quinta-feira, 29 de setembro de 2011

John Brockman: a Ciência como Terceira Cultura

John Brockman
«A ciência é uma actividade muito social; viajamos com muita frequência e passamos muito tempo a conversar com outros, tanto amigos com quem trabalhamos como pessoas da comunidade mais vasta. A física é muito oral. Alguns de nós lêem os artigos uns dos outros - eu leio -. mas o canal mais importante de comunicação é por certo a conversação. Na gravidade quântica há uma comunidade de talvez algumas centenas de pessoas, que trabalham activamente no problema e estão em comunicação constante. Para ser franco, há apenas uma coisa de que não gosto na comunidade dos meus colegas, que é o facto de haver ainda tão poucas mulheres. É claro que essa situação vai-se alterando lentamente, mas, nesta área, não se processa ao mesmo ritmo das restantes. Seria interessante saber porquê. /Há um outro aspecto fundamental do trabalho científico que não é, de modo algum, social: o confronto pessoal de cada um com a natureza. No fundo, estou a tentar compreender coisas como o significado do tempo, devido à minha necessidade de saber quem sou, o que é este mundo, o que faço aqui. O trabalho científico constitui, para mim, um tipo de resposta à alienação de ser uma pequena criatura num mundo vastíssimo. Parte da condição de cientista, para mim, reside no facto de saber que, em última instância, estou sozinho e sou responsável por aquilo em que acredito». (Lee Smolin)

Lee Smolin é um físico teórico que tem dedicado grande parte da sua actividade científica à gravitação quântica. A teoria das supercordas foi formulada nos anos 70 e 80 para fundir a relatividade geral com a teoria quântica, de modo a produzir uma descrição correcta do modo como a gravidade e o espaço se comportam, evitando o problema dos infinitos na gravidade: o seu ingrediente fundamental é uma corda microscópica, um objecto que possui uma espessura negligenciável e comprimento muito pequeno, do qual observamos apenas as manifestações de muito baixa energia. O falhanço dramático das teorias das cordas levou Smolin a formular outra teoria unificada da física que conserva o campo gravitacional como ingrediente fundamental da sua problemática teórica, com o objectivo de o tratar quanticamente: o que implica que Einstein não é colocado em segundo plano, sendo a sua teoria encarada como limite de baixa energia, como sucedia e sucede nas teorias das cordas. Smolin tem uma noção mais vasta de terceira cultura do que a de Brockman: a terceira cultura não é tanto o conjunto de académicos que comunicam com o público em geral, mas sobretudo o grupo de académicos que partilham algumas ideias filosóficas que possibilitam o renascimento da tradição da filosofia natural. Dessas ideias destacam-se três: a ideia de que nada é estático nem eterno, evoluindo no tempo (1); a ideia de que não é necessário pensar em termos de um criador inteligente, sendo disparatado considerar que a complexidade e a beleza que observamos à nossa volta partiram da intencionalidade de uma única inteligência (2); e, finalmente, a ideia de que o nosso mundo é essencialmente complexo, diverso e auto-organizado, sendo as propriedades das coisas relativas e não absolutas (3). A teoria unificada de Smolin articula de forma engenhosa e extremamente elegante estas três ideias-temáticas: a teoria da gravidade quântica combina a compreensão do espaço e do tempo que a relatividade nos legou com a teoria quântica, na esperança de obter uma única teoria unificada da física. Mas, além disso, a teoria da gravidade quântica é uma teoria da cosmologia que tem de descrever o universo inteiro do ponto de vista dos observadores que nele vivem. Ora, para construir uma teoria completa e objectiva de todo o universo, Smolin foi inspirado pela biologia da evolução e pela hipótese de Gaia, de modo a evitar o princípio antrópico, tanto na sua versão fraca como na sua versão forte: a fusão entre a relatividade e a cosmologia com a teoria quântica assume assim a forma final de uma teoria da auto-organização. Depois de ter concebido o universo inteiro como um sistema auto-organizado, Smolin procura elucidar o mecanismo de auto-organização capaz de actuar cedo na história do universo para seleccionar as propriedades das partículas elementares e das forças da natureza. O único princípio suficientemente potente para explicar o elevado grau de organização do nosso universo - comparado com um universo com as partículas e as forças escolhidas aleatoriamente - é, na perspectiva de Smolin, a própria selecção natural. E o mecanismo pelo qual a selecção natural actua à escala do próprio universo é enunciado nestes termos: «as propriedades das partículas e das forças são seleccionadas para maximizar o número de buracos negros que o universo produz». De acordo com esta perspectiva, os universos que permitem a complexidade e a evolução reproduzem-se mais eficientemente do que outros universos menos complexos: as suas estrelas formam-se, evoluem e morrem, formando buracos negros, no interior dos quais uma pequena região dá origem a um novo universo que retém as leis da física do universo progenitor. O conjunto de universos evolui assim não de forma aleatória mas por meio de uma espécie de selecção darwinista, em favor de universos potencialmente complexos que contenham relógios e observadores. Para formular a sua teoria, Smolin conjuga e articula ideias que não vamos elucidar, pelo menos neste texto: o que interessa destacar é o facto de Martin Rees - astrofísico teórico - ter demonstrado que o nosso universo não possui propriedades que maximizem a probabilidade de buracos negros, sendo possível imaginar um universo ligeiramente diferente do nosso que fosse capaz de produzir um maior número de buracos negros: quer dizer que a teoria unificada de Smolin é demasiado vulnerável para convidar a construir algo filosoficamente seguro e sedutor a partir dos seus pressupostos darwinistas. A física é hoje conflito de interpretações.


