quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Homofobia e Homossexualidade Reprimida

«Nunca considero saudável um paci-ente a menos que tenha superado o seu preconceito contra a homosse-xualidade». (George Weinberg)
A análise crítica da teoria da homo-fobia, que realizei noutros posts - aqui, aqui e aqui, discutiu três limitações do conceito de homofobia: aqui retomo a terceira limitação, onde a teoria revela a sua força explanatória e preditiva. Os estudos empíricos mostraram que os homens heterossexuais são mais hostis em relação aos homens gay do que as mulheres heterossexuais, e, de modo diferente, são menos hostis em relação às lésbicas do que as mulheres heterossexuais. Isto significa que as atitudes heterossexuais em relação às lésbicas têm uma organização psicológica diferente da que têm em relação aos homens gay (Herek, 2002; Herek & Capitanio, 1999). Numa perspectiva feminista lésbica, Kitzinger (1987), Pellegrini (1992) e Rich (1980) sugeriram que a opressão das lésbicas é qualitativamente diferente da opressão dos homens homossexuais. Alguns psicanalistas menos ortodoxos, tais como West (1977) e Kuyper (1993), defenderam que a homofobia é o resultado de uma homossexualidade reprimida ou latente. Entendida como uma excitação homossexual que o indivíduo nega ou da qual não é consciente, a homossexualidade latente permite explicar a doença emocional e as atitudes irracionais exibidas por alguns indivíduos que sentem culpa pelos seus interesses eróticos encobertos e que se esforçam por os negar ou reprimir. Ora, quando colocados numa situação susceptível de excitar os seus próprios pensamentos homossexuais não-desejados, os indivíduos homófobos reagem com pânico e fúria (Slaby, 1994). A ansiedade derivada da homossexualidade não ocorre entre indivíduos que são atraídos e orientados pelo mesmo sexo, mas envolve frequentemente indivíduos que são ostensivamente heterossexuais e que têm muita dificuldade em integrar os seus sentimentos homossexuais. Portanto, estas teorias psicanalíticas prevêem que os homens homofóbicos exibem maior nível de excitação sexual quando enfrentam estímulos homossexuais do que os homens não homofóbicos.
Adams, Wright & Lohr (1996) testaram esta previsão, realizando um estudo com dois grupos de participantes: homens homofóbicos e homens não-homofóbicos, avaliados e classificados previamente pelo Index of Homophobia (Hudson & Ricketts, 1980). Os participantes foram depois expostos a estímulos eróticos sexualmente explícitos: videotapes de cenas homossexuais, heterossexuais e lésbicas, e a excitação sexual peniana foi monitorizada. Os dois grupos de homens reagiram com aumento da excitação sexual peniana aos filmes heterossexuais e lésbicos, mas somente o grupo homofóbico reagiu eroticamente aos filmes homossexuais. Estes resultados sugerem que a homofobia está intimamente associada à excitação homossexual. Isto significa que os homens homofóbicos são provavelmente homossexuais dissimulados ou em processo de negação da sua própria homossexualidade, o que pode explicar a sua agressividade dirigida mais contra os homens gay do que contra as lésbicas. De um modo geral, os homens heterossexuais toleram a homossexualidade feminina e excitam-se com cenas lésbicas, como mostra a indústria masculina dos filmes pornográficos: alguns desses homens heterossexuais alegam que preferem filmes pornográficos lésbicos, porque não gostam de ver pénis erectos. Realizado em função da teoria da homofobia, lida à luz de certas teorias psicanalíticas, o estudo de Adams, Wright & Lohr (1996) confirma, pelo menos, duas previsões da teoria da homofobia de Weinberg: o preconceito homofóbico é mais frequente entre os homens do que entre as mulheres, e os homens heterossexuais são mais hostis em relação aos homens gay e menos hostis em relação às lésbicas do que as mulheres heterossexuais, e isso talvez porque alguns homens ostensivamente heterossexuais temam ser homossexuais - a homossexualidade latente dos freudianos, sentindo-se, por isso, «ameaçados pela presença dos homossexuais» que, além de os excitar sexualmente, desprezam as normas básicas da masculinidade convencional pelas quais os homófobos se regem artificialmente, embora não sejam necessariamente mais agressivos - com excepção da agressão verbal exibida publicamente pelo autor deste post homófobo e sobretudo deste disparate - do que os homens não-homofóbicos.
A teoria do preconceito sexual, que foi elaborada para substituir a teoria da homofobia, não consegue abdicar do conceito de homofobia interiorizada. O conceito de homofobia interiorizada foi forjado por Weinberg (1972) para designar a auto-aversão ou o desconforto que os indivíduos homossexuais exibem frequentemente em relação à sua própria orientação sexual. A homofobia interiorizada implica, portanto, sentimentos negativos relativos à sua própria homossexualidade, isto é, um conflito intrapsíquico entre o que as pessoas pensam que devem ser - heterossexuais convencionais - e o modo como experienciam aquilo que são ou a sua própria sexualidade - homossexuais ou bissexuais. Daqui deriva a ideia fértil de que o processo de assunção da homossexualidade é, ao mesmo tempo, um processo recorrente de luto pela heterossexualidade, pelo menos de luto pelos seus privilégios sociais e legais, e algo análogo sucede com o luto pela homossexualidade realizado pelos heterossexuais que, ao conformarem os seus comportamentos sexuais pelas normas de género dominantes, sacrificam as mais-valias eróticas do mesmo sexo. Malyon (1982) cunhou o termo homofobia exógena para distinguir a hostilidade que os heterossexuais dirigem contra os homossexuais da homofobia interiorizada. A teoria do preconceito sexual deveria operar a substituição da homofobia interiorizada por um destes conceitos: estigma sexual interiorizado, heterosexismo interiorizado ou preconceito sexual interiorizado. Porém, nenhum deles é capaz de evocar as emoções negativas experienciadas por um indivíduo em relação à sua própria homossexualidade. O estigma sexual interiorizado e o heterosexismo interiorizado não envolvem atitudes negativas em relação ao self, e, apesar de as evocar, o preconceito sexual interiorizado não é suficiente para traçar a distinção entre o sentimento de vergonha por ser homossexual e a hostilidade dirigida contra outros homens gay e lésbicas. A teoria do preconceito sexual é assim obrigada a conservar a noção de homofobia interiorizada (Herek et al., 1997). Ora, como vimos, um dos estudos empíricos que suporta a hipótese da homofobia mostrou que os homens homofóbicos reagem com erecção do pénis aos estímulos homossexuais masculinos (Adams, Wright & Lohr, 1996). Isto significa que a homofobia, enquanto manifestação de ansiedade, está associada à excitação homossexual, embora não esteja necessariamente ligada à perpetração de agressões - os crimes de ódio - contra membros das minorias eróticas. O homófobo pode e deve ser visto como um homossexual reprimido, sobretudo quando cria e imagina delirantemente agendas gayzistas consecutivas para suavizar o seu sentimento de vergonha e de auto-aversão: o homem homófobo, pretensa e ostensivamente heterossexual, que reage com erecção do pénis a estímulos homossexuais, não é verdadeiramente heterossexual, necessitando por isso de ajuda psiquiátrica para assumir o gay que há em si, sem enganar os outros e enganar-se a si próprio. (O autor dos dois posts - orgulhosamente homofóbicos - referidos já respondeu aqui e aqui. Mas o melhor será ler este belo post sobre a questão urbana. )
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Prós e Contras: Rumo Incerto

Prós e Contras debateu (22 de Fe-vereiro) novamente o rumo incerto de Portugal, visto à sombra da catástrofe que se abateu sobre a Madeira, do caso Face Oculta, da entrevista do Primeiro-Ministro na SicNotícias e da crise económica, política e social nacional. Os convidados - António Almeida Santos, António Hespanha, Vicente Jorge Silva, Miguel Anacoreta Correia, Rui Machete e Irene Pimental - não acrescentaram nada de substancialmente novo àquilo que já conhecemos. Fátima Campos Ferreira procurou converter a união em torno da catástrofe que se abateu sobre a Madeira em solidariedade nacional, mas depressa compreendeu que as solidariedades nacionais duram geralmente pouco tempo: Portugal não tem o futuro assegurado, navega nas águas perigosas da cisão nacional e os portugueses estão completamente alienados de si mesmos e do mundo. O caso da Face Oculta revela até que ponto chegou a alienação e a anomia nacionais: em vez de clarificarem a gravidade da nossa situação social, alguns jornalistas, próximos do PSD decadente e de outras forças obscuras, acusam infundadamente o Primeiro-Ministro, José Sócrates, de ter alinhavado um plano de asfixia da comunicação social, como se os portugueses estivessem realmente preocupados com a liberdade de imprensa desses tolinhos que se julgam mediadores ou fazedores da opinião pública. O jornalismo lisboeta não goza de prestígio e de credibilidade entre os portugueses: os debates entre jornalistas que comentam notícias fabricadas através de indícios e dos seus próprios estados de penúria anímica e cognitiva não são escutados pela maioria dos portugueses. A comunicação social portuguesa perdeu toda a credibilidade: jornalistas que insultam o Primeiro-Ministro e violam o segredo de justiça, para depois o acusar de controle da comunicação social, são figuras que não merecem respeito. Em Portugal há liberdade de expressão e liberdade de imprensa, mas não há imprensa nem jornalismo credível. Ou, para apreender de chofre a essência da res publica portuguesa, em Portugal há democracia, mas não há democratas: eis a face verdadeira da crise da democracia portuguesa que permite articular os três temas deste debate - a catástrofe na Madeira, a guerra civil desencadeada por magistrados que pretendem ser políticos, por políticos que desprezam a política e por jornalistas que sonham ser um quarto poder ou, nas palavras de Vicente Jorge Silva, um tribunal, e a incerteza do destino nacional.
