segunda-feira, 15 de março de 2010

O Marxismo de Henri Lefebvre

«O pensamento filosófico e a acção, que não se contentam com uma posição puramente formal e com uma consciência absolutamente teórica, podem procurar evitar a cisão entre a forma e o conteúdo, apoderando-se imediatamente de um certo conteúdo concreto. Mas se a operação que toma um conteúdo parcial, se limita a este elemento do real, exige-o necessariamente num absoluto. Faz dele uma forma fetichizada. Podemos tomar, por exemplo, como conteúdo: a realidade psicológica individual, a comunidade nacional, a realidade espiritual do homem, a exigência humana de unidade e realidade. Cada um destes "momentos" do real, isolado e hipostasiado, torna-se o negador dos outros momentos, e, em seguida, negador de si mesmo. O conteúdo limitado e transposto na forma torna-se opressivo e destruidor da sua própria realidade. Assim o nacionalismo transforma-se no inimigo das realidades nacionais; o liberalismo deixa estiolar a liberdade; o espiritualismo torna-se o adversário do espírito vivo e o individualismo torna-se o adversário do indivíduo concreto; o "totalitarismo" opõe-se à realização total do homem... Filosoficamente, este processo transforma em erro uma verdade parcial precisamente ao pô-la no absoluto. Cria uma meta-qualquer coisa. O racismo é uma meta-biologia; a teoria nacionalista é uma meta-história ou uma meta-sociologia. Esta operação comporta todos os riscos da meta-física. Recusando uma parte do conteúdo, sanciona e agrava a dispersão dos elementos do real. Negligencia as conquistas dos outros domínios e surge assim como um procedimento de especialista ou de partidário. Exprime uma reacção de defesa do indivíduo, ou do seu grupo, mais que uma consciência voltada para a solução. Uma única via continua aberta ao espírito para resolver os verdadeiros problemas: o esforço para a tomada de posse do conteúdo total. Este esforço definirá a vida filosófica». (Henri Lefebvre)
Henri Lefebvre (1901-1991) exerceu a dialéctica como um esforço de apreensão do movimento do conteúdo total, que evita a cisão entre a forma e o conteúdo: «A dialéctica, longe de ser um movimento interior do espírito, é real antes do espírito - no ser. Impõe-se ao espírito. Analisamos primeiramente o movimento mais simples e abstracto, o do pensamento mais despojado; descobrimos assim as categorias mais gerais e o seu encadeamento. É-nos necessário em seguida fazer a ligação desse movimento ao movimento concreto, ao conteúdo dado; tomamos então consciência do facto que o movimento do conteúdo e do ser se elucida para nós nas leis da dialéctica. As contradições do pensamento não provêm apenas do pensamento e da sua impotência: vêm também do conteúdo. O seu encadeamento tende para a expressão do movimento total do conteúdo e eleva-se ao nível da consciência e da reflexão. O saber não pode ser considerado como encerrado pela lógica dialéctica. Pelo contrário: a investigação deve receber aí um novo élan. A dialéctica, movimento do pensamento, apenas é verdadeira num pensamento em movimento. Sob a forma de teoria do devir e das suas leis - ou de teoria do conhecimento - ou de lógica concreta, o materialismo dialéctico não pode ser mais que um instrumento de investigação e acção, jamais um dogma. Ele não define; situa os dois elementos da existência humana: o ser e a consciência. Hierarquiza-os: o ser (a natureza) tem a prioridade, mas a consciência tem para o homem a primazia; aquilo que apareceu no tempo pode ser erigido pelo homem e para o homem, em valor superior. Enquanto doutrina, o materialismo dialéctico não pode continuar a ser encerrado numa definição exaustiva. Define-se negativamente, opondo-se às doutrinas que limitam, de fora ou de dentro, a existência humana, seja subordinando-a a uma existência externa, seja reconduzindo-a a um elemento unilateral ou a uma experiência concebida como privilégio e definitiva. O materialismo dialéctico afirma que a adequação do pensamento e do ser não se pode reduzir a um pensamento mas deve ser alcançado concretamente, isto é, na vida e como força concreta do pensamento sobre o ser».
A originalidade do marxismo de Lefebvre reside na articulação complexa que opera entre a dialéctica e a teoria da alienação e do fetichismo da mercadoria, da qual surge a figura derradeira da dialéctica como objectivo da humanidade desalienada: «O homem total é o homem "desalienado". O fim da alienação humana será "o regresso do homem a si mesmo", ou seja, a unidade de todos os elementos do humano. Este "naturalismo acabado" coincide com o humanismo». A dialéctica de Lefebvre opõe-se ao marxismo oficial ou institucional que, no seu tempo, procurou vedar o acesso às obras do jovem Marx que convidavam à redescoberta de Hegel. Eduard Bernstein e Lucio Colletti defendiam que a dialéctica era inseparável do idealismo, preconizando o seu abandono em nome de um materialismo positivista, enquanto Della Volpe, Châtelet e Althusser aconselhavam a abandono da noção de alienação. Althusser defende que há no pensamento de Marx uma ruptura epistemológica que se situa em 1845: Marx opera n'A Ideologia Alemã um ajuste de contas com a sua anterior consciência filosófica, abandonando o conceito de alienação e substituindo o humanismo filosófico dos Manuscritos de 1844 por uma teoria científica da sociedade e da história. Lefebvre detesta o estruturalismo tecnocrático de Althusser e dos seus seguidores, cujas descontinuidades estabelecidas - em nome da cientificidade - no seio do próprio pensamento de Marx e nas suas relações com Hegel imobilizam a própria dialéctica. Para Lefebvre, não há nenhuma ruptura entre uma obra de Marx e as obras precedentes, nem absoluta descontinuidade: o pensamento de Marx desenvolve-se energeticamente, crescendo e transformando-se. Entre a teoria revolucionária de Marx e a filosofia de Hegel há uma conexão interna fundamental: a Fenomenologia do Espírito de Hegel é uma crítica oculta, isto é, mistificada, no sentido em que, ao apreender a alienação do homem, explicita de forma antecipada os elementos críticos que permitem a Marx elaborar a crítica e a fundamentação da Economia Política. O acerto de Marx com Hegel reside precisamente nesta crítica e nesta fundamentação da Economia Política: a teoria da alienação que Marx retoma de Hegel, para fundamentar o seu humanismo, é uma teoria concretamente dialéctica, uma teoria da negatividade, viva e histórica no seio humano.
