domingo, 18 de setembro de 2011

D. João V e o Ouro do Brasil

D. João V de Portugal (1689-1750)
«Um facto fortuito, alheio aos elementos naturais da vida portuguesa na Europa, tinha vindo pelos fins do século XVII influir poderosamente nos destinos da nação. Despovoado e inculto o reino, miseráveis e nuas as povoações, sem riqueza nem trabalho - as minas do Brasil deram ao rei e ao povo uma fortuna que o reino lhes negava. /A situação que a descoberta da Índia criara a Lisboa, no século XVI, renascia agora com a riqueza americana. Populosa, teatralmente opulenta de um luxo fidalgo e sacerdotal, a corte de uma espécie de sátrapa, Lisboa era mais a metrópole de um vasto império ultramarino, do que a capital de um reino europeu. Portugal via-se outra vez o alfoz da sua bela cidade que o devorava. O destino marítimo da nação, criado pelo seu porto magnífico, numa das fronteiras do mundo, condenava-se a sofrer as duras consequências de uma grandeza singular. Portugal, nos antigos e modernos tempos, só comenta a miséria das suas províncias, a penúria do seu organismo nacional, nas horas de crise: 1640, 1755, 1820, 1834. Agora, as minas americanas chamam todas as ambições e todas as forças para a cidade onde se encontra a vida inteira da nação. Na corte, em Lisboa, portanto, se desenrola a história, muda em províncias despovoadas, embrutecidas e miseráveis. /Foi sobre o ouro e os diamantes do Brasil que se levantou o novo trono absoluto de D. Pedro II; foi com eles que D. João V. e todo o reino, puderam entregar-se ao entusiasmo desvairado dessa ópera ao divino, em que desperdiçaram os tesouros americanos. O acaso, pai sem virtudes deste filho pródigo chamado Portugal brigantino, concedeu a um tonto o uso de armas perigosas, abrindo-lhe de par em par as portas dos arsenais; e D. João V, enfatuado, corrompeu e gastou, pervertendo-se também a si e desbaratando toda a riqueza da nação. Tal foi o rei. O povo, pastoreado pelos jesuítas, beato e devasso, arreava-se agora de pompas para assistir como convinha à festa solene do desbarato dos rendimentos do Brasil.» (Oliveira Martins)

A História de Portugal pode e deve ser vista como uma sucessão contínua de governantes loucos e desvairados que fazem de Lisboa o palco de uma triste história nacional: a história do fracasso permanente da corte saloia sediada em Lisboa. Nestes três primeiros parágrafos do capítulo IV - As Minas do Brasil (D. João V) - do Livro Sexto da sua História de Portugal, Oliveira Martins capta o mal radical da governação portuguesa que, com o reinado de D. João V, atinge um dos seus pontos máximos: «O inglês sentava-se com ele à mesa, e aplaudia os desperdícios, porque todo o ouro do Brasil passava apenas por Portugal, indo fundear em Inglaterra, em pagamento da farinha e dos géneros fabris, com que ela nos alimentava e nos vestia. A indústria nacional constava apenas de óperas e devoções, O português só sabia ser lojista: todo o comércio externo estava na mão de ingleses, principalmente, e de italianos» (Oliveira Martins). Os saloios que têm governado Portugal ao longo do tempo são de tal modo idiotas que acreditam nas palavras dos estrangeiros, aos quais confessam aquilo que nunca devia ser dito. Oliveira Martins remota um dito do Lord Tirawley, o embaixador da Inglaterra, «verdadeiro sultão em Portugal», para mostrar a estupidez do povo português: «Que se pode esperar de uma gente, metade da qual está pela vinda do Messias, e a outra metade pela de D. Sebastião?» O que está aqui em causa não é tanto o divórcio entre o povo e o regime, mas sobretudo a percepção justa que os estrangeiros tinham de Portugal: os ingleses foram aqueles que mais beneficiaram com os desperdícios e a devassa de D. João V. Querendo imitar Luís XIV de França, D. João V era o bobo da Europa, para tristeza de Alexandre de Gusmão, seu secretário, e de D. Luís da Cunha, embaixador em Paris: «D. João V não regateava o preço das coisas; antes, como rei brasileiro, rico sem bem saber como, punha a honra na despesa, imaginando espantar o mundo com o modo perdulário com que dissipava. Mais de duzentos milhões de cruzados foram para Roma; não tem conta o que deu pelo reino às igrejas, aos conventos de frades e freiras e na sua fúria de ser esmoler-mor do catolicismo lembrava-se de todos derramando por toda a parte o ouro do Brasil: Santo Antão de Benavente, S. Francisco de Badajoz, a capela dos portugueses de Londres, o presepe de Belém na Palestina, os templos de Jerusalém, para não falar nos de Roma. - Alexandre de Gusmão, atónito, apertava a cabeça com ambas as mãos, exclamando: "A fradaria absorve-nos, a fradaria suga tudo, a fradaria arruína-nos"». D. João V foi ao mesmo tempo um rei beato, corrupto e devasso: recrutava as suas amantes nos conventos e a sua verdadeira paixão estava em Odivelas, o ninho de devassidão e de pecado da madre Paula. Mas o facto de perder a cabeça por todas as mulheres não pode iludir a sua natureza afectada: «D. João V presidia aos conselhos, entretendo-se a armar e desarmar um modelo do Vaticano, de madeira, miniatura primorosa que de Roma lhe tinham enviado de presente». Este comportamento revela mais do que o carácter "infantil" do rei: revela - antes de tudo - a mulher lúbrica e devassa que habitava a mente do rei. D. João V que procurou imitar Luís XIV, nunca se interessou pela economia real e pela política real do reino: toda a sua atenção era dirigida para as coisas do culto. Assim, por exemplo, reparando que os galões que vinham de fora para as armações de igrejas e para os fatos dos soldados não eram de boa qualidade, o rei criou uma fábrica de sedas, como se essa fosse a primeira necessidade de um reino que não fiava a lã, nem o linho. O despesismo irracional de D. João V consumou-se na construção de Mafra, que «devorou, em dinheiro e gente, mais do que Portugal valia». Este retrato incompleto do reinado de D. João V é suficiente para mostrar as semelhanças entre a ilha dos lagartos, como lhe chamou António José, sendo queimado por causa disso, e os tempos mais recentes que se seguiram à entrada de Portugal na zona Euro. Portugal bem pode ter acesso a todos os tesouros do mundo, sem por isso mudar de rumo no sentido de promover o desenvolvimento económico e cultural do país: a corte de corruptos e de ladrões concentra-se toda em Lisboa - o palco da história feita por ladrões - para sugar a falsa riqueza, com ou sem a bênção da Igreja Católica, deixando o resto do país entregue à desertificação, ao despovoamento e à miséria. A História de Portugal é uma catástrofe contínua. O terramoto de 1755 livrou o país da ilha dos lagartos, mas, como observou Oliveira Martins, não livrou o povo de descer mais fundo na direcção do abismo fatal. (O meu amigo Zekzander realizou aqui uma avaliação crítica do reinado de D. João V, cuja leitura recomendo.)

