domingo, 11 de setembro de 2011

Gilberto Freyre e a Formação do Brasil

Giberto Freyre (1900-1987)
«Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração económica, híbrida de índio - e mais tarde de negro - na composição. Sociedade que se desenvolveria defendida menos pela consciência de raça, quase nenhuma no português cosmopolita e plástico, do que pelo exclusivismo religioso desdobrado em sistema de profilaxia social e política. Menos pela acção oficial do que pelo braço e pela espada do particular. Mas tudo isto subordinado ao espírito político e de realismo económico e jurídico que aqui, como em Portugal, foi desde o primeiro século elemento decisivo de formação nacional. /O colonizador português do Brasil foi o primeiro, dentre os colonizadores modernos, a deslocar a base da colonização tropical da pura extracção de riqueza mineral, vegetal ou animal - o ouro, a prata, a madeira, o âmbar, o marfim - para a de criação local de riqueza. /Os portugueses não trazem para o Brasil nem separatismos políticos, como os espanhóis para o seu domínio americano, nem divergências religiosas, como os ingleses e franceses para as suas colónias. /O Brasil formou-se, despreocupados os seus colonizadores da unidade ou pureza da raça. /A singular predisposição do português para a colonização híbrida e escravocrata dos trópicos, explica-a em grande parte o seu passado étnico, ou antes, cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África.» (Gilberto Freyre)

Infelizmente, não possuo muitas das mais importantes obras sobre a História do Brasil. Ontem, à noite, resolvi retomar as obras de Gilberto Freyre, em especial Casa-Grande & Senzala (1933) e Sobrados e Mucambos (1936), e, a seguir, algumas outras obras sobre antropologia brasileira (Darcy Ribeiro, Gilberto Velho e Emilio F. Morán, por exemplo). O Brasil Colonial interessa-me naturalmente, mas o que me fascina mais é o Brasil dos séculos XVIII e XIX e da primeira metade do século XX. A razão de ser deste fascínio prende-se ao tipo de recrutamento étnico que variou ao longo dos séculos no decurso da colonização portuguesa (1500-1822). Inicialmente, os primeiros colonos portugueses chegados às terras brasileiras pertenciam predominantemente às províncias do Sul de Portugal, fortemente moçárabes. No século XVII, o recrutamento estendeu-se aos açorianos. Porém, no século XVIII, quando as cidades brasileiras - cidades-portos abertos ao grande além e à civilização urbana - começaram a tomar o controle do Brasil, os colonos portugueses chegados ao Brasil eram provenientes das províncias do Norte de Portugal. As histórias do Porto e do Brasil dos séculos XVIII e XIX estão intimamente ligadas entre si: o espírito de cidadania portuense foi assim levado para o Brasil, tendo contribuído para o fomento da unidade nacional brasileira. O Brasil do século XIX e da primeira metade do século XX atrai-me pela qualidade dos seus escritores e da sua escrita: aqui vou referir unicamente um aspecto do Brasil do século XX que chamou a minha atenção no decorrer de um trabalho de campo sobre comportamentos sexuais, a imprensa brasileira fescenina. Gilberto Freyre não deixou escapar esta herança portuguesa no Brasil: «Outro aspecto da obsessão que se tornou em Portugal o problema do amor físico surpreende-se no facto de não haver, talvez, nenhum país onde a anedota fescenina ou obscena tenha maiores apreciadores. Nem em nenhuma língua os palavrões ostentam tamanha opulência. Os palavrões e os gestos. (...) O erotismo grosso, plebeu, domina em Portugal todas as classes, considerando-se efeminado o homem que não faça uso dos gestos e dos palavrões obscenos. A mesma coisa no Brasil, onde esse erotismo lusitano só fez encontrar ambiente propício nas condições lúbricas de colonização. A maior delícia do brasileiro é conversar safadeza. Histórias de frades com freiras. De portugueses com negras. De ingleses impotentes». Este gosto do brasileiro pelo palavrão obsceno encontra-se materializado no jornalzinho O Coió que começou a ser publicado em Abril de 1901, donde retive o seu Dicionário Moderno. O brasileiro herdou do português este gosto pelo palavrão obsceno que é transversal a todas as classes sociais. A obra de Gilberto Freyre constitui um formidável documento de cultura luso-brasileira: três heranças - a portuguesa, a indígena e a negra - misturaram-se por intoxicação erótica para formar o Brasil: a miscigenação - isto é, a mestiçagem - é, fundamentalmente, um fenómeno sexual. O Brasil nasceu de uma cópula a três, uma cópula que envolve três figuras culturais - o colonizador português, o indígena culturalmente infantil e o co-colonizador que é o negro: «Quanto à miscibilidade, nenhum povo colonizador, dos modernos, excedeu ou sequer igualou nesse ponto aos portugueses. Foi misturando-se gostosamente com mulheres de cor logo ao primeira contacto e multiplicando-se em filhos mestiços que uns milhares apenas de machos atrevidos conseguiram firmar-se na posse de terras vastíssimas e competir com povos grandes e numerosos em extensão de domínio colonial e na eficácia de acção colonizadora. A miscibilidade, mais do que a mobilidade, foi o processo pelo qual os portugueses se compensaram da deficiência em massa ou volume humano para a colonização em larga escala e sobre áreas extensíssimas. Para tal processo preparara-os a íntima convivência, o intercurso social e sexual com raças de cor, invasoras ou vizinhas da península, uma delas, a de fé maometana, em condições superiores, técnicas e de cultura intelectual e artística, à dos cristãos louros». Um observador exterior - Roger Bastide - não compreendeu a natureza deste intercurso social e sexual entre o colonizador e o colonizado, tentando minar a própria unidade brasileira e a sua ligação orgânica a Portugal com a questão da escravatura, mas, como demonstrou Gilberto Freyre, o colonialismo português é completamente distinto dos outros colonialismos modernos: «No Brasil iniciaram os portugueses a colonização em larga escala dos trópicos por uma técnica económica e por uma política social inteiramente novas: apenas esboçadas nas ilhas subtropicais do Atlântico. A primeira: a utilização e o desenvolvimento de riqueza vegetal pelo capital e pelo esforço do particular; a agricultura; a sesmaria; a grande lavoura escravocrata. A segunda: o aproveitamento da gente nativa, principalmente da mulher, não só como instrumento de trabalho mas como elemento de formação da família. Semelhante política foi bem diversa da de extermínio ou segregação seguida por largo tempo no México e no Perú pelos espanhóis, exploradores de minas, e sempre e desbragadamente na América do Norte pelos ingleses». O colonialismo português não foi tão imperialista e inumano como o foram os colonialismos inglês e espanhol, apesar do tráfico de escravos: os portugueses levavam consigo para os novos territórios que colonizavam o sonho de construir "novas lusitânias", o que implicava o desenvolvimento económico e cultural das colónias. Gilberto Freyre descobriu a peculiaridade da colonização portuguesa na vocação psicosocial do português para a miscigenação, que homenageia quando assume que a originalidade da sua obra híbrida reside no seu pluralismo metodológico: «sou um maníaco da miscigenação, mistura de sangues, de valores, de estilos e de métodos». O pluralismo metodológico como processo inspirado na miscigenação bio-cultural: eis a novidade teórica de Gilberto Freyre enquanto cientista social.

