sábado, 15 de outubro de 2011

Marx e o Direito Desigual

Ponte D Luís I, Porto
Infelizmente, em Portugal, nunca houve uma Filosofia do Direito ou mesmo uma Cultura Jurídica Democrática: o sistema judicial tal como se estruturou depois do 25 de Abril é o grande monstro da III República que bloqueia o desenvolvimento económico e cultural de Portugal. Mas não é sobre este aborto judicial que pretendo falar: a sua mera existência viola qualquer tipo de sabedoria jurídica e democrática. Magistrados que usam a sua "autonomia" para realizar o seu desejo tirânico não merecem figurar na história do pensamento jurídico, porque eles são a negação viva de todos os princípios democráticos e humanistas pensados pela Filosofia do Direito e do Estado de Direito. Em Portugal, os papéis inverteram-se: os "criminosos" perseguem os "inocentes", como se predominasse a Lei do Crime. A irracionalidade do sistema judicial envergonha a democracia portuguesa: a loucura judicial reina impunemente, fazendo dos portugueses meros espectadores passivos de um filme de terror judiciário. O pensamento marxista produziu algumas filosofias do Direito que devem ser redescobertas e estudadas. Hoje, quando lia uma obra dedicada a Rousseau, deparei-me com uma frase de Marx, extraída da Crítica do Programa de Gotha e comentada por Lenine na sua obra Estado e Revolução. Eis a frase de Marx:


«O "direito igual" temo-lo efectivamente aqui, mas é ainda o "direito burguês", que, como todo o direito, pressupõe a desigualdade. Todo o direito consiste na aplicação de uma única norma a pessoas diversas, a pessoas que não são na realidade nem idênticas nem iguais. O "direito igual" equivale portanto a uma violação da igualdade e é uma injustiça. Com efeito, cada qual recebe, por parte igual de trabalho social fornecido, uma parte igual de produto social (...). Ora, os indivíduos não são de facto iguais: um é mais forte, um outro é mais fraco (...). Em paridade de trabalho e, portanto, em paridade de participação no fundo social de consumo, um recebe pois, efectivamente, mais que o outro, um é mais rico que o outro, etc. Para evitar todas estas desigualdades, o direito deveria ser não igual mas desigual». E, mais adiante, acrescenta: «Este direito igual é um direito desigual para um trabalho desigual (...). O direito, por sua natureza, só pode consistir no emprego de uma mesma unidade de medida, mas os indivíduos desiguais (e não seriam indivíduos distintos se não fossem desiguais) não são mensuráveis segundo uma unidade comum a não ser na medida em que sejam considerados de um mesmo ponto de vista e examinados somente sob um aspecto determinado; por exemplo, no caso presente, quando forem considerados apenas como trabalhadores e nada mais e se fizer abstracção de tudo o resto».


Um direito desigual para ajudar a combater as desigualdades sociais efectivas! A minha teoria da natureza humana, isto é, a minha antropologia fundamental, não me permite abraçar o projecto marxista de construção de uma sociedade comunista. Hoje, para sermos filósofos marxistas, somos forçados a abandonar o comunismo e a substituí-lo por um novo projecto político, para a elaboração do qual Marx tem ainda uma palavra importante a dizer. Marx é um dos maiores filósofos de todos os tempos: a sua genialidade traduz-se nesta oposição entre direito igual e direito desigual, cuja pertinência ultrapassa o domínio jurídico, funcionando desde logo como uma crítica dialéctica do conceito e da sua ambição totalitária. Porém, a filosofia que denuncia o conceito não abdica dele: Marx introduz a diferença no seio do próprio conceito. O conceito de direito desigual traz a marca deste escândalo - usar o conceito contra o próprio conceito! - que visa evitar que o totalitarismo subjacente ao conceito se converta em prática totalitária, iludindo a diferença lá onde ela efectivamente existe: na realidade efectiva de uma sociedade antagónica e injusta. A dialéctica é a filosofia do conceito que recusa fechar-se num sistema, sendo por isso tão aberta quanto o próprio mundo, cujo devir pretende orientar no sentido da construção de um mundo melhor. A defesa da igualdade formal gera o seu oposto: a desigualdade social que a orientação política do conceito pretende abolir. A Esquerda tradicional não tem as mãos limpas: ela também é responsável pela crise do Ocidente. O que estou a propor é a redescoberta do Marx oculto, cujo pensamento profundo permite superar o pensamento burguês e as suas antinomias, abrindo o horizonte ao pensamento pós-burguês e - escândalo dos escândalos! - ao pensamento pós-proletário. A dialéctica é luta permanente contra o princípio de identidade, que o pensamento burguês converteu em princípio da igualdade: os princípios da revolução burguesa não podem figurar - mesmo que remodelados! - num pensamento político de Esquerda. Lá onde o pensamento burguês descobre uma igualdade nós descobrimos uma terrível desigualdade efectiva: o desafio é converter a própria desigualdade em princípio estruturante do pensamento político de Esquerda


J Francisco Saraiva de Sousa

4 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

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Yoseph disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Yoseph disse...
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Yoseph disse...

"A minha teoria da natureza humana, isto é, a minha antropologia fundamental, não me permite abraçar o projecto marxista de construção de uma sociedade comunista. Hoje, para sermos filósofos marxistas, somos forçados a abandonar o comunismo e a substituí-lo por um novo projecto político"
Peço desculpa mas sou forçado a perguntar porquê? Pode desenvolver um pouco mais?