Alguém julgou detectar uma afinidade entre a minha perspectiva da História de Portugal e a de Oliveira Martins: é provável que exista essa afinidade porque li muito cedo a obra de Oliveira Martins, um homem que se fez homem na Cidade do Porto. Mas esta afinidade, se existir!, não implica a rejeição da História de Portugal de Alexandre Herculano, mais outro homem que amou o Porto. Alexandre Herculano era avesso à Filosofia da História, o que não sucedia com Oliveira Martins. Porém, cada um deles esboça uma Filosofia da História de Portugal. É relativamente fácil articular o meu pessimismo metódico com o pessimismo de Oliveira Martins, mas - já que teimam na existência dessa afinidade - vou aceitar o desafio, retomando uma das suas teses estruturais: Oliveira Martins não acreditava que os povos formados a partir do negro e do índio fossem capazes de gerar o "progresso". Partilho a descrença de Oliveira Martins, mas vou mais longe quando vejo essa força de bloqueio ao desenvolvimento encarnada nas populações do Sul de Portugal. Apesar de ter nascido em Lisboa, Oliveira Martins viveu no Porto, onde aprendeu a ver à distância o todo nacional: Portugal ainda não completou a sua obra de expulsão dos "mouros" do território nacional. Guerra Junqueiro admirava a obra histórica de Oliveira Martins e, talvez pensando nele, escreveu estas palavras fortes: «A história pátria resume-se quási numa série de biografias, num desfilar de personalidades, dominando épocas. Sobretudo depois de Alcácer. Povo messiânico, mas que não gera o Messias. Não o pariu ainda. Em vez de traduzir o ideal em carne, vai-se dissolvendo em lágrimas. Sonha a quimera, não a realiza». Os mais ilustres pensadores da nacionalidade portuguesa não acreditam na capacidade dos portugueses - classes dirigentes e povo - para realizar a quimera sonhada. Mas que quimera é essa que não vejo esboçada, nem em obras nem em pensamentos? Durante a campanha eleitoral Pedro Passos Coelho enganou os portugueses, dizendo-lhes que tinha um projecto nacional, mas, logo que venceu as eleições e formou governo, esqueceu tudo o que tinha dito para se entregar de corpo e alma à tarefa cruel de sacar o dinheiro aos portugueses para o dar aos bancos estrangeiros. Tal como D. João V, Passos Coelho quer impressionar os seus colegas europeus, fazendo o seu próprio jogo, sem se preocupar com o desenvolvimento da economia real de Portugal. O projecto de Passos Coelho é empobrecer Portugal para enriquecer a banca alemã, holandesa e, talvez, francesa. A fradaria que hoje nos suga tudo são os mercados financeiros. E, não satisfeito com esta triste e cruel política do "bom aluno", Passos Coelho deseja ser mais papista do que o Papa, tomando de ânimo leve medidas que vão para além da troika. Porém, os portugueses, estúpidos e gananciosos como são, são responsáveis pela sua própria pobreza, porque confiaram o seu voto a quem nunca deu provas efectivas de ser diferente dos demais políticos da praça. A imbecilidade é o único projecto que vejo em acção em Portugal. Ora, um verdadeiro projecto nacional implica uma ruptura radical com a imbecilidade dos dirigentes e do povo português: desmamar os instalados constitui a sua palavra de ordem. No dia em que isso ocorrer, Portugal será livre para repensar o seu futuro.


J Francisco Saraiva de Sousa 

1 comentário:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

«Nos vícios e nas virtudes, nos erros e nos acertos, na perversidade e na nobreza dos indivíduos que foram, há um exemplo excelente. Na sabedoria ou na loucura dos actos políticos e administrativos passados há um meio de prevenir e encaminhar a direcção dos actos futuros. A história é, nesse sentido, a grande mestra da vida». (Oliveira Martins)

A imbecilidade consiste em repetir sempre os mesmos erros! :(