segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Cesário Verde e a Cidade de Lisboa

Baixa Pombalina de Lisboa
«Júlio César Machado, Eça, Cesário Verde (e lá fora, Baudelaire e outros), convergem na expressão de idênticas inquietações revelando certos aspectos da vivência citadina. Spleen, tédio, ganham terreno ao longo da segunda metade do século XIX, a par e passo que se efectiva a urbanização em larga escala. São sentimentos "civilizados", ou seja, característicos dos homens que tiveram de adaptar-se ao crescimento das cidades e que, em dado momento, se sentiram muralhados nelas, como que ludibriados pela aventura urbana. Falta-lhes ar. Os largos horizontes, a noite estrelada ou luarenta, o ritmo lento do desenrolar dos dias, tradições tornadas hábitos atávicos, e condicionadas por uma vida que, mesmo quando urbana, tinha o campo à mão de semear, ou dentro da própria cidade, em cujos quintais vicejavam as couves e as árvores, e estralejava o cantar do galo, - tudo isso vai ser substituído. /Em vez dos largos horizontes do campo, as ruas sujas, movimentadas e rumorosas; em lugar da noite natural, de Lua e estrelas, a noite artificial e enjoativa do gás; em vez do ritmo estacional e dos anos, o galopar dos dias e das horas, numa pressa, numa "febre" que contagiava tudo e todos. Desse choque entre hábitos ancestrais e necessidades novas, resultam a instabilidade, o desajustamento, acre percepção da solitude. Solitude essa que, umas vezes, se condensa afectivamente no spleen, no tédio próprio das cidades, outras, em sonhos de evasão, ou de uma nova comunhão humana a constituir peça a peça, desde o princípio.» (Joel Serrão)

Eu não nasci no Porto, o Porto não foi o meu primeiro mundo, o meu mundo de berço, e, por isso, não guardo memórias de infância da Cidade Invicta. Não posso escrever um ensaio sobre a minha infância portuense, como fez Walter Benjamin em relação à sua infância vivida em Berlim, porque o Porto não me viu nascer para o mundo. Cheguei demasiado tarde ao Porto e, quando cheguei ao Porto vindo de outro mundo, apaixonei-me pelos seus telhados, não pelos seus habitantes que me hostilizaram, como se fosse um intruso cosmopolita que ameaçava privar a cidade das suas tradições e dos seus atavismos. Confesso que o meu desejo, tanto ontem como hoje, foi sempre livrar a Cidade Invicta de vastos sectores da sua população nativa. Não gosto dos portugueses e, para mim, os portuenses de berço são demasiado portugueses para merecer a minha simpatia. Onde há portugueses não há cultura urbana, precisamente a cultura que me moldou desde o berço. Sou um ser medularmente urbano que não sabe viver longe das grandes cidades: a experiência oitocentista da vida urbana é-me completamente estranha. A oposição entre a cidade e o campo que Eça tematizou em A Cidade e as Serras não faz sentido para um homem que vive a cidade como o seu mundo próprio. O campo aborrece-me de tal modo que não consigo lá permanecer mais de 5 ou 6 dias. Sou demasiado desassossegado e livre para querer viver uma vida tranquila num mundo que rejeita a modernidade. A aventura urbana só tem um rival digno de ser explorado: a selva. Se tivesse de escrever um livro sobre os mundos que me atraem, escolheria como título A Cidade e a Selva, porque é nesta oposição dialéctica que reside o fio condutor que me permite compreender a história da humanidade ao longo dos tempos e a minha própria história de vida. Sou filho de uma cópula paradoxal entre a cidade e a selva, os dois grandes mundos que me viram nascer e crescer e que serviram de palco activo à aventura que sou. A literatura portuguesa, sobretudo a literatura dos tempos modernos, é, quase toda ela, dominada pela indecisão entre a cidade e o campo, oposição esta que Cesário Verde tende a definir como oposição entre a civilização burguesa (cidade) e a Idade Média (campo), cada uma delas com o seu próprio tempo e o seu próprio ritmo: o tema da selva raramente foi tratado pelos autores portugueses. O único que escreveu sobre A Selva foi Ferreira de Castro, mas a sua selva brasileira está muito distante do imaginário mítico das terras selvagens. A oposição entre mito e história é profundamente estranha à literatura portuguesa. Júlio Dinis que traçou a morfologia urbana da cidade do Porto, em função do perfil económico e cultural dos seus habitantes, sobretudo no seu romance Uma Família Inglesa, acabou por se render ao campo, tal como Cesário Verde quando escreveu Nós (1884). Júlio Dinis e Cesário Verde, dois escritores portugueses que cresceram e se fizeram homens nos dois grandes centros urbanos de Portugal: o poeta Cesário Verde em Lisboa e o romancista Júlio Dinis no Porto. O meu projecto dos quadros portuenses, tal como os desenho mentalmente depois de ter chegado vindo de longe à Cidade Invicta, tem pouco a aprender com a poesia de crise de Cesário Verde e com o romance demasiado apegado a paisagens rurais de Júlio Dinis. Confrontar o universo urbano de Cesário Verde com os quadros parisienses de Baudelaire produz - involuntária e inadvertidamente - uma degradação da própria literatura portuguesa: a Lisboa de Cesário Verde não tem nada a ver com a cidade de Paris de Baudelaire. A bohème, o flâneur, o spleen e a modernidade são experiências estranhas ao universo lisboeta de Cesário Verde e, mesmo quando nos deparamos com elas na sua forma rudimentar e elementar, falta-lhes autenticidade. Paris de Baudelaire é dotada de todas as fantasmagorias que povoam as terras selvagens e que animam os seus mitos. Lisboa de Cesário Verde, tal como o Porto de Júlio Dinis, carece de magia, sendo feita de um cinzento monótono que quebra a respiração do poeta:


«O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba:
E os edifícios, com as chaminés, e a turba,
Toldam-se duma cor monótona e londrina.


«Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-se, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.


«E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.


«E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!» (O Sentimento dum Ocidental, 1880)


Joel Serrão teve o mérito de ter esboçado o quadro de Lisboa oitocentista, sem ter esquecido o Porto, como sucede frequentemente neste ermo chamado Portugal e mergulhado no abismo das negras trevas do provincianismo saloio pelas tristes almas vestidas de cirurgia pardacenta: «Durante o século XIX a população portuguesa cresceu a um ritmo seguro que, aliás, se vai acelerar na segunda metade dessa centúria. De 1822 (à volta de 3 milhões) a 1900 (aproximadamente 5 milhões), a grei lusa aumentou cerca de 2 milhões de indivíduos, acréscimo esse bem maior que toda a população da época dos descobrimentos... /Embora "oficialmente" houvesse 31 cidades, como acontece que Braga, o terceiro centro urbano quanto ao povoamento, contava em 1890 apenas 23 000 habitantes, é evidente que na realidade, só Lisboa e Porto vão adquirindo características de cidades "civilizadas". /De facto, os nossos dois maiores centros urbanos evidenciam um dinamismo até então desconhecido entre nós; assim, de 1864 a 1890, a população lisboeta passou de 163 763 para 391 206 e a do Porto de 86 751 para 146 739 habitantes. Ou seja, verifica-se que em 26 anos o número dos seus habitantes duplica. E a par de tal aumento populacional, as duas cidades, e mormente a capital, lá iam apresentando algumas das características das grandes cidades europeias suas contemporâneas. Aí se processa um fenómeno complexo que não só é demográfico mas também, e essencialmente, económico, social, técnico, o que, por seu turno, implica transformações culturais e psicológicas da mais variada gama. No conjunto da vida nacional, os tentáculos das duas cidades, e essencialmente de Lisboa, estendem-se pela província fora, despertando aqui e acolá resistência e adesões: por um lado, movimentos de repulsão rotineira, e, por outro, aspirações inovadoras concretizadas quer no abandono da província quer até na insatisfação perante as tarefas habituais. Por essas duas cidades, introduzia-se no país a civilização europeia coeva e a mentalidade progressista que, através das linhas férreas, paulatinamente se impunha a um país que pulsava ainda, na sua maior parte, a um ritmo bem diverso do dessas capitais de "trabalho, de inteligência, de febre" (como dizia Cesário), - Paris, Londres». Joel Serrão funde de tal modo as duas grandes cidades portuguesas que, pelo menos numa primeira leitura, ofusca as diferenças entre elas, tal como foram vislumbradas por Sampaio Bruno, o rosto aglutinador do Porto da boémia filosofante e política. No entanto, mesmo que se levem em conta essas diferenças, não podemos rejeitar o quadro urbano oitocentista de Portugal esboçado por Joel Serrão. De certo modo, sem disso se aperceber, até porque a sua preocupação estava muito longe do espírito antiburguês da estética, Joel Serrão esboça alguns quadros oitocentistas de Lisboa: a Lisboa dos Cabrais, um quadro delineado a partir da visita do príncipe alemão Lichnowsky em 1842; a Lisboa de Júlio César Machado (cronista), cuja obra A Vida em Lisboa parece recusar os fenómenos que se processavam ao seu redor; a Lisboa de Eça de Queirós (romancista), brilhantemente retratada em A Capital; a Lisboa iluminada à noite pelos candeeiros eléctricos de Guilherme de Azevedo; a Lisboa das boémias literárias e artísticas, em especial a do Grupo do Leão; e a Lisboa de Cesário Verde (poeta). Joel Serrão encara estes quadros lisboetas como «aspectos da vivência citadina» dos referidos escritores, sendo levado a destacar o tédio como o aspecto fundamental dessa vivência citadina. As limitações deste projecto de Joel Serrão evidenciam-se no subtítulo do ensaio Da Lisboa dos Cabrais à Poesia de Cesário Verde: Pistas e Sondagens. Para o converter num verdadeiro projecto dos quadros de Lisboa, o que faria dele um projecto histórico-estético, Joel Serrão devia ter sondado a arquitectura e a pintura, talvez com a ajuda de José-Augusto França. O projecto dos quadros portuenses possibilita mais facilmente, pelo menos do ponto de vista estrutural, a articulação de todas as artes, desde a literatura até à pintura, passando pela arquitectura: Filosofia do Porto-Fantasia Arquitectónica tentou esboçar este projecto, mas a falta de estudos prévios de qualidade dificulta a sua realização plena, como se também eu estivesse obrigado às pistas e sondagens. Sou, portanto, forçado a articular os dois projectos - o dos quadros portuenses e o dos quadros lisboetas - num só projecto que visa, em última análise, clarificar as aventuras e desventuras da dialéctica da modernidade em Portugal.


