sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Pedro de Amorim Viana: Defesa do Racionalismo

Pedro de Amorim Viana (1822-1901)
Filósofo e Matemático Portuense
«À influência do ambiente e da ideologia paternas, ao descobrimento do mal, ao choque com o Diário da Tarde e com... a Carta Constitucional, aliou-se a figura enigmática de Amorim Viana e a leitura da sua opus magnus, Defesa do Racionalismo ou Análise da Fé, que, publicada em 1865, teve uma terceira edição em 1885. (Três edições, num lapso de vinte anos, de um notável livro de filosofia religiosa heterodoxa no Porto dos fins do século passado - XIX!) O Newton da Academia Politécnica do Porto, «sujíssimo, rotíssimo, sempre com um chapéu alto imundamente oleoso e com umas botas gretadas e cambas», atravessava «filosoficamente de bengala na mão as ruas do Porto, ainda que chovesse a cântaros, fazia paragens nos botequins, especialmente no chalet da Cordoaria, para beberricar bebidas brancas, genebra, de preferência», e encafuava-se longamente, indiferente a tudo, na Biblioteca Pública. Aí, Bruno e Basílio Teles, meninos do Liceu, «com um estremecimento íntimo», iam «espreitar o sábio no isolamento da sua absorvida leitura». Um sábio, da categoria de «Descartes, Montesquieu, Jouffroy», ali à mão de semear, nas ruas do Porto! Era de fazer perder a cabeça a jovens intelectualmente ambiciosos...», como por exemplo Sampaio Bruno. (Joel Serrão)

Pedro de Amorim Viana foi um ilustre professor de matemática na Academia Politécnica do Porto (1850-1883), que publicou em 1866 a sua opus magnus Defesa do Racionalismo ou Análise da Fé. O Porto foi, no século XIX, o pólo irradiador da Filosofia Oitocentista em Portugal, cujas figuras de maior relevo foram Amorim Viana e Sampaio Bruno. A opus magnus de Amorim Viana foi preparada pelos artigos publicados na revista portuense A Península (1852-1853). A "Defesa do Racionalismo" no Porto oitocentista - isto é, a sua problemática teórica - estava marcada pelo racionalismo e pelo espiritualismo, girando assim em torno das figuras de pensamento de Platão, Descartes, Espinosa, Leibniz e Kant. A Ideia de Deus de Sampaio Bruno (1902), o pai da filosofia portuguesa, nasceu de um diálogo, ou melhor, de uma conversa com essa obra seminal de Amorim Viana, precisamente o sábio que o aluno liceal Bruno espreitava na Biblioteca Pública do Porto enquanto ele estava absorvido na leitura. A célebre expressão de Hannah Arendt - o pensamento enquanto relação entre si e si próprio, entre mim e eu próprio, portanto enquanto diálogo silencioso de mim comigo mesmo - aprendeu-a Sampaio Bruno não tanto pela leitura dos diálogos platónicos, mas sobretudo pela sua experiência de exílio na Holanda: «Imaginem este homem sozinho na Holanda... Na Holanda! De manhãzinha, lá ia pelos cais na esperança de ver nalgum navio desgarrado por ali "a bandeirola da Pátria", um só navio "confiando ao vento o trapo bendito". Mas nem sombras. De noite era muito pior. Nem essa esperança havia. Solitude absoluta - até ao momento em que aquilo aconteceu: por falta de outro interlocutor, começou a dialogar consigo, numa ruptura de unidade, em busca de outra mais difícil, mais profunda, a autêntica» (Joel Serrão). O génio de Sampaio Bruno é, como descobriu Joel Serrão, dialogante: Sampaio Bruno passou toda a sua vida a conversar com os amigos inteligentes, com os livros, com as coisas, consigo mesmo na intimidade da solidão, com o messianismo, com Comte e Marx, com a ideia de Pátria, enfim com a ideia de Deus, para encontrar algo - o sentido oculto dos livros, a significação não episódica das coisas, os alicerces da sua consciência moral, a esperança do futuro, o desespero do passado, enfim o sentido da vida e da evolução. O seu livro A Ideia de Deus dever-se-ia intitular Amorim Viana, pelo menos esse foi o título que propôs ao seu editor, mas este franziu o nariz e, alegando razões de ordem publicitária, lá convenceu Sampaio Bruno a adoptar o título com que veio finalmente a lume. Aquilo a que chamei Filosofia Oitocentista - aliás na peugada de Joel Serrão, o historiador português que mais contribuiu para a elaboração da Filosofia Oitocentista Portuguesa - é mais obra de Amorim Viana do que de Sampaio Bruno (1857-1915), cuja obra pertence já - em grande medida - ao espírito do século XX. A admiração juvenil que Sampaio Bruno nutria pela figura sábia de Amorim Viana converteu-se, com o passar dos anos, em crítica: A Ideia de Deus não é um elogio da filosofia racionalista de Amorim Viana, mas a sua crítica sistemática realizada à luz das novas correntes do pensamento filosófico, contra as quais o sábio portuense tinha lutado. Porém, há algo que todos os pensadores portuenses partilham, independentemente da geração a que pertencem: a escultura o Desterrado de Soares dos Reis (1847-1889), outro ilustre portuense mal-tratado pelo poder central, dá visibilidade ao sentimento profundamente portuense de estar exilado na terra portuguesa. Toda a filosofia portuense - digna deste nome - é uma figura de exílio.

