramente animatista: certos objectos da natureza, como o mar ou o fogo do mato, são vagamente personificados sem gozar de uma existência espiritual distinta. Finalmente, a sétima crença tonga vai ao encontro do teísmo: acima de tudo isto, há o Céu (Tilo), algumas vezes olhado como ser real, outras como potência impessoal (7). A antropologia herdou da abordagem evolucionista a preocupação de distinguir entre religião, magia e ciência, e, de certo modo, Junod não escapa à influência dessa abordagem, fazendo uso abundante das distinções conceptuais estabelecidas por James G. Frazer e por Bronislaw Malinowski, embora a sua etnografia intensiva da vida social dos tongas permita explicitar as linhas gerais da sua concepção do mundo que ele expõe sob a designação ousada de "filosofia da natureza dos bantos", antecipando assim a problemática das etnociências. Aliás, Junod explicita essa distinção entre religião, magia e ciência em função da própria perspectiva colectiva das tribos do sul de África. Por religião, entende «todos os ritos, práticas, concepções ou sentimentos que pressupõem a crença em espíritos pessoais ou semipessoais revestidos dos atributos da divindade e com os quais o homem tenta entrar em relação, com o fim de alcançar a sua assistência ou desviar a sua cólera, essencialmente por meio de oferendas e de preces». Junod inclui na magia «todos os ritos, práticas e concepções que têm por fim actuar sobre influências hostis, neutras ou favoráveis, exercidas quer por forças impessoais da Natureza, quer pelos seres humanos que deitam sortes, quer ainda por espíritos pessoais, antepassados-deuses ou espíritos hostis que se supõem tomarem possessão das suas vítimas». Estes últimos ritos e práticas mágicas inspiram-se nos três princípios da magia, tal como foram estabelecidos por Frazer, pelo menos os da magia imitativa e da magia simpática ou comunialista, aos quais Junod acrescenta o da magia verbal: «Se analisarmos os princípios lógicos - os axiomas da mentalidade primitiva de Junod! - nos quais se baseia a magia, provavelmente concluiremos que eles se resumem em dois: primeiro, que o semelhante produz o semelhante ou que um efeito se assemelha à sua causa; e, segundo, que as coisas que estiveram em contacto continuam a agir umas sobre as outras, mesmo à distância, depois de cortado o contacto físico. Ao primeiro princípio podemos chamar lei da similaridade, ao segundo, lei do contacto ou contágio» (Frazer). Um outro princípio da magia, o da magia verbal que inspira os encantamentos ou as imprecações, diz que as palavras pelas quais se exprime, com ênfase, um desejo, produzem o resultado desejado. Como sucede noutras áreas culturais do mundo, há entre os bantos duas formas de magia: a magia branca, pela qual o homem tenta proteger-se a si próprio contra essas influências sobrenaturais ou tenta voltá-las a seu favor, e a magia negra, neste caso sinónimo de feitiçaria, pela qual o homem tenta servir-se dessas forças contra o próximo. Junod fala de "ciência indígena", definindo-a como o conjunto de «todos os ritos, práticas e concepções inspirados pela verdadeira observação dos factos», um princípio que norteia também a ciência ocidental. Supostamente inspirada na observação dos factos, a ciência banto abrange um conjunto interessante de tratamentos médicos (etnomedicina), de ideias relativas à botânica (etnobotânica) e à zoologia (etnozoologia), de princípios activos farmacológicos (etnofarmacologia), de ideias relativas à astronomia (etnoastronomia), à meteorologia (etnometeorologia) e à antropologia (etnoantropologia) ou mesmo de ideias relativas à geografia (etnogeografia), que foram bem estudadas por etnógrafos portugueses durante o período colonial. Deste vasto conjunto de ideias "científicas" dos tongas, as noções