O interesse de Portugal voltou-se completamente para a América quando foi banido das Índias Orientais: a sociedade que os portugueses construíram no Brasil pretendia ser uma continuação da sociedade metropolitana portuguesa nos seus mínimos detalhes. Uma Nova Lusitânia: eis o que os portugueses quiseram construir nos trópicos. E, depois do grito do Ipiranga de D. Pedro (7 de Setembro de 1822), os portugueses retomarão esse mesmo empreendimento em Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Goa, Damão e Diu, e Timor. Jaime Cortesão teve o mérito inegável de ter esboçado uma Filosofia dos Descobrimentos Portugueses, mas, olhando para a História do Império Colonial Português, pressentimos uma outra filosofia mais profunda do espírito português que urge estudar: a miscigenação de que fala Gilberto Freyre até pode ser uma das peças dessa filosofia profunda dos portugueses, mas não é a peça central: esta está ligada à relação ambígua e paradoxal dos portugueses com o seu próprio país de origem, isto é, com Portugal. Ou dito de uma forma mais arriscada e ainda provisória: fora de Portugal os portugueses são lusitanos, uns de um modo mais envergonhado do que outros, mas dentro de Portugal eles são anti-Portugal. Esta forma de enunciar a relação paradoxal dos portugueses com o seu país - um misto de amor e de ódio - parece ser desmentida pelo facto do anti-portuguesismo ter sido a nota dominante dos primeiros tempos da independência do Brasil, um sentimento que demorou longamente a dissipar-se, com prejuízo tanto para o Brasil como para Portugal. No entanto, o anti-portuguesismo inicial dos brasileiros não tem nada a ver com esse mesmo sentimento expresso pelas populações nativas das outras colónias portuguesas, sobretudo pelas lideranças acéfalas, primitivas e delirantes dos movimentos de libertação, em especial Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. A independência do Brasil foi promovida pelos próprios colonos portugueses, liderados por José Bonifácio de Andrade e Silva, e com a ajuda de D. Pedro, o príncipe herdeiro a quem D. João VI confiou a regência do Brasil quando abandonou o Brasil para regressar a Portugal (1821): o Brasil não expulsou os portugueses, apropriando-se dos seus bens e das suas propriedades, como sucedeu de forma cruel e violenta em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. A mestiçagem tão característica dos portugueses, mais evidente em Angola do que em Moçambique, não os protegeu da fúria dos negros - bem-alimentados, vestidos, calçados, escolarizados, vacinados e com saúde e emprego acessível - que, embalados na e pela propaganda de ódio dos seus dirigentes, pensaram que, para garantir o seu futuro, bastava expulsar os portugueses e apropriar-se dos seus bens. Porém, a história fez justiça aos portugueses: com a sua expulsão, os movimentos de libertação expulsaram o próprio impulso gerador de riqueza, condenando os seus povos à miséria e à doença, e os seus patrimónios à destruição e à usura do tempo. O discurso da miscigenação, da pluralidade de raças e do multiculturalismo é muito giro, mas, quando visto desapaixonadamente à luz da realidade efectiva, é profundamente irrealista: o Brasil não sofreu o mesmo destino de Angola e de Moçambique porque soube conservar as suas elites brancas e, deste modo, a sua herança ocidental. Mas há mais a dizer de forma desapaixonada: um país multi-racial e multi-cultural é muito difícil de gerir e torna-se ainda mais difícil quando expulsa a sua minoria branca, como sucedeu nalgumas colónias portuguesas e na Rodésia e na África do Sul. Se Portugal é um país multi-étnico, como pensava Gilberto Freyre, então podemos descobrir aí um dos factores responsáveis pelo seu atraso estrutural: Portugal é, efectivamente, um país dividido, um Norte que quer avançar para a frente, e um Sul que bloqueia o desenvolvimento, como se Portugal fosse uma praia africana. E Portugal - além de estar situado na Europa, como é evidente - é um país predominantemente branco. A maior parte dos portugueses não são mestiços, negros ou "mouros", como advogava Gilberto Freyre: o que quer dizer que as políticas coloniais portuguesas de mestiçagem - claramente promovidas no Império do Oriente - não podem ser explicadas por esse suposto factor de mestiçagem intrínseca, mas por outros factores, tais como os factores demográficos, políticos e militares e, como é evidente, a falta de mão-de-obra. Josué de Castro, outro ilustre brasileiro, estabeleceu a geopolítica da fome, cujas