A obra filosófica de Amorim Viana foi rapidamente esquecida, como sucede habitualmente em Portugal, o triste país onde cada criatura pensa que pode ser melhor ou fazer melhor do que o outro. Hoje, devido a essa inveja patológica nacional que bloqueia o desenvolvimento cultural, ninguém conhece o pensamento filosófico de Amorim Viana. A Defesa do Racionalismo é uma obra ecléctica, no sentido de articular teses oriundas de Platão, Espinosa, Leibniz e Kant. Racionalismo optimista é a melhor designação que podemos dar à filosofia de Amorim Viana, que, antes de assumir a forma final da sua opus magnus, já estava esboçada em cinco artigos publicados em A Península: Análise das contradições económicas de Proudhon (1852), O poder temporal do Papa (1852), A divindade de Jesus (1852), Da liberdade (1853) e Dos milagres (1853). Caracterizá-la como uma filosofia da religião é matá-la pela segunda vez, depois de ter estado no Index: a filosofia de Amorim Viana pode e deve ser lida à luz das preocupações de Bergson e de Husserl, muitas das quais foram antecipadas por ele. A sua concepção da Filosofia como uma actividade permanente do espírito humano está aí para o testemunhar. Apesar de ser um matemático, Amorim Viana resistiu tenazmente às filosofias que começavam a dominar o seu tempo: o materialismo e o positivismo. A Filosofia enquanto actividade permanente do espírito humano é independente da ciência: a sua função é fornecer à ciência os fundamentos ontológicos que a possibilitam e a fundamentam como saber coerente, sistemático e orgânico do mundo real, sem abdicar da defesa da liberdade do homem. A Filosofia começa com a análise dos "factos da consciência" - os dados imediatos da consciência de Bergson! -, mas estes factos da consciência não são fenómenos psicológicos. Tal como mais tarde Husserl, Amorim Viana opõe-se ao psicologismo: a redução da mente ao cérebro ameaçava a própria liberdade do homem e, consciente desta ameaça, Amorim Viana procurou resolver o problema da relação entre alma e corpo, apelando à teoria da harmonia pré-estabelecida de Leibniz, a única que - na sua perspectiva - permitia resolver o problema sem negar a liberdade humana, desde logo garantida no plano da providência divina. A ideia de Deus e a relação entre fé e razão ocupam um lugar de destaque na filosofia de Amorim Viana: o seu anti-positivismo levou-o a rejeitar a oposição entre fé e razão. O que é a fé? O que é a razão? Amorim Viana responde-nos namorando o pensamento de outro exilado, Espinosa. Privada do seu carácter sobrenatural e misterioso, a fé mais não é do que uma revelação natural e interior, uma iluminação superior do entendimento, que se auto-contém nos limites da razão (Kant): o que quer dizer que a razão comunica com o ser divino dentro dos seus próprios limites. As verdades racionais são, portanto, revelações divinas: Deus comunica-se com o homem tanto através da fé como através da razão e do sentimento moral, mas, apesar dessa presença divina no seu próprio interior, o homem não pode alcançar o conhecimento pleno da essência do ser divino. Aquilo que o homem conhece de Deus é o seu ser para nós e em nós: o que implica a ideia de que Deus se revela mais na razão e no sentimento moral do homem do que na harmonia da natureza, apesar de todos estes domínios do ser estarem previamente harmonizados. A concepção de razão elaborada por Amorim Viana é claramente iluminista: segura de si mesma pela sua origem divina, a razão pode gradualmente produzir o conhecimento adequado à realidade num movimento de ascensão permanente em direcção a essa adequação total. Porém, o optimismo racionalista de Amorim Viana não é apenas epistémico, mas também e sobretudo moral. À luz desta concepção optimista da razão, Amorim Viana levou a cabo a crítica sistemática dos dogmas fundamentais do cristianismo, em especial o pecado original (as ideias de queda e de redenção), a divindade de Jesus (Trindade divina), as ideias de profecia e de milagre, a realidade do mal e a imortalidade da alma humana. Após rejeitar a doutrina do pecado original, a divindade de Jesus, as profecias e os milagres, Amorim Viana nega a existência real do mal e, no que respeita à imortalidade da alma, defende o reformismo ascendente: a ideia de uma sucessão de nascimentos e de mortes noutros espaços depois da morte terrena até a alma alcançar a infinita perfeição que constitui o atributo divino por excelência. Ora, tanto a negação da existência real do mal como a ideia de nascimentos e mortes sucessivas constituem peças fundamentais da metafísica de Amorim Viana que Sampaio Bruno irá retomar noutros moldes e criticar para construir a sua própria filosofia, mas o que aqui importa reter é que Amorim Viana reabilitou a metafísica racional num tempo que já pertencia ao positivismo, o pensamento que alimentará a especulação lisboeta à volta de Teófilo Braga (1843-1924).


J Francisco Saraiva de Sousa

6 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hoje estou rotíssimo como o Amorim Viana! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hallo Deutschland und Niederlanden!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hello United States and Canada!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Seria interessante desenvolver no sentido de o aproximar de Bergson e de Husserl mas daria muito trabalho. A Escola do Porto que entra aqui em acção explicitará muitas dessas temáticas: o que é lamentável é o abuso de uma linguagem espiritualista. Mas, comparando o pensamento portuense com o francês, as semelhanças são evidentes.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mas eu reconheço que não conheço o espiritualismo francês a fundo, mas tenho uma noção porque li Léon Brunschvicg.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O meu formalismo deriva, em parte, de Léon Brunschvicg. Uma pena não estar traduzido!