mais rudimentares eram - supondo que a escola tenha superado essa lacuna! - as ideias geográficas, algumas das quais violavam o próprio princípio da observação: os tongas não acreditavam que fosse possível conhecer um país ou um lugar onde não se tenha estado, como se cada pessoa fizesse a sua própria geografia. Além disso, os tongas não sabiam que o rio Incomáti, que sai do Transval em Komatipoor, lugar que conheciam, era o mesmo rio que desagua no mar perto de Marracuene, a 80 quilómetros de Komatipoor. Malinowski reiterou diversas vezes que a magia começa onde termina a tecnologia mecânica. Assim, por exemplo, os melanésios que estudou sabem que a magia não pode cavar o solo no qual plantam os tubérculos de inhame. Fazendo aquilo que a magia não pode fazer por eles, cavam buracos onde enterram os tubérculos e procuram protegê-los das ervas daninhas. Porém, os melanésios também sabem que as pragas, os animais ferozes, o clima e outros factores desconhecidos estão para além do controle da sua imensa habilidade técnica. Ora, todos estes factores afectam, negativa ou positivamente, as suas colheitas de inhame, o objecto mais ardente dos seus desejos. Para controlar estes factores desconhecidos, os melanésios recorrem à magia ou à religião ou a ambas: a confiança que adquirem através dos ritos e das práticas mágicas ajudam-nos a superar-se a si próprios na tarefa de alcançar boas colheitas. Algo semelhante ocorre em quase todos os aspectos da vida quotidiana dos bantos, cuja religião é fortemente tingida de magia. O estudo exaustivo da religião banto confronta-nos com uma mistura de duas atitudes: uma atitude religiosa de reconhecimento da superioridade dos poderes sobrenaturais que merecem a submissão e a reverência dos bantos, e uma atitude mágica de controle arrogante dos poderes sobrenaturais em determinadas condições. Na cosmovisão dos bantos, a religião e a ciência são invadidas, de todos os lados, pela magia e pelas concepções mágicas, sobretudo nos domínios da arte médica, da possessão, da feitiçaria e da adivinhação. A tese de Malinowski tem como corolário a ideia de que a magia é mais susceptível de ser substituída pelos avanços tecnológicos do que a religião, com o seu elemento de dependência pessoal: o que quer dizer que os cientistas modernos podem aderir às crenças religiosas dos bantos sem, no entanto, adoptar o seu complexo mágico. Contudo, como demonstrou Sundkler, os próprios bantos do sul de África ainda não abandonaram as suas velhas concepções mágicas, reagindo à globalização tecnológica com uma atitude sincretista de nostalgia do passado, revestida das cores da Igreja de Pentecostes americana, as chamadas igrejas sionistas nativas, com as suas curas, o seu conhecimento de línguas, a sua purificação pelos ritos e observação dos tabus, e os seus profetas.


Bibliografia sumária:
  1. Forde, C. D., ed. (1954). African Worlds. London: Oxford University Press.
  2. Griaule, Marcel (1966). Dieu d'Eau. Paris: Fayard.
  3. Herskovits, Melville J. (1938). Dahomey, An Ancient West African Kingdom, 2 vols. New York: J.  J. Augustin.
  4. Junod, A. Henrique (1974). Usos e Costumes dos Bantos: A Vida duma Tribo do Sul de África, 2 vols. Lourenço Marques: Imprensa Nacional de Moçambique.
  5. Nadel, S. F. (1942). A Black Byzantium. London: Oxford University Press.
  6. Rita-Ferreira, A. (1975). Pequena História de Moçambique Pré-Colonial. Lourenço Marques: Fundo de Turismo.
  7. Sousa, J. Francisco Saraiva de (2011). Filosofia da Feitiçaria Africana.
  8. Sundkler, Bengt (1948). Bantu Prophets in South Africa. London: Lutterworth Press.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Modo de Produção Asiático e Estagnação do Ocidente

Etrúria, o Berço da Europa, segundo Werner Keller.
Sarcófago Etrusco, 520 a.C.