A noção da imprensa como um tribunal - defendida por Vicente Silva - é verdadeiramente perigosa e os jornalistas que anseiam por esse tipo de justiça mediática podem e devem ser acusados de subverter a democracia: a sua libertinagem irresponsável - a liberdade como ruído - degrada a confiança, isto é, agrava a desconfiança, que os portugueses depositam nas suas instituições públicas. Um país onde os jornalistas comentam as notícias que produzem, violando o segredo de justiça e devassando a vida privada dos cidadãos, como sucede neste momento de eclipse democrático em Portugal, é o retrato de um país mergulhado na insanidade mental: a comunicação social portuguesa está a liquidar a democracia e os seus profissionais - com a ajuda de políticos medíocres e de magistrados levianos, arrogam o direito de fazer e de manipular a opinião pública, silenciando a pluralidade das opiniões. Quando a comunicação social procura colocar os diversos públicos em confronto com as instituições democráticas e com os seus representantes, o totalitarismo começa a estar na ordem do dia. Irene Pimental quis afastar esta possibilidade totalitária, alegando que não há censura, mas o problema do totalitarismo é muito mais complexo: a democracia sem democratas é já uma preparação para o totalitarismo. António Hespanha que anseia pelo seu regresso à gleba forneceu dois indicadores do totalitarismo: a censura que o actual director do semanário O Sol - o difusor da devassa da vida privada e o violador do segredo de justiça (Almeida Santos) - exerceu sobre as suas opiniões, negando a sua publicação, e o modo inquisitorial como certos jornalistas fabricam falsas notícias a partir da adição de indícios sem provas materiais: a «verdade» é obtida pela adição - ou somatório - de indícios-opiniões, cada um dos quais vale 1/8, sendo necessário somar oito opiniões para apresentar uma calúnia ou uma suspeita como material e factualmente provada (8/8). A «verdade» é, para estes tristes jornalistas, um somatório de mentiras privadas. O jornalismo de investigação consiste, neste país insano, em coleccionar opiniões, cujo somatório não precisa de prova para indicar um crime, neste caso o crime contra o Estado de Direito atribuído a José Sócrates, de resto negado pelo PGR e pelo Presidente do Supremo Tribunal. A imprensa quer substituir os tribunais e condenar o Primeiro-Ministro e os seus "boys": o chamado quarto-poder quer ser o poder total, convertendo a opinião pública - fabricada por mentes enfermas - em domínio total que visa liquidar o poder político - o poder do Estado democrático, com a ajuda de políticos que acusam o Primeiro-Ministro de ser mentiroso. Rui Machete e Anacoreta Correia são mais moderados, preferindo ver no caso da Face Oculta - a face visível de um PSD desesperado - um problema político e não um problema jurídico. Almeida Santos recusou participar na discussão deste problema, alegando que a imprensa está a violar o segredo de justiça e que o ónus da prova deve ser apresentado pelos adversários do Primeiro-Ministro.
Ora, os que acusam o Primeiro-Ministro de ser mentiroso são, eles próprios, mentirosos profissionais. Mentira política: eis aqui o problema político nacional número um. Com a desaprovação enfática de Rui Machete, que fez questão em desmentir a teoria das elites do poder de Wright Mills, António Hespanha tematizou - penso - a mentira política em termos de condenação da acção corrupta generalizada das pseudo-elites nacionais: o exemplo da Argentina permitiu-lhe mostrar que o círculo estreito das elites nacionais pode levar Portugal à ruína e à bancarrota. Vicente Silva lembrou que Portugal é o terceiro país do mundo onde a desigualdade social se agrava ano após ano, o que mostra o fracasso das promessas do 25 de Abril, e Anacoreta Correia frisou que este caso de degradação da qualidade jornalística está a desviar a consciência dos portugueses da gravidade da situação catastrófica nacional. Além da catástrofe natural que se abateu sobre a Madeira, com a ajuda das políticas anti-ambientais do poder regional (Vicente Silva), Portugal é sempre-já invadido por um enxame de microtragédias (António Hespanha), que traduzo no conceito de que cada português é real ou virtualmente um microcosmos de pobreza, e Portugal, um macrocosmos de pobreza: o PS e os partidos da oposição não encaram de frente os problemas estruturais e conjunturais que mergulham Portugal na miséria e na pobreza. Todos mentem, sobretudo o PSD, que, na sua campanha interna, omite sistematicamente a sua posição sobre a actual crise económica e financeira (Rui Machete), como se ela se resolvesse eliminando José Sócrates. O futuro de Portugal é negro: os participantes deste debate foram extremamente pessimistas e Almeida Santos - o único que disse compreender o optimismo de José Sócrates - previu o colapso do país quando deixar de receber os fundos europeus de apoio, que ajudaram a enriquecer fraudulentamente as pseudo-elites lisboetas que definem os outros - os não-lisboetas - como sucateiros. Ora, sucateiras e mentirosas são precisamente as pseudo-elites sediadas em Lisboa - e presentes em todos os partidos políticos e instituições nacionais - que bloqueiam o futuro de Portugal. Com estas elites da sucata, não temos futuro: libertar o futuro (Ivan Illich) e salvar o passado (W. Benjamin) exigem a mudança radical de elites ou, como diria Pareto, a circulação de elites. Porém, as novas elites políticas devem rejeitar categoricamente a utopia do lazer, que de certo modo se converteu em ideologia no Ocidente, e a utopia do governo mundial: o consenso alargado é inimigo da mudança social qualitativa que, para redefinir um novo modelo de desenvolvimento sustentável e um novo estilo de vida mais produtivo e saudável, exige solidariedade no sofrimento e nos sacrifícios. A utopia que inspira o poder da negação é, neste nosso tempo indigente, a utopia de uma vida não regulamentada, a única utopia social que faz justiça à cidadania responsável e adulta. E esta utopia mínima não é avessa à possibilidade política de implantar uma ditadura pedagógica para libertar o futuro da catástrofe, educando os homens para a liberdade responsável e para a democracia.