John Brockman formulou muito mal a teoria da terceira cultura e, curiosamente, os cientistas e filósofos que reuniu para dar corpo a essa teoria não souberam distanciar-se da sua formulação demasiado ideológica. A ideia com que se fica é a de que se trata apenas de uma nova cultura pública que dispensa os intermediários: os produtores de conhecimentos dispensam os serviços dos intermediários na difusão da sua visão científica do mundo, assumindo eles próprios a tarefa de divulgar numa linguagem acessível ao grande público os seus resultados científicos. A cultura pública - enquanto nova face da cultura científica - é assim reduzida à divulgação científica. A formulação da teoria da terceira cultura realizada por Brockman parte de um equívoco: Em 1963, quando acrescentou um novo ensaio à sua obra The Two Cultures (1959), Snow apontou o surgimento de uma terceira cultura capaz de superar o fosso de comunicação entre os literatos e os cientistas, usando como exemplo toda a reflexão filosófica gerada em torno da biologia molecular. Brockman retoma o conceito de terceira cultura, mas rejeita veementemente a comunicação entre os agentes das duas culturas, a cultura literária e a cultura científica. Deste modo, a terceira cultura mais não é do que a cultura científica, cujos agentes recusam dialogar com os literatos, preferindo comunicar directamente com o grande público, sem recurso aos intermediários tradicionais. Brockman descreve não o aparecimento de uma terceira cultura, situada além das culturas literária e científica, mas a metamorfose ou a transformação pela qual a ciência, depois da emigração de Albert Einstein para os Estados Unidos, antes da guerra, se tornou cultura pública, eclipsando a cultura tradicional: «os cientistas são os novos intelectuais públicos», cuja missão é modelar «o pensamento da sua geração», - e «os Estados Unidos são agora - graças ao surto da ciência nas universidades americanas, subsequente ao lançamento do satélite soviético Sputnik - o alforge intelectual da Europa e da Ásia». Com este elogio do espírito científico americano, a terceira cultura revela o seu verdadeiro rosto: «O aparecimento da terceira cultura introduz novos modos de discurso e reafirma a supremacia dos Estados Unidos no domínio das ideias importantes. Através da história, a vida intelectual tem sido marcada pelo facto de apenas um número restrito de pessoas se ter dedicado a transmitir um pensamento sério aos seus semelhantes. Estamos a assistir à passagem de testemunho de um grupo de pensadores, os intelectuais tradicionais, para outro grupo, os novos intelectuais da terceira cultura emergente». Os novos intelectuais da terceira cultura emergente, todos eles clientes da agência literária de Brockman, utilizam um «novo conjunto de metáforas que fornecem uma descrição de nós próprios, da nossa mente, do universo e de tudo o que conhecemos»: a nova filosofia natural que protagonizam e que comanda o nosso tempo fundamenta-se na compreensão alargada da complexidade e da evolução. As ideias de Marx e de Freud foram desalojadas pelas ideias de Darwin: a nossa época, pelo menos desde a Queda do Muro de Berlim até à crise financeira de 2008, glorifica em todos os domínios do saber o triunfo de Darwin, o qual corresponde ao período da terrível onda neoliberal. O que é preciso realizar agora é a avaliação crítica deste novo conjunto de metáforas construído em torno de Darwin. Como é evidente, enquanto cientista, não posso duvidar da qualidade da ciência que se pratica nos Estados Unidos: o que está em questão não é a própria ciência, mas a sua organização social, por um lado, e a filosofia natural elaborada a partir dela, por outro lado. Muitos conhecimentos científicos dados como adquiridos estão a ser desmentidos pelas novas descobertas científicas realizadas com o auxílio de tecnologia avançada: os diversos mundos da ciência estão a sofrer alterações tão profundas que não permitem elaborar uma Nova Filosofia. A ciência aproxima-se da Filosofia, mas esta última não encontra