Ora, o marxismo de Lefebvre é profundamente humanista, e, tal como o de Marx, o seu pensamento está em constante transformação energética: a teoria da alienação que se aprofunda na crítica do fetichismo da modernidade garante-lhe uma unidade tensa, dinâmica e aberta, que não permite encará-lo como uma sequência descontínua de quadros. O proletariado foi, para o marxismo, uma terrível decepção: a filosofia não se realizou e a unidade entre teoria e praxis quebrou-se. A Filosofia que tinha sido dada como superada continua viva: o momento de transformação do mundo fracassou. O pensamento de Lefebvre pretende ser um pensamento meta-filosófico, situado para além da Filosofia, mas descobrimos facilmente, no seu seio, a movimentação total de uma filosofia que reinterpreta novamente o mundo, para dinamizar uma nova praxis: «A filosofia nova depende de um acto real e de uma exigência, não de um postulado, de uma alternativa abstracta, de um valor arbitrariamente escolhido ou de uma ficção. A sua tarefa é a de "efectuar" as ligações implícitas - mediações - entre todos os elementos e aspectos do conteúdo da consciência e do ser humano. Nesta procura, o único critério possível é prático: eliminar o que detém o movimento, o que separa e dissocia, o que impede a ultrapassagem». O marxismo enquanto teoria aberta não pode desistir da Filosofia, e, hoje em dia, ele é, mais do que nunca, uma Filosofia que denuncia o que há de falso na identidade, na adequação do concebido com o conceito. Num mundo absolutamente alienado, a sua tarefa é romper imanentemente a aparência da identidade total: «A contradição é o não-idêntico sob o aspecto da identidade; a primazia do princípio de contradição dentro da dialéctica mede o heterogéneo pela ideia de identidade. Quando o distinto choca contra o seu limite, supera-se. A dialéctica é a consciência consequente da diferença» (Theodor W. Adorno). Lefebvre enquanto filósofo da diferença deu contributos fundamentais para a construção deste novo marxismo, contributos esses que deverão ser redescobertos, retomados e aprofundados.
Para a compreensão da dialéctica de Lefebvre, recomendo a resdescoberta e a releitura de onze das suas inúmeras obras, todas elas traduzidas em língua portuguesa. Convém observar que as traduções portuguesas foram realizadas durante o período revolucionário, sofrendo reedições até à década cavaquista que mergulhou Portugal na penúria cultural: Cavaco Silva e o seu PSD/ Partido da Rolha destruíram a cultura portuguesa. Eis as obras:
1. Lefebvre, Henri (1979). Lógica Formal, Lógica Dialéctica, 2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. (Crítica interessante da lógica formal.)
2. Lefebvre, Henri (s/d). O Materialismo Dialéctico. Amadora: Edições Acrópole. (Obra fundamental para captar a dialéctica de Lefebvre.)
3. Lefebvre, Henri (1975). Para Compreender o Pensamento de Karl Marx, 2ª Edição. Lisboa: Edições 70. (Síntese notável da evolução do pensamento de Marx.)
4. Lefebvre, Henri (1975). O Marxismo. Amadora: Livraria Bertrand. (Síntese do marxismo.)
5. Lefebvre, Henri (1975). O Pensamento de Lenine. Lisboa: Moraes Editores. (A recordação e a saudade do maior revolucionário dos tempos modernos. Guevara abandona Cuba - o mundo em construção - e regressa às suas origens andinas para dar um novo salto: a construção positiva da utopia. O tema do avançar e do recuar - magnificamente elucidado por Lenine ou por Heidegger - faz parte da dialéctica marxista.)
6. Lefebvre, Henri (1975). Contra os Tecnocratas. Lisboa: Moraes Editores. (Crítica fantástica e demolidora do estruturalismo.)
7. Lefebvre, Henri (s/d). A Linguagem e a Sociedade. Lisboa: Editora Ulisseia. (A necessidade de encarar a linguagem na sua conexão fundamental com a sociedade. Merece especial destaque a análise das três grandes reduções: a redução dialéctica de Marx, a redução fenomenológica de Husserl e a redução linguística de Saussure.)
8. Lefebvre, Henri (1969). Introdução à Modernidade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. (Uma crítica romântica da modernidade e de algumas das suas ideias mais sólidas: o domínio da natureza e das suas forças e o crescimento do homem - a saída da morada - implicam sempre o voltar às origens - a entrada na morada, o regresso ao lar. O crescimento do homem exige, por vezes, grandes regressões ou, pelo menos, recuos significativos, que lhe permitem resistir ao império omnipotente da técnica e dos actuais deuses-computadores.)
9. Lefebvre, Henri (1976). Hegel, Marx, Nietzsche, ou o Reino das Sombras. Lisboa: Editora Ulisseia. (Uma trilogia que deixa no esquecimento Freud.)
10. Lefebvre, Henri (s/d). Sociologia de Marx. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária. (Apresentação notável da sociologia de Marx.)
11. Lefebvre, Henri (1971). O Fim da História. Lisboa: Publicações Dom Quixote. (Concebe uma saída da História que, de certo modo, inibe a sua dialéctica.)
J Francisco Saraiva de Sousa