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Conversando com Hannah Arendt

«Ao interpretar a tradição do pensamento político e conduzi-lo ao seu termo, é de importância decisiva o facto de Marx contestar não a filosofia, mas a sua alegada impraticabilidade. Contesta a resignação dos filósofos que não fazem mais do que descobrir um lugar para si próprios no mundo, em vez de transformarem o mundo e o tornarem, por assim dizer, filosófico. E isto não é apenas mais, mas também decisivamente diferente do ideal platónico de filósofos que governam como reis, porque implica não a dominação do governo da filosofia sobre os homens, mas que todos os homens se tornem, por assim dizer, filósofos. A consequência que Marx extraiu da filosofia da história de Hegel foi que a acção ou praxis, ao contrário do que pretende a tradição, estava tão longe de ser o oposto do pensamento que era o seu veículo verdadeiro e real, e que a política, longe de estar a uma distância infinita da dignidade da filosofia, era a única actividade inerentemente filosófica». (Hannah Arendt)
A Filosofia e a Política são domínios exclusivamente masculinos e, como estava ciente disso, Hannah Arendt rejeitou ser tratada como uma filósofa. No entanto, se há mulher que mereça esse título, essa mulher só pode ser Hannah Arendt, que procurou pensar a tradição política do ocidente nas suas relações com a filosofia, em vez de professar qualquer tipo de feminismo. O seu desprezo pela vida laboral e doméstica - a esfera privada onde os homens são escravos da necessidade - permitiu-lhe facilmente aceder à dignidade da filosofia e da vida pública: «a polis era para os gregos, como a res publica para os romanos, antes de mais a garantia contra a futilidade da vida individual, o espaço protegido contra essa futilidade e reservado à relativa permanência, senão à imortalidade, dos mortais». A admiração de Arendt - que ultrapassa a de Maquiavel - pelo mundo grego e romano determina a sua definição da política: o político é entendido no sentido da antiga polis, tal como a teorizou Aristóteles. Na experiência da polis, «a ênfase passou da acção para o discurso, e para o discurso como meio de persuasão, não como forma especificamente humana de responder, replicar e enfrentar o que acontece ou o que é feito. O ser político, o viver numa polis, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através de força ou violência. Para os gregos, forçar alguém pela violência, ordenar em vez de persuadir, eram modos pré-políticos de lidar com as pessoas, típicos da vida fora da polis, característicos do lar e da vida em família, na qual o chefe da casa imperava com poderes incontestados e despóticos, ou da vida nos impérios bárbaros da Ásia, cujo despotismo era frequentemente comparado à organização doméstica». Para reclamar a autonomia da política, Arendt identifica a esfera política com a esfera pública: a liberdade e a igualdade situam-se exclusivamente na esfera política e nesse mundo comum «em que entramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos». (:::)
A teoria política de Hannah Arendt decorre da sua concepção da condição humana que é tributária do pensamento grego: «A tarefa e a grandeza potencial dos mortais têm a ver com a sua capacidade de produzir coisas - obras e feitos e palavras - que mereceriam pertencer e, pelo menos até certo ponto, pertencem à eternidade, de modo que, através delas, os mortais possam encontrar o seu lugar no cosmos onde tudo é imortal excepto eles próprios. Devido à sua capacidade de realizar feitos imortais, por poderem deixar atrás de si vestígios indeléveis, os homens, apesar da sua mortalidade individual, atingem o seu próprio tipo de imortalidade e demonstram a sua natureza "divina"». Os homens - as únicas coisas mortais que existem - distinguem-se dos outros seres da criação pela sua procura da imortalidade (1), que só pode ser plenamente realizada pela acção (2), levada a cabo na presença dos seus iguais (3) e no mundo comum que partilham, para que um vasto grupo de espectadores possa transmitir a memória dessa acção, tal como Homero retratou Aquiles como «o autor de grandes feitos e o pronunciador de grandes palavras». Para Arendt, a política é a forma mais elevada da acção, ou seja, a arte que ensina os homens a abandonar o trabalho e o labor e a «produzir o que é grande e radiante»: a procura da imortalidade só pode ser atingida na esfera pública, onde o homem pode movimentar-se livremente entre os seus iguais. A presença de outros homens, dotados da capacidade de julgar as suas acções, é fundamental para assegurar a imortalidade: os feitos imortais dos homens de acção, que preferem a fama imortal às coisas mortais, sobrevivem graças ao testemunho dos seus iguais. Hannah Arendt aplica a diferença entre o homem e o animal à própria espécie humana: «só os melhores, que constantemente provam ser os melhores e que "preferem a fama imortal às coisas mortais", são realmente humanos; os outros, satisfeitos com os prazeres que a natureza lhes oferece, vivem e morrem como animais». Para Arendt, as fontes do valor e do sentido encontram-se na própria acção: o homem define-se agindo e transformando a sua natureza numa realidade tangível, sob a forma de feitos imortais, e, tal como Aquiles, deve morrer jovem, deixando atrás de si uma história e uma identidade que lhe garantam a fama imortal. O homem deve arriscar a sua vida e, acima de tudo, escolher uma vida curta e uma morte prematura, porque, ao não sobreviver à sua acção de grandeza, se afasta das suas possíveis consequências. (:::)
O pensamento político de Hannah Arendt move-se rebeldemente no seio desse grande continente descoberto por Hegel e Marx: o continente da história. Arendt vê em Marx o último filósofo político do Ocidente, que, apesar disso, se mantém ainda na tradição iniciada por Platão: a inversão das categorias da tradição e da sua hierarquia de valores fundamentais, operada por Marx, conduz a tradição ao seu termo. Marx inverte Hegel, tal como Nietzsche inverte o platonismo, mas a ruptura de Marx com a tradição é levada a cabo dentro do quadro da tradição, porque Marx nunca duvidou da relação dialéctica entre o pensamento e a acção política enquanto tal: a filosofia que sempre-já interpretou o mundo pode e deve orientar a praxis da sua transformação. O confronto de Hannah Arendt com Marx varia e oscila muito ao longo da sua densa obra, sem no entanto encobrir a sua enorme admiração por Marx, o leitor atento de Aristóteles. Arendt censura a tradição da filosofia política - de Platão até Marx - de confundir o governo com a autoridade: o poder foi sempre definido como a dominação do homem sobre o homem, donde resulta a divisão da comunidade em governantes - aqueles que mandam - e governados - aqueles que obedecem. Wright Mills, Max Weber e Bertrand de Jouvenel igualam o poder político com a «organização da violência», porque, segundo Arendt, aceitam a teoria marxista do Estado - aperfeiçoada por Lenine - como instrumento de opressão da classe dominante. Lenine mais não fez do que aprofundar a teoria marxista do Estado, posteriormente alargada por Gramsci, Althusser e Poulantzas, por oposição à concepção pequeno-burguesa que reduz o papel do Estado à tarefa de conciliar as classes sociais: «Segundo Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de opressão de uma classe por outra, é a criação de uma "ordem" que legaliza e consolida a opressão, moderando o conflito das classes» (Lenine). Max Weber desenvolve um conceito de Estado muito similar ao de Marx: «O Estado, como todas as associações políticas que o precederam historicamente, é uma relação de domínio de homens sobre homens, suportada por meio da violência legítima (quer dizer, da que é encarada como tal). Necessita, pois, para subsistir, que os dominados acatem a autoridade que aqueles que dominam nesse momento pretendem ter». A teoria do totalitarismo de Hannah Arendt obrigou-a a eliminar o conceito de ideologia, o único conceito capaz de explicar a reprodução da sociedade e da sua forma de dominação, sem recurso à força ou à violência física. Nem Marx, nem o seu discípulo Weber, defendem a ideia de que o Estado mantém a ordem fazendo uso constante da violência física, e Hannah Arendt sabe isso, porque, além de deslocar o problema das relações entre poder e violência para a violência revolucionária - a parteira da História (Engels), tal como a preconizaram Mao Tsé-Tung, Sorel, Pareto, Fanon e Sartre, afirma que, para Marx, «todos os sistemas jurídicos positivos são ideologias, pretextos para o exercício da dominação de uma classe sobre a outra». O domínio das leis é profundamente ideológico, usando a força para restabelecer a ordem sempre que esta seja ameaçada. Com o recurso abusivo a Montesquieu, Hannah Arendt elabora uma concepção reificadora do sistema jurídico: as leis são vistas como factores estabilizadores da ordem que impera presentemente na sociedade e a sua função consiste em conciliar o conflito de classes, retirando os meios e os processos de luta aos oprimidos no combate político pelo derrubamento da opressão. A noção marxista de poder como dominação transfigura-se assim - mediante esta operação de terminologia travestida de Arendt - na aceitação voluntária - o acordo comum - da própria dominação. O poder, tal como Arendt o define, implica que a maior parte dos homens abdique de participar na esfera política: o poder é a «capacidade humana não somente de agir mas de agir de comum acordo. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e existe somente enquanto o grupo se conserva unido». Quando afasta da esfera política a pobreza e a questão social, Arendt revela o seu conservadorismo: travar através do sistema jurídico petrificado a chamada lei da História, a lei do movimento, a lei da mudança social qualitativa, ou seja, imobilizar a história, negando-a aos oprimidos e libertando-a como palco onde os seus Aquiles procuram a fama imortal em feitos e palavras e estabelecem um corpo político potencialmente imortal. Hannah Arendt tem uma concepção estática e eleática da sociedade e o seu pensamento político é mera glorificação ideológica da dominação: a divisão entre dominar e ser dominado, entre mandar e obedecer, entre punir e ser punido, entre humilhar e ser humilhado, entre mentir e ser enganado, entre vigiar e ser vigiado, entre agir e ser agido, entre oprimir e ser oprimido, que, segundo Marx, se funda na divisão entre explorar e ser explorado, não é superada por esta reformulação do conceito de poder. Arendt afasta tudo isso da esfera política, de modo a garantir a continuidade catastrófica da história dos vencedores (W. Benjamin), mediante a exclusão voluntária da vida pública do amplo sector trabalhador da comunidade, convidado a dar alegremente o seu assentimento às actividades heróicas dos construtores de grandes obras imortais. O acordo pacífico almejado por Arendt significa o apoio e o consentimento voluntários da dominação: os oprimidos aceitam continuar a ser oprimidos por aqueles que fazem coreografias políticas no espaço público. A sua concepção da morte como experiência antipolítica reforça a aceitação da desigualdade social: a morte iguala todos, mas os heróis podem fugir dessa igualdade perante a morte, escapando à futilidade do reino da necessidade e procurando imortalizar os seus feitos e as suas palavras. Reduzindo a política à procura da imortalidade, num espaço público que exclui a maioria dos homens condenados ao ciclo infernal das trocas metabólicas com a natureza e à vida da labuta, Arendt condena essa humanidade - a esmagadora maioria dos homens - a uma existência inumana de escravidão.