«A noção elaborou-se cerca de 1853 e permanece presente em Marx até ao fim da sua vida. Engels em Anti-Dühring (1877), em A Época Franca (1882) retoma-a e enriquece-a, mas ela desaparece em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884). Engels deixa-a nas edições dos Livros II (1885) e III (1894) de O Capital que faz publicar após a morte de Marx. /A elaboração mais desenvolvida deste conceito de Marx encontra-se num manuscrito de 1855-1859, inédito até 1939, intitulado Formen die der Kapitalistischen Produktion vorhergehn, publicado em Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie. O texto Formen constitui o esquema mais complexo de evolução das sociedades que Marx nos deixou. Deverá por conseguinte ser confrontado com A Origem da Família de Engels, escrita vinte e cinco anos depois. /Esta noção foi elaborada a partir de uma reflexão sobre documentos britânicos que descreviam as comunidades aldeãs e os Estados da sociedade indiana do século XIX. A essa informação acrescentaram-se leituras de narrativas de viajantes relativas ao Médio Oriente e à Ásia Central. Um facto impressiona Marx e Engels: a ausência de propriedade privada do solo. No manuscrito Formen, Marx descreve sete formas diferentes da apropriação do solo, quer dizer, da relação dominante de produção entre os homens nas sociedades pré-industriais. Estas formas sucedem-se até ao modo de produção capitalista, no qual a separação do trabalhador das condições objectivas da produção é radical. O texto de Marx apresenta-se por conseguinte como um esboço da evolução da propriedade da terra no seio da humanidade e sobretudo na Europa e é um fragmento separado da análise das formas de acumulação primitiva. Essa evolução vê suceder: a comunidade primitiva, o modo de produção asiático, o modo de produção antigo, o modo de produção esclavagista, o modo de produção germânico, o modo de produção feudal, o modo de produção capitalista.» (Maurice Godelier)

Este é mais um texto programático que se segue à tentativa não-partilhada de sistematizar o panteão inca: o conceito de modo de produção asiático, forjado por Marx em 1853, permite tematizar a religião inca, dando-lhe uma certa unidade. Ontem, na caixa de comentários do post anterior, teci algumas considerações sobre a religião inca, vacilando quanto à classificação dos seus deuses. Alfred Métraux utilizou o conceito de modo de produção asiático (ou, como lhe chamou Jiro Hoyakawa em 1934, modo de produção tributário) para caracterizar a sociedade inca, e sobretudo a civilização mochica - uma sociedade hidráulica no sentido de Wittfogel! - que a precedeu, mas não soube apreender as funções sociais da religião no seio de um tal modo de produção, encarado desde logo como uma passagem da comunidade primitiva para uma sociedade de classes, sendo levado a opor a religião oficial do Império Inca aos cultos das etnias subjugadas pelos incas, donde resulta uma espécie de sincretismo religioso. Hoje, após meditar os textos de Jean Chesneaux, Maurice Godelier e Karl Wittfogel, entre outros, descobri uma outra via para sistematizar o panteão inca em função de dois eixos fundamentais: o eixo das relações da religião com a natureza que não sofreu alterações significativas, e o eixo das relações da religião com as relações sociais que sofreu profundas modificações, tanto no domínio da unidade do grupo como no domínio da unidade entre o indivíduo e o grupo. Segundo Godelier, «a própria essência do modo de produção asiático é a existência de comunidades primitivas onde reina a posse comum do solo e organizadas, parcialmente ainda, sobre a base das relações de parentesco, e de um poder de Estado que exprime a unidade real ou imaginária destas comunidades, controla o uso dos recursos económicos essenciais e se apropria directamente de uma parte do trabalho e da produção das comunidades que domina». Ou, nas palavras de Jean Chesneaux, o modo de produção asiático caracteriza-se «pela combinação da actividade produtiva colectiva das comunidades aldeãs e pela intervenção económica de uma autoridade estatal que explora estas comunidades ao mesmo tempo que as dirige; esta exploração, de carácter global e não individual, foi denominada por Marx de "escravatura generalizada"». Antes da Conquista Inca, o modo de produção de numerosas tribos andinas assentava na produção de tubérculos no interior da comunidade aldeã local - a ayllu, onde residia um grupo de parentesco de linhagem, cujo chefe de aldeia - o curara - era o primeiro beneficiário da entreajuda comunitária. A propriedade da terra era comunitária: parcelas da terra eram redistribuídas periodicamente entre famílias restritas, cada uma das quais não podia transformar o direito de uso em forma de propriedade privada, separada da propriedade comum. Além disso, o trabalho também assumia