solo seguro na ciência para ousar levar a cabo uma reforma radical do entendimento. Ou dito de uma forma provocante: o triunfo da ciência tal como foi protagonizado pelos novos intelectuais da terceira cultura coincide com a tomada de consciência dos limites da própria ciência. Assim, por exemplo, Paul Davies, mais outro físico teórico, retoma Santo Agostinho para concluir que a ciência não é boa para explicar os porquês: «Talvez não exista um porquê. Perguntar "por que" (há um universo e este universo em particular) é muito humano, mas talvez não haja resposta, em termos humanos, para perguntas tão profundas sobre a existência. Ou talvez haja, e estejamos a olhar para o problema da forma errada. Bem, não prometi respostas sobre a vida, o universo e tudo mais, mas pelo menos dei uma resposta plausível para a pergunta com a qual comecei: o que aconteceu antes do big bang? A resposta é: nada». Ao contrário do que defende o próprio Brockman, um número significativo dos seus clientes dialoga activamente com os pensamentos produzidos pela cultura literária, a maior parte das vezes em busca de novas metáforas para descrever o universo, a vida e a mente. A comunidade científica, pelo menos os seus membros mais destacados - cientistas e filósofos, está ciente das dificuldades da própria ciência para elaborar uma nova filosofia, e muitos deles começam a duvidar da autoridade de Darwin, bastando referir os nomes de R. C. Lewontin e de S. J. Gould, cuja filosofia se move nos territórios de Marx. Estará a ciência em crise? Conhecemos a resposta de Lenine: o discurso da crise da ciência é um discurso burguês, de cariz marcadamente idealista. As crises científicas não são crises da ciência, mas crises de crescimento científico que conduzem - por aproximações sucessivas - a uma visão mais verdadeira do mundo. Talvez Lenine tenha razão, mas ainda não conseguimos traçar os contornos gerais dessa nova visão do mundo. Ou talvez não tenha razão, estando hoje a ciência a ser substituída por algo estranho e inusitado cujo rosto desconhecemos. Steve Jones, um especialista em genética, escreveu um belo ensaio para explicar por que algumas pessoas são negras: após ter exposto as diversas teorias darwinistas, chega à conclusão que todas elas são incapazes de explicar a cor da pele. No entanto, Steve Jones continua a acreditar que a resposta correcta será dada brevemente: o seu optimismo científico deve ser confrontado com os resultados da sua própria crítica das teorias propostas, a qual revela a afinidade estrutural entre o darwinismo - convertido em dogma - e a exploração do homem pelo homem, ou seja, a sua natureza ideológica, de resto denunciada por Lewontin e, de modo brilhante, por Marshall Sahlins (1976). Entretanto, a Filosofia - salvo raras excepções - tem evitado fazer incursões pelo território das especulações cosmológicas da ciência, preocupando-se mais com a esfera pública dos assuntos humanos. Ora, é precisamente nesta esfera que a especulação científica tem fracassado: os novos intelectuais da terceira cultura são completamente avessos à História, território distinto da evolução biológica. Toda a obra de Anne Fausto-Sterling - professora de medicina - sobre o papel da raça e do género na construção das teorias científicas, bem como sobre o papel destas teorias na construção das ideias sobre raça e género, pressupõe um diálogo subterrâneo com a teoria de Marx, que ainda não foi explicitado e avaliado. Entre Marx e Darwin não existem tantas afinidades como as supostas, excepto a ideologia do progresso atribuída a ambos. Concordo com a crítica que Brockman dirige às capelinhas exclusivistas, onde habitam os intelectuais específicos de Foucault, mas não o acompanho quando rejeita a herança de Marx a favor da herança de Darwin, porque de uma coisa estou seguro: a nova filosofia que parece emergir no horizonte intelectual do nosso tempo indigente continuará a ser uma filosofia da história e da política, para a construção da qual Darwin não tem nada de importante a dizer.