O elemento conservador que se entranha no pensamento político de Hannah Arendt neutraliza todos os seus momentos de apreensão verdadeira da realidade política: os conceitos de tradição e de autoridade - bem como o acto político da sua fundação - estão desde logo maculados pela sua utopia conservadora, na medida em que o respeito para com a pessoa ou o cargo a que se aplica a autoridade exige a obediência cega e a força vinculativa à ordem estabelecida. (:::)
Hannah Arendt tentou substituir as grandes narrativas da modernidade - desencantamento do mundo, alienação do homem, secularização - por outra grande narrativa dos tempos modernos: a processualização do mundo, resultante da expansão da capacidade humana para agir na natureza e na história - o domínio tecnológico unificado, mas fica assustada e recua. Afinal, quase todos os filósofos políticos recuaram e, levando em conta os seus critérios, a sua narrativa é somente mais uma perspectiva. Nietzsche usou a expressão pensamento perspectivista para designar o pensamento que resulta do colapso da autoridade da tradição: «um pensamento capaz de se mudar deliberadamente de um lugar para outro dentro do contexto da tradição e capaz de o fazer de tal maneira que tudo o que antes era considerado verdadeiro assume agora o aspecto de uma perspectiva, contra a qual deve existir a possibilidade de uma multiplicidade de outras perspectivas igualmente legítimas e igualmente fecundas». A filosofia é mesmo complicada. Enfim, estamos perdidos e condenados: perante esta lógica imanente do processo, não podemos ser optimistas.
(Em construção) J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Repensar a República

«Hoje devemos acrescentar a última forma de tal domínio (do homem sobre o homem), e talvez a mais terrível: a burocracia ou o domínio de um intrincado sistema de departamentos, no qual nenhum homem, nem o único - monarquia - nem o melhor - aristocracia -, nem poucos - oligarquia - nem muitos - democracia -, pode ser considerado responsável, e que poderia ser chamado de domínio de Ninguém. Se, de acordo com o pensamento político tradicional, identificamos a tirania como um governo que não tenciona prestar contas de si mesmo, o domínio de ninguém é o mais tirânico de todos, já que não há sequer alguém a quem se possa perguntar o que está sendo feito. É este estado de coisas, que torna impossível localizar responsabilidades e identificar o inimigo, que está entre as causas mais poderosas da rebelde inquietação mundial de hoje, da sua natureza caótica e da sua perigosa tendência de escapar do controle e de se radicalizar furiosamente.» (Hannah Arendt)
Hannah Arendt identificou o problema que aflige a República Portuguesa: «a monopolização - ou centralização - do poder causa a evaporação ou o esvaziamento de todas as autênticas fontes de poder do país». Lisboa secou Portugal, retirando-lhe todo o poder, e, no momento presente, entrou em conflito consigo mesma: o país está parado e assiste às lutas de poder - a comunicação social medíocre, as pseudo-oposições e certo poder judicial lutam contra o governo, usando e abusando da calúnia e da mentira política, num clima de alheamento público aos sinais da crise financeira e económica - que se travam na capital. Portugal comemora este ano o Centenário da República e o cenário político, económico e social não podia ser pior: o poder político português entrou em colapso e, como observou Arendt, sempre que o poder se desintegra, os cidadãos são convidados abertamente a substituí-lo pela violência. A história da República Portuguesa é uma sucessão de fracassos: o fracasso da Primeira República, o período terrível da ditadura fascista e o fracasso do 25 de Abril. O facto da Segunda República - a Ditadura - ter sido o período mais longo desta história de fracassos sucessivos é sintomático: os portugueses não sabem viver em democracia e, o que é pior, não conseguem governar o seu país e construir uma sociedade aberta. O atraso estrutural e, por conseguinte, histórico de Portugal pode ser atribuído a esta incapacidade - debilitante e regressiva, arcaica e primitiva - nacional ou - quem sabe? - a uma deficiência etnopsiquiátrica difusa, que já foi tematizada por diversos pensadores portugueses, dos quais destaco Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa.
O caso mental português foi tematizado pelos ilustres portuenses da Escola do Porto como uma aversão à razão e ao pensamento, portanto, como horror à Filosofia, e por Fernando Pessoa como o síndroma provinciano que compreende três sintomas flagrantes: «o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades (1); o entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade (2); e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia (3)». Fernando Pessoa define, num rasgo de génio, o provincianismo como a pertença «a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela»: o português segue mimeticamente ou simiescamente a civilização ocidental, com uma subordinação inconsciente e feliz. Estas tematizações do caso mental português convergem na formulação de uma incapacidade cognitiva inata - a incapacidade de reflectir e de criticar -, atribuída a um excesso emocional patológico: «O génio lusíada é mais emotivo que intelectual. Afirma e não discute. Quando uma ideia se comove, despreza a dialéctica; e é sendo e não raciocinando que ela prova a sua verdade. A emoção afoga a inteligência, ultrapassando-a como força criadora. E assim, corresponde à nossa superioridade poética, uma inferioridade filosófica. O português não é nada filósofo; a luz do seu olhar alumia mais do que vê; não abrange, num golpe de vista, os conhecimentos humanos, subordinando-os a uma lógica perfeita e nova que os interprete num todo harmonioso. O português não quer interpretar o mundo nem a vida, contenta-se em vivê-la exteriormente; e tem, por isso, um verdadeiro horror à Filosofia, imaginando encontrá-la em tudo o que não entende. Daí a sua incapacidade construtiva de novas verdades que representam o móbil superior do Progresso» (Teixeira de Pascoaes). O desprezo pela dialéctica implica a imobilização mental, cognitiva e social e o conservadorismo tribal que caracterizam a mente fechada. Fernando Pessoa propõe uma terapêutica muito simples: «o saber que ele existe. O provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando não o somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não somos. O princípio de cura está na consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro. Quando um doido sabe que está doido, já não está doido. Estamos perto de acordar, disse Novalis, quando sonhamos que sonhamos».
Nesta perspectiva etnopsiquiátrica, Portugal é um enclave de homens primitivos, mais animais que humanos e completamente destituídos de vida psicológica superior, na Europa e no mundo ocidental, e a sua história mais não é que a história de uma terrível mentira: supor que é uma nação civilizada quando não o é. Fernando Pessoa elabora o síndroma provinciano, usando a teoria da mentalidade das três camadas - o povo, a burguesia e o escol - e dos três tipos mentais - o campónio, o citadino e o provinciano, organicamente distintas, que constituem a vida mental de Portugal, mostrando a semelhança estrutural entre a mentalidade da criança e a mentalidade provinciana: espírito de imitação ao nível da inteligência, vivacidade pobre ao nível da emoção e impulsividade descoordenada ao nível da vontade. O provincianismo é quase definido como uma parafilia da falsa modernidade, cujos traços fundamentais são partilhados pelos membros das duas camadas da elite nacional: «o amor às grandes cidades, às novas modas, às "últimas novidades"». A elite nacional é estruturalmente provinciana: os homens inteligentes e os homens de talento confluem e irmanam-se na «ausência de ideias gerais e, portanto, do espírito crítico e filosófico que provém de as ter. O nosso escol político não tem ideias excepto sobre política, e as que tem sobre política são servilmente plagiadas do estrangeiro - aceites, não porque são boas, mas porque são francesas ou italianas, ou russas, ou o quer que seja. O nosso escol literário é ainda pior: nem sobre literatura tem ideias». A teoria pessoana elogia a aristocracia do génio, ao mesmo tempo que a condena: as elites portuguesas são censuradas pelo seu provincianismo, o que significa que não são verdadeiramente elites capazes de conduzir o país à modernidade. Neste paradoxo - usar uma teoria elitista para condenar as pseudo-elites nacionais -, reside o momento de verdade da teoria de Pessoa: a tragédia mental de Portugal presente está no facto do nosso escol ser estruturalmente provinciano, pueril e medíocre, donde se infere facilmente que o povo português é vítima da má governação desse erro estrutural que são as pseudo-elites nacionais que o condenam à miséria, à pobreza, ao sofrimento e ao alheamento para satisfazer o seu interesse parafílico: apropriar-se sem mérito e de modo ilícito das últimas novidades e exibi-las como couraças que escondem individualidades ausentes ou deficitárias. As elites nacionais fingem ser elites e reagem às artificialidades da civilização moderna como se fossem crianças a brincar com brinquedos: os seus membros imitam e plagiam figuras estrangeiras. Os membros das elites nacionais do poder desejam voluntariamente ser vistos pelo povo como se fossem estrangeiros iluminados e, no momento presente, já abdicaram da língua portuguesa a favor do uso do inglês corrompido para alcançar esse efeito saloio, mas a sua acção perversa e perniciosa, além de gerar corrupção em circuito-fechado e criminalidade alargada de colarinho-branco, exila os portugueses na sua própria terra natal. As elites do poder foram treinadas para açambarcar, monopolizar e manipular o poder público, vedando-o ao povo e silenciando a sua voz que só se ouve no dia das eleições: a refeudalização da esfera pública ou do espaço público é acompanhada pelo abuso do poder político, usado pelas classes dirigentes em benefício próprio. As elites nacionais, especializadas na arte de bem roubar, confiscam a palavra ao povo, estigmatizam-no, chamando-lhe zé-povinho, e proibem-lhe o acesso ao espaço público, forçando-o ao exílio interior e exterior: os portugueses são estranhos na sua própria pátria, isto é, na terra patrum onde nasceram.