uma forma comunitária: os aldeões ajudavam-se reciprocamente, de modo a cumprir as várias tarefas produtivas, cultivando as terras comuns para manutenção dos túmulos das divindades e dos chefes locais. Porém, quando foram conquistadas pelos incas, estas comunidades aldeãs sofreram uma profunda transformação: uma parte das suas terras foi expropriada e tornou-se domínio do Estado e da Igreja Incas. As relações de produção foram transformadas através da introdução de um novo modo de produção que assentava num regime de corveias: o Estado Inca concedeu às comunidades locais gratuitamente o direito de subsistir em troca da obrigação de trabalhar as terras que se tornaram domínio do Estado (terras da coroa) e da Igreja (terras dos templos). Como escreve John Murra: «Não se podia tocar a sério na auto-suficiência dos ayllus. O Estado preocupava-se em apenas extrair as corveias aos camponeses sem interferir na sua auto-suficiência». Porém, como observa John Murra, «a existência e a sobrevivência de uma estrutura sociopolítica como a do Estado Inca assentam tecnologicamente numa agricultura capaz de produzir sistematicamente excedentes para além das necessidades de subsistência do campesinato». Deste modo, graças ao desenvolvimento das forças produtivas na agricultura e à produção de excedentes, estavam criadas as condições necessárias para o aparecimento de uma sociedade de classes e de um Estado multi-tribal e pluri-étnico, que, para garantir a reprodução do novo modo de produção, introduziu um regime de corveias bem regulado, uma burocracia, uma contabilidade, e meios de armazenagem e de transporte dos produtos, sendo forçado a empreender grandes obras de interesse público, tais como a construção de estradas, de terraços, de jardins, de templos e de palácios, que cavaram ainda mais a distância entre o campesinato e as classes dominantes. Ora, a organização da vida material e da actividade produtiva pelo sistema político através da recolha de tributos ou de impostos acentuou a dicotomia entre a cidade e o meio rural, ao mesmo tempo que gerou uma contradição entre a manutenção das comunidades locais e a sua negação pelo Estado. É certo que os incas usavam a violência para obrigar as populações subjugadas a trabalhar para os conquistadores, reprimindo as revoltas e deportando populações inteiras, mas foram suficientemente inteligentes para usar a ideologia como meio de redução dessa contradição, de modo a dissimular e a justificar a opressão. Os incas usaram alguns dos elementos do modo de produção das tribos conquistadas para dar forma ao novo modo de produção, apresentando o poder político como expressão de uma comunidade superior que englobava o conjunto das comunidades locais: o Grande Inca - encarnando o Estado e descendendo em filiação directa do Sol ou do casal Sol-Lua - tornou-se o "pai de todos", o "rei protector" que garante a justiça, o que levou as religiões locais a adquirir uma nova função, não já uma função política, mas uma função cultural, a de definir a identidade dos grupos locais. Em vez de absorver as entidades locais de modo a eliminá-las, o Grande Inca apresenta-se aos súbditos como o pai de todas as comunidades locais, consideradas suas "filhas", fazendo reinar a justiça no seu seio e protegendo-as contra os inimigos. Estas breves considerações permitem aplicar a distinção entre culto central e cultos periféricos - quase cultos de protesto! - ao estudo da religião inca, cujo panteão é claramente hierarquizado, estando as deidades locais subordinadas às deidades do culto central no quadro de uma religião agrícola. De certo modo, a religião inca em torno do culto central - a legitimação ideológica da exploração e da opressão! - é uma invenção político-teológica de imperadores quase legendários: Pachacuti, Manco Capac e, sobretudo, Viracocha, o herói civilizacional deificado. (O culto dos antepassados das comunidades locais tende a ser absorvido ou eclipsado pelo culto do Imperador. Além disso, o recrutamento militar, um dos elementos do tributo que exigia o sacrifício da vida individual a favor do bem do grupo, implicou a ideia de uma compensação pós-histórica, nomeadamente no quadro do culto dos antepassados: surgiu assim uma nova sequência religiosa ligada à recompensa dos mortos na guerra e aos paraísos dos heróis. O sepultamento dos mortos e a mumificação dos Incas eram práticas relacionadas com essa nova preocupação. A múmia de cada Inca era conservada no palácio que o imperador tinha construído em vida e participava em certas festas religiosas: o domínio dos mortos continuava a imiscuir-se no domínio dos vivos, uma vez que conservava as suas terras. Huáscar chegou mesmo a expropriar as múmias reais das suas terras, o que lhe valeu a inimizade das linhagens reais que beneficiavam com a extensão dessas propriedades.)