fronteiras já chegaram à Europa Mediterrânica, mas hoje, neste mundo global sombrio, precisamos de elaborar uma geografia da composição racial e étnica e avaliá-la em função dos índices de desenvolvimento. Não vale a pena enterrar a cabeça na areia, como faz a avestruz, e iludir a verdade: a construção do futuro do mundo depende de um discurso que saiba dizer a verdade sem abdicar da emancipação. É certo que o Ocidente explorou e dominou o mundo, mas também foi ele que contribuiu para a sua libertação: fora do Ocidente não há liberdade, como já sabia Hegel. A exploração e a opressão não são invenções ocidentais: o que é deveras ocidental é a luta contra a exploração e a opressão. Os movimentos de libertação de Angola e de Moçambique prometeram o paraíso aos seus povos, acusando os portugueses de serem exploradores e imperialistas. Mas o que aconteceu nesses países independentes depois da expulsão e da desapropriação dos portugueses? Assim, por exemplo, a Angola de hoje é infinitamente mais desigual e mais corrupta do que foi no tempo da colonização portuguesa: os "libertadores" de ontem são os opressores de hoje. Aquando da independência Angola e Moçambique encontravam-se em plena fase de arranque industrial: as cidades de Lourenço Marques, Beira e Luanda eram mais ricas do que as cidades da metrópole e os seus habitantes de todas as cores coexistiam pacificamente, depositando confiança no futuro. A África Austral - Angola, Moçambique, Rodésia e África do Sul - estava em condições de rivalizar com os pólos mais desenvolvidos do mundo, mas, infelizmente, a conquista do poder pelos movimentos de libertação (sic) trouxe a desgraça e a regressão: África é hoje um continente esquecido que está a ser colonizado pelos chineses. O ressentimento demonstrado pelos angolanos e pelos moçambicanos quando expulsaram os portugueses dos seus territórios carece de sentido: matar nas ruas cães e outros animais brancos simplesmente por serem "brancos", como sucedeu em Moçambique, prova até que ponto este povo estava enganado quanto ao seu destino. A expulsão dos portugueses foi fatal para o futuro de Angola e de Moçambique: privados de quadros técnicos ocidentais e de elites cultas, estes povos ficaram entregues ao abandono total. Os portugueses moçambicanos foram sempre mais elitistas do que os portugueses angolanos, talvez devido ao forte contacto que mantinham com a Rodésia e a África do Sul: a miscigenação angolana não teve paralelo em Moçambique, mais vocacionado para um estilo de vida cosmopolita. Os dirigentes angolanos e moçambicanos, formados na guerrilha e no terrorismo, em vez de atiçarem os seus povos negros contra os portugueses, em nome de uma ideologia ocidental que nunca compreenderam, deviam ter lido as obras de Gilberto Freyre. Hoje os moçambicanos e os angolanos têm saudades dos portugueses, mas já é tarde: o mundo mudou e eles estão a ser colonizados pelos chineses que se "clonam" rapidamente em qualquer território, sem deixar espaço livre para os nativos se reproduzirem. Se este cenário se consumar a grande escala, o elemento negro só poderá sobreviver lá para onde os portugueses o levaram como escravo. A China é um terrível destino para todo o mundo: a vida num mundo chinês não merece ser vivida. (No período anterior à independência de Macau, uma delegação chinesa disse a Mário Soares que a China era mais forte do que Portugal porque tinha uma população mais numerosa do que a população portuguesa: eis aqui o rosto da política expansionista da China super-populosa! Extermínio!) Estarão os africanos preparados para travar uma batalha de vida ou de morte contra os invasores chineses? Os africanos e os índios são, de todos os povos do mundo, os mais fracos, e esta fraqueza não tem parado de crescer desde que ficaram entregues a si próprios. Sem um Ocidente forte não há futuro para os africanos! A invasão chinesa ameaça eliminar a beleza natural de África, privando-a dos seus tesouros ecológicos, da sua biodiversidade, da sua fauna, da sua flora, da sua riqueza natural, das suas tradições culturais, dos seus habitantes nativos, enfim das suas danças e do seu batuque. A descolonização tal como foi realizada foi um tremendo erro - um erro fatal para o Ocidente e para os africanos. Os nossos maiores inimigos não são os árabes mas os chineses. O nosso futuro depende da tomada de consciência desta nova realidade e das políticas que adoptarmos para evitar esta desgraça mundial. Um único rinoceronte vale mais do que toda a China!