A Terceira República, saída do 25 de Abril, está a gerar o mesmo erro que levou à substituição da Primeira República pela Ditadura: a corrupção generalizada que resulta do fechamento do fosso entre os governantes e os governados e do apagamento da linha divisória entre público e privado, pondo em perigo a qualidade do espaço público e a essência da democracia. O governo republicano envolve um risco permanente: a expansão do poder público e a invasão do domínio privado por parte do domínio público. A corrupção surge mais do domínio público que dos interesses privados e os partidos políticos, como máquinas de conquista do poder, em vez de operar a mediação entre a nação e o parlamento, entre o povo e a classe dirigente, funcionam como instrumentos utilizados para profissionalizar a política e possibilitar a carreira política de indivíduos seleccionados e escolhidos segundo critérios claramente apolíticos. É certo que o 25 de Abril permitiu, pelo menos inicialmente, substituir as elites do nascimento e da riqueza pelas elites nascidas do povo, mas esta substituição foi fatal: os pobres desejam ser ricos a todo o custo e, quando instalados no poder, falsificam as suas biografias e tendem a ser excessivamente autoritários, perseguindo e aniquilando a cultura do mérito em todos os sectores institucionais da sociedade. A abertura de carreiras políticas aos membros das classes mais baixas produz o efeito contrário: o nivelamento constante e abrangente da sociedade destrói toda a vida cultural do país e, paradoxalmente, bloqueia a entrada do povo na vida política e a sua participação nos negócios públicos. A lógica da política partidária portuguesa está a subverter a essência da democracia e os próprios ideais republicanos: o governo do povo pelo povo transformou-se em governo do povo por pseudo-elites saídas do povo e a concentração e centralização do poder é usada contra o Estado de Direito, contra os Direitos fundamentais dos cidadãos e contra a autonomia das regiões. O Estado foi capturado por uma teia de corruptos que o utiliza como meio privado de acumulação de capital: a geração grisalha age como se ela fosse o próprio Estado e o poder económico e, para garantir a sua permanência no poder, destruiu completamente a educação e a cultura, negando o futuro a Portugal. O poder político português não preparou as novas gerações para assumir responsabilidades na governação do país: a geração grisalha pensa unicamente em si mesma e na manutenção das suas regalias sociais, e fez tudo para garantir o seu bem-estar em detrimento do futuro de Portugal. Embora possam ser mais diplomadas, as gerações mais novas não têm competência para participar responsavelmente no governo, até porque foram treinadas a ver a política como um meio de enriquecimento privado. Portugal está mergulhado num caos e, se não formos corajosos para enfrentar os nossos erros e vícios estruturais, repensando a República como «Soberania Popular, sinal de liberdade e esperança de justiça» (De Gaulle), então não teremos futuro.
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Elogio da Filosofia de Arthur Schopenhauer

«Entre os desejos e as suas realizações decorre toda a vida humana. O desejo, pela sua natureza, é sofrimento; a satisfação engendra bem depressa a saciedade. O alvo era ilusório, a posse rouba-lhe o seu atractivo; o desejo renasce sob uma forma nova, e com ele a necessidade; senão é o tédio, o vazio, a aborrecimento, inimigos ainda mais violentos do que a necessidade. /Claro está que o mundo é o inferno, e os homens dividem-se em almas atormentadas e em diabos atormentadores. /Assim, a história do pecado original reconcilia-me com o Antigo Testamento; a meus olhos é mesmo a única verdade metafísica do livro, embora se apresente lá sob o véu da alegoria. Porque a nossa existência, a parecer-se com algo é com a consequência de uma falta e de um desejo culpado... /O inferno do mundo ultrapassa o inferno de Dante, por cada um de nós ser o diabo do seu vizinho; também há um arquidiabo superior aos demais: o conquistador, que dispõe centenas de milhares de homens em frente uns dos outros e grita: "Sofrer, morrer é o vosso destino; fuzilem-se, portanto, bombardeiem-se mutuamente!"; e eles assim fazem.» (Arthur Schopenhauer)
Arthur Schopenhauer (1788-1861) retoma a distinção kantiana entre fenómeno e coisa-em-si, para construir a sua própria filosofia: a coisa-em-si é a realidade que se esconde por detrás do sonho, da aparência e da ilusão, e essa realidade subjacente ao mundo dos fenómenos é a vontade, não a vontade finita, individual e ciente, mas a vontade infinita, una e indivisível, independente de toda a individuação. Schopenhauer subverte a filosofia de Kant, redefinindo o fenómeno com o recurso ao conceito indiano de Véu de Maia, o sonho que encobre e oculta a realidade, a coisa-em-si, que pode ser conhecida. A vontade infinita devora-se a si mesma e, por estar perpetuamente em conflito consigo mesma, é essencialmente infelicidade e dor. A única via capaz de garantir a libertação da vontade de viver, vontade esta que habita, em graus diferentes, o homem e todos os outros seres da natureza, é a via do ascetismo: a arte pode subtrair o homem da cadeia infinita das necessidades e dos desejos, mas esta libertação obtida pela via da contemplação estética é temporária e parcial. A arte é, por si só, incapaz de redimir definitivamente o homem da vida: redime-o por breves instantes e fornece-lhe um consolo para a própria vida, mas não lhe indica o caminho para sair da vida, isto é, o caminho para a libertação total da vontade de viver.
A tragédia é vista por Schopenhauer como a arte mais elevada, porque revela a vontade em conflito consigo mesma: «A dor sem nome, a angústia da humanidade, o triunfo da perfídia, o domínio discernível do caso e a fatal derrocada dos justos e dos inocentes, surgem, na tragédia, à luz de uma verdade autêntica e assim se obtém um indício significativo da natureza do mundo e do ser». Schopenhauer sofreu a influência do budismo, sendo levado a articular teoricamente as quatro verdades santas do Sermão de Benarés com o dualismo filosófico europeu de Platão e de Kant, o abismo entre a essência da coisa - o que ela é em si - e o mundo fenoménico em que se movem os homens: a existência é dor, do nascimento até à morte (1), a raiz da dor é o desejo (2), a superação da dor exige a anulação do desejo até atingir o nirvana (3), e o caminho da libertação passa pelo desprendimento absoluto e pela extinção do desejo natural (4). Para Schopenhauer, a essência da coisa é a vontade, cuja representação é o fenómeno ou aparência: «Fenómeno significa representação e mais nada; e toda a representação, todo o objecto é fenómeno. A coisa em si é unicamente vontade; nesta qualidade, esta não é de maneira nenhuma representação, difere dela toto genere; a representação, o objecto, é o fenómeno, a visibilidade, a objectividade da vontade. A vontade é a substância íntima, o núcleo tanto de toda a coisa particular, como do conjunto; é ela que se manifesta na força natural cega; ela encontra-se na conduta racional do homem; se as duas diferem tão profundamente, é em grau e não em essência». A vontade subtrai-se às formas próprias do fenómeno - espaço, tempo e causalidade, que constituem o principium individuationis: as formas do fenómeno individualizam e multiplicam os seres da natureza, enquanto a vontade é única em todos esses seres. Porém, ao subtrair-se à causalidade e ao princípio da razão suficiente, a vontade age de modo absolutamente livre e cego. Apesar de assumirem aspectos e nomes diferentes nas suas manifestações fenoménicas, as forças da natureza, tais como a gravidade, o electromagnetismo e a motivação, são uma única força - a vontade de viver. A objectivação da vontade tende, na escala conflituosa dos diversos graus ou ideias que assume na natureza, para um nível mais elevado de objectivação no mundo animal, em especial no mundo humano, onde se torna razão que age em virtude de motivos. O homem, como representação, é fenómeno entre fenómenos e, como tal, está sujeito à lei geral da causalidade na sua forma da motivação. Mas, uma vez que a realidade não se reduz totalmente à representação, o homem tem a possibilidade de se reconhecer livre e esta possibilidade é-lhe conferida pela essência íntima do mundo e de si próprio: todas as acções e movimentos do seu corpo são efeitos da vontade, isto é, objectivações da vontade livre e cega. Com o homem, a vontade ganha clareza, tornando-se consciente, mas perde a segurança do instinto do animal, porque a razão tende a errar e, como guia da vida, falha a maior parte das vezes no seu objectivo: a razão humana está ao serviço da vontade, sendo a sua escrava.