O conceito de modo de produção asiático tem uma história política, articulada com a sua história filosófica, cujo desfecho, depois da Queda do Muro de Berlim, deu razão a Wittfogel contra os seus críticos "comunistas", alguns dos quais abandonaram o conceito para evitar que ele fosse usado para criticar o chamado "mundo socialista". Hoje, numa Europa cada vez mais capturada por uma classe dirigente burocrática, centralizadora e envelhecida, deve ser a própria "Direita de interesses" que teme o regresso do conceito de modo de produção asiático: A actual estagnação da União Europeia deve-se fundamentalmente às suas características "asiáticas" ou mesmo feudais no contexto de uma economia capitalista. Já devem ter reparado que, ao retomar o conceito de modo de produção asiático, pretendo não só refazer a teoria marxista da história, mas também e sobretudo libertar o marxismo do "comunismo", isto é, da sua colonização asiática ou da tentação de recuo à comunidade primitiva dita "comunista": elaborar uma teoria diferencial da história é, num só e mesmo movimento, inventar uma nova prática política para o marxismo, um novo projecto político capaz de livrar o Ocidente da estagnação e do despotismo oriental. Engels aprofundou à luz de Morgan uma das vias de passagem ao Estado: a via ocidental que conduziu à generalização da escravatura produtiva e da produção mercantil. Ao seu lado, a chamada via oriental conduziu - na Rússia, na Índia, na Mesopotâmia, no Egipto, em África, na China e no Peru - a formas despóticas de Estado e de sociedade de classes, sem destruir a antiga organização comunitária. Porém, apesar da existência de duas vias de passagem ao Estado e à sociedade de classes, o modo de produção asiático desenvolveu-se também na Europa (Charles Parain), sobretudo com os etruscos ou mesmo com as civilizações cretense e micénica. Graças aos gregos e aos romanos, e mais tarde aos germanos, cujo modo de produção germânico preparou o terreno para o feudalismo, a Europa conseguiu livrar-se do modelo asiático ou tributário para percorrer a sua própria via que a conduziu até ao capitalismo. É provável que a clivagem de desenvolvimento entre o Sul e o Norte da Europa encontre aqui a sua raiz mais remota: o modo de produção asiático significa maior progresso das forças produtivas realizado com base em antigas formas comunitárias de produção, pelo menos no período inicial, mas depois acaba por levar à estagnação milenar e à imutabilidade devidas à ausência de desenvolvimento da propriedade privada e da produção mercantil, vacilando entre a barbárie e a civilização. Marx viu isso e não vejo a necessidade de eliminar este elemento do modo de produção asiático, a não ser a necessidade de reconhecer os limites da teoria dos modos de produção para explicar todo o processo histórico sem levar em conta a biogramática do homem e outros factores, em especial os ecológicos. Com efeito, há povos que, apesar da colonização europeia, ainda não conseguiram avançar para novas formas de existência social, muitos dos quais nem sequer descobriram a escrita: eis aqui um facto incontornável que não pode ser omitido por uma teoria diferencial da história. Não vale a pena rejeitar o conceito para garantir um suposto universalismo que a história desmente claramente: a abandono do "comunismo" como projecto político livra a história dessa monstruosidade que é fazer dele o futuro comum de todas as sociedades humanas, como se o seu desenvolvimento dependesse do esquema imposto por Estaline. A civilização veio do Oriente - a história começa na Suméria! (Samuel Noah Kramer) - para o Ocidente, onde conheceu o seu maior desenvolvimento democrático e filosófico, e, no momento presente, ameaça voltar para o Oriente mais longínquo e distante da Europa, onde promete converter-se numa civilização de insectos. A utopia social de Marx e o pessimismo de Weber - a jaula de ferro! - perderam terreno a favor do declínio do Ocidente de Spengler: o Ocidente foi vítima do seu próprio universalismo que, uma vez consumado, implica o deslocamento da civilização para o Oriente, e os "déspotas" gerados no e pelo Estado Social - o equivalente das grandes obras estatais de irrigação do modo de produção asiático, servidas por um corpo de funcionários privilegiados! - começam a ser vítimas da escravidão generalizada, o que desmente qualquer esquema de desenvolvimento linear da sociedade: os europeus mimados estão a ser privados dos "direitos sociais" e da própria liberdade. A Europa já entrou em colapso: a profecia de Spengler está a cumprir-se e lá onde parecia existir democracia já havia uma forma embrionária de despotismo velado, encabeçado pelos burocratas, tecnocratas, economistas e gestores. O esquema de desenvolvimento ocidental esgotou-se e, com ele, a modernidade chegou ao seu fim: a abundância de diplomas uniformizou de tal modo a inteligência das pessoas que acabou por secar as fontes da inovação e a própria raça. Num mundo cada vez mais globalizado, torna-se difícil antecipar cenários futuros. Ao homem ocidental só lhe restam duas vias: ou aceita resignadamente o seu empobrecimento, o seu destino fatal, ou trava uma luta de vida ou de morte contra as classes dominantes sem ter a garantia de uma vitória final, a menos que a profecia maia se realize na longa noite de 21 de Dezembro de 2012 com a aniquilação do mundo. Então, perguntam-me: onde está o esboço de uma nova prática política? Nunca afirmei ser um filósofo da aurora: eu sou o filósofo da funda meia-noite, aquele que anuncia o fim catastrófico de um mundo. A Filosofia morreu no dia fatídico em que a burrice foi diplomada: a aurora mergulhou nesse instante no abismo sem fundo, o abismo que é hoje a vossa vida, a menos que arrisquem a vida na luta contra o sistema vigente. Afinal, depois de terem fingido ser aquilo que não eram, já não têm nada a perder, porque mais vale morrer a lutar contra a escravidão do que ser escravizado sabendo que não há salvação possível.

J Francisco Saraiva de Sousa