5 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Estou cada vez mais preocupado com o programa político que move o PSD - o Partido da Rolha:

Neste Congresso, O PSD com a votação dos delitos de opinião converteu-se num partido da ditadura: é uma vergonha ver o PSD, que já tinha dado um enorme contributo para a corrupção - caso BPN, etc., tornar-se um partido anti-liberdade.

Doravante, depois deste Congresso, o PSD é o partido da ROLHA - da censura, e mente descaradamente quando diz ser um partido de centro-direita ou social-democrata: o PSD é a Mentira amiga da Ditadura. Os militantes do PSD andam doravante com uma rolha na boca - não podem pensar e exprimir livremente os seus pensamentos. O cavaquismo impera no partido da rolha: a proposta de lei dos casamentos do mesmo sexo foi enviada para o Tribunal Constitucional.

É preciso começar a pensar nas presidenciais e aglutinar os amigos da liberdade em torno de Manuel Alegre ou de outro candidato de Esquerda democrática e republicana.

O PSD vive internamente a claustrofobia democrática que atribui ao país. Abaixo o PSD fascizante! Abaixo Manuela Ferreira Leite! Abaixo a homofobia presidencial! Abaixo o cavaquismo! Queremos viver num Portugal moderno e livre.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O post está concluído. Lembro que o seu objectivo não era analisar a dialéctica de Lefebvre, mas sim trazê-lo à nossa presença - recordá-lo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Será necessário escrever uma obra sobre o marxismo e a ironia e sobre a maiêutica marxista! Mas, para isso, é preciso ler As Teorias sobre a Mais-Valia de Marx... O marxismo é uma maiêutica política que procura dar à luz uma nova sociedade do futuro que ela traz. Marx e Sócrates são a mesma figura! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Afinal, o marxismo é uma maiêutica política: a sua função é ajudar o parto de uma nova sociedade - o futuro que a actual sociedade traz no seu ventre. Isto permite reler Marx à luz de Sócrates e Sócrates à luz de Marx. Lutamos por uma nova Atenas! :)

O objectivo deste pensamento é lixar Hannah Arendt e Rorty: fechando um círculo maiêutico. Com Marx, regressamos à Grécia - Marx como o Sócrates dos tempos modernos! Há, portanto, uma ironia dialéctica! Todos os filósofos marxistas são parteiras. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O regresso à Grécia é um regresso da juventude, não da juventude sempre-já envelhecida que esqueceu a história, mas da juventude que luta contra a geriatria instalada: rejuvenescer o Ocidente exige este recuo maiêutico. Somos filósofos da Primavera! :)

Quando falo de juventude, estou a lidar com um fenómeno da natureza, colocando um desafio a Marx e à sua filosofia da natureza: o de converter a sua luta entre proprietários privados e proletários em luta entre forças conservadoras e forças criadoras, entre geriatria e juventude. Esta contradição é política: a geriatria - incluindo os jovens que nascem já mortos, sem história, condenados à repetição - é a parte conservadora e a juventude é a parte destruidora. Da geriatria emana a acção que conserva a contradição e da juventude a acção que a aniquila. Acabo de usar terminologia filosófica arrancada da Sagrada Família! :)

A superação marxista também pode ser destruição - aniquilamento da ordem existente e da sua meta-física.

O gozo que tudo isto me dá reside no facto de saber que posso captar Marx usando qualquer rede, o que significa que ele incorpora a Herança. Marx é o Ocidente! :)