A vida é, na sua essência mais íntima, dor, isto é, o sofrimento é o fundo de toda a vida: «Um indivíduo, um rosto humano, uma vida humana, isso é apenas um sonho muito curto de espírito infinito que anima a natureza, dessa obstinada vontade de viver, mais uma imagem fugidia, que a brincar ela esboça na tela sem fim, o espaço e o tempo, para aí a deixar durante um momento, - momento que, em comparação com essas duas imensidades, é um zero, - depois apagá-la e dar assim lugar a outras. Contudo, e é isto que na vida dá para reflectir, cada um destes esboços dum momento, cada um desses ímpetos paga-se: a vontade de viver em todo o seu furor, sofrimentos sem número, sem medida, depois, no fim, um desenlace durante muito tempo receado, finalmente inevitável, essa coisa amarga, a morte, eis o que eles custam. E é por isso que a visão dum cadáver nos torna bruscamente tão sérios». A ética de Schopenhauer visa indicar o caminho da libertação humana, respondendo a esta questão fundamental: Como pode o homem escravizado pela vontade cega negar a vontade de viver? Schopenhauer recorre à ética de Kant, nomeadamente ao seu conceito de liberdade da essência inteligível do homem, para mostrar que a coisa em si está fora das formas do princípio da razão suficiente: a vontade é livre e esta liberdade da vontade é omnipotência. O desejo de viver ocupa toda a vida dos seres vivos e mantém-nos em movimento e em combate perpétuo pela própria existência, com a certeza de serem finalmente vencidos: «A própria vida é um mar cheio de escolhos e redemoinhos: o homem, à força de prudência e de cuidado, evita-os, e sabe, contudo, que embora consiga, pela sua energia e arte, escapar-se entre eles, desse modo nada mais faz do que avançar pouco a pouco em direcção ao grande, ao total, inevitável e irremediável naufrágio; que tem o cabo no lugar da sua perda, na morte: eis o termo último dessa penosa viagem, mais temível a seus olhos do que todos os escolhos até aí evitados». A vida humana decorre entre o desejo e a sua realização, num movimento de queda incessantemente travada: todo o ser do homem reside numa sede insaciável, num querer incessante, num esforçar-se contínuo, sem alvo, sem repouso. Na origem do querer está uma necessidade, uma falta, uma dor, da qual o homem é uma presa. A vida é, neste sentido, dor, e a vontade de viver é o princípio da dor. Querer significa desejo e o desejo é privação daquilo que se deseja, deficiência, indigência e, portanto, dor. A vida consiste num esforço contínuo para afastar e cessar a dor, obtendo o prazer, mas, quando satisfaz o desejo e a necessidade, surge um novo desejo e uma nova necessidade: a satisfação dos desejos, das necessidades e das paixões jamais tem um carácter definitivo, porque o desejo renasce sob uma forma nova e com ele a necessidade. De todos os seres da natureza o homem é o mais assediado pelas necessidades: o homem é escravo das necessidades, e a sua vida oscila, como um pêndulo, da direita para a esquerda, do sofrimento para o aborrecimento, o tédio e o vazio. O tédio é mais insuportável que a dor e, dos sete dias da semana, seis pertencem à fadiga e à necessidade e o sétimo ao tédio. Schopenhauer é levado a negar o princípio de Leibniz, segundo o qual este é o melhor dos mundos possíveis, retomado mais recentemente por Karl Popper para legitimar a sociedade neoliberal: como não pode realmente existir um mundo pior, este nosso mundo é o pior dos mundos possíveis. Para Schopenhauer, o optimismo é o auto-elogio injustificado do verdadeiro criador do mundo: a vontade de viver que se espelha na sua obra. A miséria do nosso mundo real protesta e grita contra todas as hipóteses de uma obra perfeita, criada por um ser sumamente sábio, bom e todo-poderoso: os homens vieram ao mundo já viciados, como filhos de pais gastos pela desgraça, e a sua existência miserável e condenada à morte é uma espécie de expiação pela pesada culpa do mundo. O Inferno de Dante mais não é do que o pálido espelho deste mundo de tormentos e de sofrimentos, perante o qual o optimismo é uma opinião realmente ímpia e odiosa, isto é, a glorificação ideológica da dominação de uns - os diabos atormentadores e o Estado corrupto (arquidiabo) - sobre os outros - as almas atormentadas e desgraçadas: «Querer é essencialmente sofrer e, como o viver é querer, toda a vida é, na essência, dor. Quanto mais elevado for o ser, mais ele sofre. A vida do homem não é mais do que uma luta pela existência, com a certeza de ele ser vencido. A vida é uma incessante caçada onde os seres, ora caçadores, ora caçados, disputam entre si os restos de uma horrível carniça; uma história natural da dor que se resume desta forma: querer sem motivo, sofrer sempre, lutar sempre, depois morrer, e assim sucessivamente pelos séculos dos séculos, até o nosso planeta se desfazer em bocados».
A actualidade de Schopenhauer, para usar o título de um ensaio de Max Horkheimer, reside precisamente no seu pessimismo esclarecido: a recusa de todas as tentativas metafísicas de transformar os objectos temporais dos homens em objectivos eternos e absolutos, mediante a construção artificial da ideia de progresso, como se a escala dos seres da natureza fosse uma escala de perfeição. A história do homem é, do princípio ao fim, a repetição do mesmo acontecimento - o pecado original, o egoísmo, as guerras sem tréguas que devastam o mundo como destino do género humano, sob diversos nomes e diversas roupagens. Como história da guerra, do sofrimento, da crueldade e do malum metaphysicum, a história humana apresenta-nos o homem na situação de perda, de abandono e de finitude radical: a imagem da sua impotência para lançar longe de si a vontade cega. A vida do homem e os seus tormentos são manifestações dessa vontade todo-poderosa que o aprisiona no ciclo infindável e infernal das necessidades: a fabricação de deuses e de ídolos é realizada em vão, porque o homem só pode contar consigo mesmo: «O Antigo Testamento tinha feito o mundo e o homem a obra dum Deus; mas o Novo Testamento reconheceu que a salvação e a libertação do mundo, hoje em dia mergulhado na miséria, deviam vir do próprio mundo: assim foi preciso fazer desse Deus um homem. Portanto, a vontade do homem é, e permanece, para ele, aquilo de que tudo depende». A filosofia de Schopenhauer resiste à sedução dos ídolos e à sua pretensão de ocupar o vazio deixado pelo Deus destronado: os homens colocaram todas as dores e todos os sofrimentos no inferno e encheram o céu com os produtos finitos - absolutizados - do seu tédio mortal. Schopenhauer recusa esses falsos absolutos que, sendo finitos, ocupam o céu, vedando à filosofia o acesso ao caminho da teologia, no sentido de continuar a tentar justificar racionalmente o sofrimento do mundo. Nesta negação da idolatria palpita a ânsia de justiça temporal: o pessimismo metafísico de Schopenhauer não desemboca necessariamente na resignação perante o malum metaphysicum e a história já consumada do egoísmo. Ora, esta história consumada do sofrimento dá ao homem a consciência de si e do seu próprio destino, mas, para que isto suceda, o homem deve ultrapassar o animal que há em si, o animal que vive limitado e submerso no presente, sem levar em conta o seu passado: a razão permite ao indivíduo libertar-se da sua animalidade e a história permite aos povos referir o presente ao passado e antecipar o futuro. Para Schopenhauer, as lacunas da história são as lacunas da autoconsciência do homem: o homem insensível à história e aos gritos de dor das vítimas inocentes e da natureza comporta-se como um animal estúpido - aquilo a que chamo o animal metabolicamente reduzido, completamente mergulhado no presente e dominado pelo ciclo infernal da necessidade. A razão na esfera do indivíduo e a história na esfera da totalidade dos indivíduos possibilitam a libertação - a negação - da vontade de viver, na certeza de que o bem-estar e a felicidade são totalmente negativos, «só a dor é positiva»: eis a máxima do pessimismo de Schopenhauer que, perante a positividade do sofrimento que excede infinitamente a alegria, olha para os que ainda são mais desgraçados do que nós, como o remédio para a libertação total.