Observação: Este artigo deve ser lido em conexão com este outro artigo: C. P. Snow: Duas Culturas?. Os novos intelectuais da terceira cultura deviam estudar a sério a Filosofia, para compreender que a cosmologia tal como a concebem tem pouco a dizer sobre o lugar do homem no mundo. Assim, por exemplo, a afirmação de Martin Rees sobre o homem como poeira estelar desencadeia em nós um sorriso filosófico. Diz ele que «para entender a nós próprios, precisamos entender as estrelas», porque nós «somos poeira estelar - as cinzas das estrelas há muito tempo mortas». Uma tal definição da Humanidade do Homem de nada nos serve: a poeira estelar que somos construiu um mundo próprio, no qual se tornou questão para si própria. E é esta questão que concentra toda a atenção da Filosofia.


J Francisco Saraiva de Sousa

7 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, eu sou mesmo assim: mudo facilmente de assunto conservando a mesma preocupação de fundo. Em suma: estou a meditar a teoria do universo de Smolin e a sua gravitação quântica. Gosto da noção relacional de tempo e a sua implicação - a paragem. São assuntos muito complexos e as teorias são demasiado vulneráveis para convidar a construir algo seguro a partir dos seus pressupostos. A física é hoje conflito de interpretações.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ando preocupado com as traduções automáticas dos meus textos: não imagina como a Rússia, a Dinamarca ou mesmo a Itália lêem os meus textos nas respectivas línguas. Vez ou outra escrevo de modo a não colidir com o inglês, mas não posso abdicar do seu próprio estilo. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

não imaginO*

Também depende dos tradutores usados: uns são melhores do que outros. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ai, que horror: começo a não ter paciência para carregar os portugueses... Fonex de país de imitadores: até os meus nicks copiam. Esta psicologia colectiva é podre!!! :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

É claro que a teoria do tempo de Smolin me encanta: concebe a paragem e a criação do tempo. Evidente, demasiado evidente descobrir uma afinidade que nunca neguei. :P

Ai, também não adianta chamar-me cosmólogo: um dos meus primeiros trabalhos foi sobre cosmologia. É claro que não pretendo romper com a tradição de que faço parte: a ciência e também a filosofia.

Sou absolutamente anticriacionista e ponto final! Esse pretenso "diálogo" não faz parte do meu código genético!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mas, sim, sou capaz de criticar Smolin num aspecto... :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Como ainda estou a concluir este texto, alterei a sua data de publicação, passando de 26 para 29 do corrente mês.