J Francisco Saraiva de Sousa

9 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Esta é uma reflexão livre que ainda não vai abordar de frente a formação do Brasil: pretendo confrontar 2 ou 3 obras mas para isso preciso de tempo livre. Mas fica a promessa... :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, há aqui uma mensagem para os russos! Hello Rússia! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Jaime Cortesão dedicou alguma atenção aos pensamentos de Júlio de Mesquita Filho e de Gilberto Freyre, ilustrando as Bandeiras. Convém ter em conta que Jaime Cortesão escreveu vários livros sobre o Brasil. Ele compara a formação de Portugal com a do Brasil em termos de geografia política e o que retém de Freyre é a ideia o desejo de movimento no espaço geométrico e social. Quanto à micigenação, penso que Cortesão, com a sua tese de que os nossos avós são lusitano-celtas, não está de acordo, mas é preciso ver isso de perto. Freyre cita Cortesão e o seu estudo extenso sobre as Bandeiras no Brasil.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bah...

... a ideia do desejo de movimento...

... miscigenação.

Ah, referi o Norte e o Sul de Portugal. Freyre tem consciência disso e fala no Norte - louro e celta. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Muito obrigado ao site Moçambicanos na Diáspora, acho que é este o nome. Felicidades! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Também sou solidário com os amigos angolanos que não querem os chineses em Angola. Os chineses investem levando a sua próprio mão-de-obra! Colonialismo atroz e inestético, muito feio! Expulsem-nos! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Os africanos não devem matar os rinocerontes para alimentar a triste e pequena libido chinesa! Expulsem-nos!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Adoro os rinocerontes, mas, quando os vi pela primeira vez num parque africano, era miúdo e fiquei com algum medo: eles eram enormes e lindos!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, e muito obrigado por me considerarem um luso-africano ou um luso-moçambicano! Sou tudo o que desejarem desde que os rótulos não colidam com o meu modo de ser e a minha alma blue-ocidental. :)