A ética de Schopenhauer indica o caminho para a libertação - a negação - da vontade de viver. A vontade cega de viver provoca em si própria luta perpétua, combate sangrento e dilaceração, que, no plano da história dos homens, se traduzem na guerra permanente entre indivíduos, a bellum omnium contra omnes de Hobbes, isto é, na injustiça. O egoísmo - essencial a todos os seres na natureza - está na origem da contradição íntima da vontade e revela-se na história sob um aspecto medonho: a guerra entre todos os indivíduos, o combate de feras, que traduz essa contradição essencial que rasga a própria vontade de viver em duas partes inimigas e que toma uma forma visível graças ao princípio de individuação. Para Schopenhauer, a injustiça - o rasgão, a invasão no domínio onde a vontade é afirmada por outrem, é precisamente a condição da vontade de viver dividida e discordante consigo mesma: «A vítima da injustiça sente essa invasão na esfera onde ela afirma o seu próprio corpo, a negação dessa esfera por um estranho; experimenta imediatamente uma mágoa moral, muito distinta, muito diferente da dor física causada pelo próprio facto, ou do mal-estar produzido pela perda que lhe foi infligida. Quanto ao autor da injustiça, nasce nele a ideia de que no fundo ele mesmo e essa vontade manifestada no corpo da vítima são apenas um; de que ao ultrapassar os limites do seu corpo e das suas forças, foi a mesma vontade numa outra das suas manifestações, que ele negou; finalmente que, se se considera em si como pura vontade, é ele mesmo que na violência ele combate, ele mesmo que ele despedaça» no remorso. A injustiça expressa-se de diversas formas, tais como o canibalismo, o assassinato, a mutilação, a pancada e a usurpação da propriedade, mas conserva sempre o carácter próprio da acção de um indivíduo que estende a afirmação da vontade enquanto manifestada pelo seu próprio corpo, até negar a vontade manifestada pela pessoa do outro, submetendo-a ao seu jugo, reduzindo-a à escravatura e usurpando os seus bens. A negação da injustiça é o direito, cuja acção não é uma transgressão e uma negação da vontade do outro, com a finalidade de a fortificar em nós. O Direito e o Estado só podem ser compreendidos na perspectiva da vítima da injustiça. Para combater a injustiça, é preciso adquirir o conhecimento da unidade fundamental da vontade em todos os seres que sofrem e reconhecê-los como sujeitos. A malvadez é injustiça e o indivíduo malvado é aquele que tem uma inclinação para cometer a injustiça: o malvado não se contenta em afirmar a sua vontade de viver, tal como se manifesta no seu corpo, mas afirma a sua vontade através da negação da vontade dos outros, sujeitando-a à sua própria vontade violenta e suprimindo-lhes a existência. O malvado rouba e nega a existência dos outros e, deste modo, converte a sua malvadez em pura crueldade: a dor do outro passa a constituir o seu único objectivo. Uma vez que se julga separado dos outros e da dor, o malvado não reconhece que «o carrasco e o inocente são apenas um». No remorso de consciência e na angústia duradoura que acompanham a sua acção injusta e cruel, o malvado evita tomar consciência clara e lúcida da unidade da vontade em todos os homens que sofrem. O reconhecimento desta unidade ou desta solidariedade universal dos homens e das vítimas dos falsos absolutos no sofrimento, para além da ilusória multiplicidade do princípio de individuação, conduz à justiça - a negação da malvadez - e, num grau mais elevado, à bondade. A bondade mais não é do que o amor desinteressado pelos outros, isto é, a caridade, a piedade, a compaixão. Para Schopenhauer, o homem de grande coração rasga completamente o Véu de Maia e «distingue menos do que ninguém entre ele mesmo e o outro»: o malvado faz a sua alegria com o sofrimento do outro e o homem injusto faz do outro um instrumento para provocar o seu próprio bem-estar, enquanto o homem justo faz tudo para não infligir mais sofrimento aos outros, procurando aliviá-los das privações, porque o sofrimento que vê um outro sofrer o toca «quase de tão perto como o seu próprio sofrimento». A compaixão nasce do conhecimento do sofrimento do outro, tornado compreensível através do nosso próprio sofrimento. Schopenhauer desenvolve uma teoria do choro que clarifica a sua noção de identidade entre caridade e piedade: «Chorar é, portanto, ter piedade de si mesmo». Quando chora, o homem coloca-se no lugar do outro que sofre, vendo na sua sorte o destino comum da humanidade e, portanto, o seu próprio destino. Chorando a sorte dos outros, o homem chora o seu próprio destino e tem piedade de si próprio: a piedade é excitada pela «sorte de toda a humanidade, da humanidade votada antecipadamente a um fim que apagará toda uma vida por vezes tão plena de actos, e que a reduzirá ao nada. Mas, neste destino da humanidade, o que vemos, sobretudo, é o nosso próprio destino, e vemo-lo tanto melhor quanto mais de perto a morte nos toca».
A partir do momento em que vê nos sofrimentos dos outros o seu próprio sofrimento, reconhecendo neles o seu mais verdadeiro e íntimo eu, o homem está preparado para a libertação total: a ascese através da qual nega a vontade de viver, deixando de ser um mero elo da cadeia causal que o liga ao sofrimento do mundo. Com o recurso ao testemunho do budismo, do hinduísmo e dos místicos cristãos, Schopenhauer define a ascese como o horror do homem pela vontade de viver e pelas dores do mundo. O homem abdica da sua vontade de viver, isto é, desliga-se voluntariamente da vida e, dado os prazeres serem uma afirmação da vida, sente horror por eles: «O homem chega - através da ascese - ao estado de abnegação voluntária, de resignação, de quietude verdadeira e de paragem absoluta do querer». O asceta é o homem que vê para além do princípio de individuação e que, conhecendo a essência das coisas em si, abarca o conjunto. Vendo-se a si em todos os lugares, retira-se do círculo infernal da necessidade: «A sua vontade dobra-se: ela já não afirma a sua essência, representada no espelho do fenómeno; ela nega-a». Mas, para alcançar este estado de graça, como lhe chamam os cristãos, o homem deve libertar-se, desde logo, do impulso sexual e reprodutivo: a castidade absoluta constitui a primeira e a mais básica manifestação da libertação - negação - ascética da vontade de viver. O impulso reprodutivo domina todas as formas do amor sexual e lança os homens uns contra os outros no palco conflituoso da afirmação da vida, de modo a servirem o génio da espécie que desencadeia e determina a escolha de parceiro, o namoro e a paixão: o amor sexual escraviza o homem, ligando-o afirmativamente à vida e fazendo dele um mero instrumento ao serviço da sobrevivência da espécie. A quietude, a serenidade, a pobreza voluntária e intencional, a renúncia aos prazeres, o despojamento das riquezas, o isolamento, a penitência voluntária, a contemplação silenciosa, o desprendimento, o desapego da vida, o sacrifício e outras manifestações de ascetismo contribuem para a negação da vontade de viver, ajudando o homem a mortificar a sua vontade e a subtrair-se à determinação dos motivos que actuam sobre ele como fenómeno. O conhecimento total da essência da vontade funciona como um sedativo da volição e do querer sempre mais que aprisiona o homem na cadeia infindável das necessidades: eis aqui na supressão da vontade o único e verdadeiro acto de liberdade que é possível ao homem. Ao libertar-se radicalmente da realidade da dor, o homem redime toda a natureza. O pessimismo de Schopenhauer cede finalmente à afirmação e à busca da redenção no nada - redenção sem redentor (Jürgen Werbick), mas esta afirmação do nada pode ser dialecticamente convertida na resistência à afirmação, mediante a interpretação da negação da vontade de viver como negação determinada do capitalismo e da sua vontade sofrega de lucro imediato, alimentada pela expansão ilimitada do leque das necessidades humanas que instrumentaliza e explora descaradamente: a transformação transcendental vista como autocontenção do querer sempre mais e libertação da consciência crítica do sistema económico que explora as necessidades naturais, sociais e individuais do homem, acrescentando-lhe novas necessidades supérfluas, para perpetuar a sua dominação e dinamizar o crescimento económico descontrolado e voraz. (Recomendo a leitura deste post sobre o pensamento tardio de Horkheimer, que clarifica alguns aspectos abordados aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Prós e Contras: O Desafio das Contas Públicas

O debate Prós e Contras de hoje (1 de Fevereiro) teve um novo formato: houve dois painéis de convidados, primeiro o painel de economistas (Henrique Medina Carreira, José Silva Lopes, António Nogueira Leite e João Cantiga Esteves) e depois o painel de empresários (Henrique Neto, Bruno Bobone, Francisco Maria Balsemão e Alberto da Ponte). Escolhi esta terrível imagem de uma criança negra a ser devorada pelas moscas, porque retrata a pobreza real que se instala a passo acelerado em Portugal, por causa de termos sido e estarmos a ser governados nos últimos 30 anos por políticos incompetentes, oportunistas, corruptos e malvados, que fazem política mentindo (Henrique Neto). Belmiro de Azevedo tinha dito que o Presidente da República - Cavaco Silva - era um "ditador" e Henrique Neto confirmou que o Primeiro-Ministro - José Sócrates - se comporta como um vendedor de automóveis, tentando vender um carro que não anda e negando a existência dos problemas reais que bloqueiam o futuro de Portugal. Os participantes venceram finalmente aquele polícia interno dos portugueses que é o medo de perder o seu emprego: após terem chumbado o Orçamento do Estado pela sua falta de coragem para tomar as medidas correctas para reduzir a despesa e travar o endividamento público, caracterizaram a situação nacional como uma tragédia, responsabilizando os políticos pelo caos em que vivemos e acusando-os de enganarem e mentirem aos portugueses. Segundo Henrique Neto, José Sócrates faz propaganda e reúne os empresários para lhes dar conselhos. Medina Carreira anseia pela aterragem na Portela do avião que traga os credores para pôr em ordem o país: o célebre partido do Estado tem um peso excessivo que aprisiona a democracia: os governantes nacionais são incapazes de governar Portugal, não só porque são incompetentes e corruptos, mas também porque as suas tristes vidinhas dependem de 6,5 milhões de portugueses que trabalham para o Estado. Em suma, as agências de rating têm razão quando torcem o nariz: a classe política não vai dar a volta ao país, porque este Orçamento não é suficientemente ousado para conseguir estabilizar as contas públicas. O objectivo dos 3% para 2013 não vai ser atingido (Silva Lopes). As agências de rating e os mercados financeiros desconfiam da capacidade de Portugal para reduzir o défice de 9,3% para 3% até 2013: a redução de 1% prevista para este ano (8,3%) é insuficiente, porque, em média, seria necessário cortar 3% (?) - ou melhor, 1,7% - ao ano (Silva Lopes).
