sábado, 24 de setembro de 2011

Portugal: a country of thieves

Torre de Belém, Lisboa
«Nesta mesma época há apenas duas grandes e nobres figuras: Mouzinho e o filho de D. João VI. O resto não vale a pena da menção. São financeiros e barões, viscondes, condes, marqueses, de fresca e mesmo velha data, comendadores, grã-cruzes, conselheiros: uma turba que grunhe, burburinha, fura, atropelando-se e acotevelando-se na obra de roer um magro osso chamado orçamento, e que grita aqui-d'el-rei! quando não pode tomar parte no regabofe». (Alexandre Herculano)

Todos nós, os poucos portugueses que ousaram e ousam pensar contra o sistema estabelecido, sabemos definir a raiz do mal-existente em Portugal: a turba de ladrões e de corruptos que, no Terreiro do Paço, se atropelam e se acotovelam na obra de roer o orçamento do Estado Português (Alexandre Herculano), entregando e condenando o povo à sua própria imbecilidade (Guerra Junqueiro). O retrato histórico de Portugal que tenho defendido neste blogue pode ser reformulado de um modo intemporal: a História de Portugal é a eterna repetição de um mesmo quadro de rapina e de imbecilidade. Desta vez, vou servir-me do quadro da Revolução Liberal de 1820, magnificamente analisado por Fernando Piteira Santos (1962) na sua obra Geografia e Economia da Revolução de 1820. O que nos interessa destacar não é propriamente a problemática da revolução de 1820, mas a seu fracasso revolucionário. Portugal é um país que tem sofrido algumas revoluções, mas nenhuma delas - incluindo a revolução de 25 de Abril de 1974 - conseguiu mudar o seu rumo, libertando-o do atraso estrutural e devolvendo-o à via do desenvolvimento económico e cultural. Um dado muito significativo deste período é o seguinte: Depois da emancipação do Brasil, os alicerces do comércio português ruíram: seguiu-se um longo período de estagnação económica que se reflectiu nas contas públicas. Em 1828, a receita do Estado foi de cerca de 10 000 contos e a despesa de 13 900, e, três décadas depois, num período em que a Europa conhecia um crescimento económico galopante, a situação económica e financeira portuguesa ainda não tinha sido alterada: 11 489 de receita e 12 944 de despesa. O défice é uma constante na História de Portugal. E não adianta responsabilizar as invasões francesas, a exploração inglesa ou a guerra civil de 1828-34 pela estagnação económica, porque, em 1840, o economista Franzini - futuro ministro da Fazenda - era contrário à instalação de teares modernos em Portugal, alegando que ninguém os saberia manejar. Portugal nunca teve uma elite de homens sábios: o poder foi sempre-já refém de uma turba de ladrões que sacrificam o interesse nacional para garantir o seu próprio bem-estar. Eis como Oliveira Martins retrata este período da História de Portugal, em tudo idêntico ao período que se seguiu à revolução de 25 de Abril, sobretudo depois da adesão de Portugal à União Europeia e da sua entrada na zona Euro, a substituta infiel do Ouro do Brasil e do Império Colonial:


«A consequência mais profunda da revolução liberal foi a ruptura da tradição, o acabamento definitivo do sebastianismo: exprimindo por esta palavra simbólica todo o corpo de ideias, ambições e costumes históricos. Substituiu-se-lhe, porém, a consciência de uma nova pátria moral? Acordou-se o sentimento de um verdadeiro individualismo, fundado na religião (consinta-se-nos dizer assim) democrática? A personalidade tornou-se forte e consciente dos seus direitos? A inteligência apurou-se? Cresceu o saber? Pôde, com estes elementos, constituir-se o corpo homogéneo de uma nova nação real e viva?
«Afigura-se-nos que não; e oxalá isto seja apenas a ilusão de um espírito triste.
«A vazia agitação política, resultado necessário dos regimes parlamentares, parece condenar os pequenos países a uma esterilidade intelectual, porque absorve todas as capacidades desde que desabrocham. A direcção moral que só a ciência pode dar desaparece, e os institutos e as academias vazam-se para encher os parlamentos e alimentar o jornalismo. Vê-se, pois, uma educação aparentemente mais extensa, mas de facto sem intensidade, nem vigor, condenada a uma decadência fatal. Não se sabe mais do que o praticamente indispensável, e por isso mesmo a craveira do saber necessário se fecha diariamente, chegando-se afinal a uma vulgaridade banal.
«Essa mesma agitação política, por natureza inimiga do carácter que amesquinha e deprime, vicia o temperamento das nações condenadas a sacrificarem à profissão todos os seus melhores homens. A corrupção, mais ou menos positiva, a sedução da vaidade, das prebendas, dos empregos, da influência, lança nos caracteres uma semente de perversão que germina no corpo de uma sociedade desprovida de um escol de homens sábios, de caracteres fortes, alheios às misérias comuns: fibra íntima, mola resistente, que ponha em cheque a influência deletéria da intriga.
«A limitada área das operações administrativas, a exiguidade relativa de recursos do tesouro impedem, por seu turno, que se dote o país com a instrumentação necessária a um amplo desenvolvimento da riqueza e do saber, porque esses gastos-gerais das nações não são proporcionais ao seu tamanho, mas quase idênticos em todas elas. Assim, causas de ordem exterior vêm concorrer para agravar as causas de ordem íntima.
«Desde que o saber falta, os erros acumulam-se precipitando a ruína; desde que falta o carácter, a venalidade concorre para encarecer o custeio dos serviços; e ao mesmo tempo o reconhecimento da necessidade de progredir materialmente - e para esse não é mister carácter, nem saber - arrasta a empresas que, entregues a órgãos incapazes, podem ser cataclismos.
«Para além dessa já numerosa classe que governa e intriga, de um modo em que não é lícito ver nobreza nem elevação, burburinha um enxame de trabalhadores obscuros, lavrando pacientemente a terra e transformando os seus produtos, indiferentes a ideias que desconhecem, esquecidos de uma religião anacrónica, desconfiados ou descrentes dos homens, inspirados e movidos pelo propósito único de semear e colher os frutos do seu trabalho. São eles a matéria-prima da sociedade, mas ninguém descobre nessa turba a fisionomia própria das nações. São uma população provincial que enriquece. Até hoje - não é ousadia afirmá-lo - nem eles por si próprios, nem, por eles, os que os mandam, souberam tomar essa matéria-prima, animá-la, dar-lhe a homogeneidade de forma e a vida própria dos organismos colectivos.
«Daí vem o caso, talvez único na Europa, de um povo que não só desconhece o patriotismo, que não só ignora o sentimento espontâneo de respeito e amor pelas suas tradições, pelas suas instituições, pelos seus homens superiores; que não só vive de copiar, literária e politicamente, a França, de um modo servil e indiscreto; que não só não possui uma alma social, mas se compraz em escarnecer de si próprio, com os nomes mais ridículos e o desdém mais burlesco. Quando uma nação se condena pela boca de seus próprios filhos, é difícil, senão impossível, descortinar o futuro de quem perdeu por tal forma a consciência da dignidade colectiva.
«Continua ainda a decomposição nacional, apenas interrompida de um modo aparente pelas ideias revolucionárias e pela restauração das forças económicas fomentadas pelo utilitarismo universal? Ou presenciamos um fenómeno de obscura reconstituição, e sob a nossa indecisa fisionomia nacional, sob a nossa mudez patriótica, sob a desesperança que por toda a parte ri e geme, crepitará latente e ignota a chama de um pensamento indefinido ainda?» (Oliveira Martins) Que mais podemos acrescentar a estas sábias palavras de Oliveira Martins?


J Francisco Saraiva de Sousa