Em relação à poesia de Cesário Verde, concordo com o quadro geral do seu campo de forças internas em luta permanente, como que suspensas numa indecisão fundamental, apresentado por Joel Serrão, mas vou mais longe quando descubro tensões internas e diversos quadros lisboetas n'O Livro de Cesário Verde. A tese defendida por Joel Serrão resume-se numa única frase: «poeta da cidade e poeta do campo - mas em épocas diversas da sua vida e da sua evolução poética». Esta tese leva o ilustre historiador a estabelecer uma cronologia: as composições poéticas de Cesário Verde anteriores a 1875 revelam uma indecisão fundamental entre o campo e a cidade, na medida em que o poeta, com um pé em Lisboa (cidade, civilização burguesa) e o outro em Linda-a-Pastora (campo, Idade Média), oscila pendularmente de um pólo para o outro. Só a partir da sua composição poética Na Cidade (1876) é que Cesário Verde tenta a aventura da integração urbana, cujos marcos principais são Num Bairro Moderno (1877) e Cristalizações (1879): «Eu julgo-me no Norte, ao frio - o grande agente! - /Carros de mão, que chiam carregados, /Conduzem saibro, vagarosamente; /Vê-se a cidade, mercantil, contente: /Madeiras, águas, multidões, telhados!» (Cristalizações). Por volta de 1880, Cesário Verde é, plenamente, um habitante da cidade, isto é, um burguês, mas, quando escreve O Sentimento dum Ocidental (1880), o seu tédio pessoal se transmuta em dor anónima: à atracção urbana segue-se a repulsa urbana que apela ao regresso à vida tranquila do campo. Depois de ter vivido intensamente a vivência da cidade, Cesário Verde cansou-se dela, sendo levado a voltar-lhe as costas em consequência de uma experiência dolorosa - a doença - que deixou rastos e vestígios nos seus poemas. Cesário Verde regressou finalmente ao campo, onde encontrou a paz, a estabilidade e a harmonia das rotinas rurais. Os poemas Nós (1884) e Provincianas (1887) celebram as harmonias rotineiras da vida rural: «E o campo, desde então, segundo o que me lembro, /É todo o meu amor de todos os anos! /Nós vamos para lá; somos provincianos, /Desde o calor de Maio aos frios de Novembro!» (Nós). Esta celebração da vida provinciana implica a condenação da vida urbana e da própria civilização burguesa: «Ó cidades fabris, industriais, /De nevoeiros, poeiradas de hulha, /Que pensais do país que vos atulha /Com a fruta que sai dos seus quintais?» (Nós). Na poesia de Cesário Verde descobrimos em acção a dialéctica do moderno e do anti-moderno, cujo desfecho fatal é a recusa da própria modernidade. Cesário Verde não ousou consumar a modernidade e, em vez de a completar com um projecto de emancipação geral da sociedade portuguesa, recuou e regressou ao campo, isto é, à sua Idade Média. Curiosamente, o poema O Sentimento dum Ocidental que marca o início da sua ruptura com a modernidade, é dedicado a Guerra Junqueiro, o poeta de Os Simples. Apesar do apelo à simplicidade da vida e das coisas partilhado pelos dois poetas portugueses, não há uma afinidade estrutural entre eles: Guerra Junqueiro não abdica da modernidade, em nome da qual critica severamente a pátria dos portugueses, modernidade esta que foi pensada filosoficamente por Sampaio Bruno, o cidadão portuense que abraçou a Cidade para sempre. A lição a reter é a de que os quadros lisboetas esboçados por Cesário Verde, durante o seu período citadino, não podem ser comparados com os quadros parisienses de Baudelaire: Cesário Verde não foi, cognitiva e afectivamente, um cidadão de Lisboa, como Baudelaire o foi de Paris do seu tempo, logo "o" Baudelaire que esboçou uma filosofia do moderno que cortaria a respiração da alma de Cesário Verde que ansiava pela tranquilidade do campo, onde não se passa nada de novo.


J Francisco Saraiva de Sousa