O debate esboçou uma visão negra de Portugal: situação dramática e desorganização da coisa pública (Cantiga Esteves), situação trágica (Henrique Neto), ausência de estratégia e de objectivos (Bruno Bobone), enfim falta de visão, de missão e de objectivos estratégicos (Alberto da Ponte). Silva Lopes reconheceu que, se tudo continuar sem alteração substancial, Portugal caminha para a bancarrota, como já sucede na Grécia. Bruno Bobone caracterizou a situação portuguesa a partir de duas condições: Portugal está a dar prejuízo (1) e está excessivamente endividado (2), o que, em termos empresariais, significa - pré-falência. A superação desta situação crítica de pobreza, miséria e desemprego exige uma terapia de choque. Todos aplaudiram o cancelamento do plano rodoviário, o congelamento dos salários da função pública e a posição de intransigência do governo em relação às finanças regionais - a questão do despesismo da Madeira. Além disso, mostraram-se avessos aos grandes investimentos públicos deste governo - a construção de um novo aeroporto e do TGV, embora Silva Lopes tenha dito que esse investimento em parceria público-privada não afectava directamente o orçamento. Nogueira Leite referiu a desorganização do governo sobre as grandes obras públicas, lembrando que a miséria e o desemprego grassam na região Norte. Desenvolvimento desigual do país constitui efectivamente uma das causas da crise estrutural de Portugal, cuja ultrapassagem exige, como sublinhou Cantiga Esteves, a revisão do nosso modelo económico. A construção das grandes obras públicas na região de Lisboa, a sede da corrupção nacional, não vai resolver a crise estrutural: é ridículo supor que essas obras venham a atrair mais turistas ou mais mercadorias. Os portugueses não terão dinheiro para viajar para o estrangeiro e os turistas estrangeiros não mostrarão interesse em visitar um país arruinado, pobre e inseguro. Portugal não é um destino turístico desejável, porque é um país feio, porco e entregue a uma fauna malvada.
A terapia de choque proposta implica um pacto mais firme entre os partidos do poder (Alberto da Ponte, Cantiga Esteves), porque iremos suportar grandes dificuldades económicas e sociais (Silva Lopes). Basicamente, o choque incide em duas áreas: a despesa e a receita. Portugal deve ter coragem para fazer aquilo que o FMI fará no nosso lugar (Nogueira Leite): realizar o nosso próprio plano de salvação nacional e não sofrer um terceiro plano imposto de fora ou do exterior. Em primeiro lugar, o Estado deve cortar ou reduzir drasticamente a despesa (Silva Lopes, Nogueira Leite e Bruno Bobone), tendo coragem para pôr em causa os direitos adquiridos (Nogueira Leite): a função pública deve sofrer vastos despedimentos (Bruno Bobone) e os ordenados e reformas chorudos devem ser reduzidos substancialmente, de modo a evitar que - por exemplo - os embaixadores se reformem com 11 mil euros por mês (Nogueira Leite). Silva Lopes condenou os protestos e as greves da função pública. Com efeito, nesta situação de desemprego e de pobreza, os funcionários públicos são os únicos que têm emprego garantido: protestam com a barriga cheia e beneficiaram conjunturalmente com a crise financeira e económica. Os direitos adquiridos criam efectivamente uma situação de injustiça, que revela o fracasso total dos supostos ideais do 25 de Abril: um bando de incompetentes capturou o Estado e a democracia, usando-os em benefício próprio. Em Portugal, a sociedade aberta é uma mentira. Desde cedo na minha vida, verifiquei que Portugal não é uma terra de oportunidades: o sistema de corrupção nacional e o cunhismo são refractários ao mérito e a nossa história pode ser reduzida à perseguição do mérito e da competência. O problema não reside apenas no facto de 7 milhões de portugueses e das empresas públicas e privadas estarem dependentes do Estado, mas primordialmente no facto do Estado ser refém de um bando de malvados imbecis que negam o futuro a Portugal. O corte da despesa pública deve abrir as portas para a reforma radical do Estado: a maior parte dos funcionários públicos não merece as regalias que desfruta. A redução do monstro público (Bruno Bobone) é uma oportunidade para introduzir insegurança no sistema e acordar os portugueses do seu sono metabolicamente reduzido (vida fácil): o Estado não deve ser uma misericórdia que abriga bandidos improdutivos, egoístas e preguiçosos. Em segundo lugar, é preciso tributar as mais-valias (Silva Lopes) e aumentar a matéria do tributável (Bruno Bobone). Conforme observou Silva Lopes, os funcionários públicos, em vez de reclamar mais regalias sociais, deviam exigir o contributo dos mais ricos para a resolução dos nossos problemas. A solidariedade nacional deve unir todos os portugueses numa mesma frente de combate contra a miséria que se instalou entre nós: os empresários precisam libertar-se da tutela do Estado, jogando pelo seguro na sua dependência, e arriscar mais, investindo nos sectores primário e secundário (Medina Carreira). A política da mentira deve ser substituída pela política da verdade (Henrique Neto), a única capaz de tornar os portugueses conscientes das nossas dificuldades reais (Silva Lopes). Cortar nas despesas correntes primárias constitui uma prioridade nacional, porque nenhum dos convidados acredita no cumprimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento que o Ministro das Finanças - Teixeira dos Santos - irá apresentar em Bruxelas. A única voz dissidente foi a de Francisco Maria Balsemão, que aguarda pela execução rápida e veloz do programa de privatização das empresas lucrativas.
Usei a expressão terapia de choque por duas razões: as medidas propostas para atingir a estabilidade orçamental devem ser implementadas rapidamente, de modo a evitar o prolongamento cruel da agonia, ano após ano (1), e acompanhadas por um programa de revisão radical do modelo económico existente (2). Os políticos portugueses habituaram-se - desde o 25 de Abril - a exigir sacrifícios: os anos passaram e os portugueses não sentem os efeitos positivos dos sacrifícios exigidos. Portugal afunda-se ano após ano, o futuro escapa-nos das mãos e o mercado internacional começa a reagir mal ao aumento descomunal da nossa dívida. Para implementar as medidas de choque que visam garantir a estabilidade orçamental, o Estado precisa dizer a verdade aos portugueses e mobilizá-los para esta luta nacional contra a pobreza e a miséria, garantindo uma redistribuição justa dos sacrifícios e da riqueza: os que ganham mais e os que auferem reformas avultadas devem sofrer os maiores sacrifícios. Esta justiça social deve estar garantida para libertar Portugal para a tarefa de criar as condições básicas para o funcionamento saudável de uma economia de mercado e para a realização ainda não cumprida de uma sociedade aberta: crescimento económico é a nossa palavra-chave para o futuro. Mas o crescimento económico - inovação e internacionalização, exportação e investimento lucrativo no estrangeiro, novos produtos e novos mercados - depende do sucesso das reformas da justiça, da educação e da administração pública. Com o sistema que temos não vamos lá: a mentira política, o cunhismo, a falsa qualificação, a educação para a vida fácil, a inércia judicial, o oportunismo empresarial e financeiro, enfim a corrupção e os seus agentes, devem ser simplesmente abolidos, juntamente com os políticos que promoveram este enorme buraco negro que engole Portugal. Medina Carreira pediu à RTP1 uma hora para explicar aos portugueses a situação dramática que vivemos: a RTP1 deve satisfazer-lhe este desejo, até porque precisamos saber se ele tem efectivamente uma visão coerente do mal-existente ou se é uma mera metralhadora que solta rajadas de tiros em todas as direcções, sem acertar no alvo certo.
J Francisco Saraiva de Sousa