domingo, 31 de janeiro de 2010

A Burca como Cultura da Resistência

Volto a estudar Schopenhauer, que considero ser o filósofo certo para o nosso tempo indigente e decadente: o seu pessimismo é a denúncia da corrupção e da crueldade. Como diz Schopenhauer, o optimismo é uma opinião ímpia, uma zombaria odiosa, em face das inexprimíveis dores da humanidade. Horkheimer tem razão quando destaca a actualidade do pensamento de Schopenhauer. Devemos confrontar os optimistas com a sua malvadez e o seu egoísmo extremo. Dado não pretender apresentar uma leitura integral do pensamento de Schopenhauer, limito-me a reproduzir aqui comentários dispersos que fiz na caixa de comentários do post anterior.
A Filosofia é deveras complicada, sobretudo a dialéctica. O pensamento tardio de Horkheimer não é tão reaccionário como disse Bloch: a filosofia de Schopenhauer merece ser pensada em relação ao marxismo, porque o seu pessimismo não é incompatível com a teoria de Marx. Este último sabia que a história se desenvolve pelo seu lado mau e chamou pecado teológico ao processo de acumulação primitiva do capital. A solidariedade marxista de classe converte-se, neste mundo cada vez mais global, em solidariedade com os que sofrem nas mãos dos malvados. A linguagem de Marx é muito teológica. Os marxistas interpretaram o pessimismo como uma espécie de rendição à maldade existente, mas Schopenhauer descobriu que o fatalismo era a única consolação impingida pelos malvados às suas vítimas. Ora, Marx denunciou o economicismo fatalista, a actual ideologia neoliberal dos gestores e dos administradores que justificam a crueldade existente que ajudaram a criar. Mas há outra semelhança estrutural entre Marx e Schopenhauer: cada um de nós é, ao mesmo tempo, carrasco e vítima, no sentido de termos interiorizado o opressor e a sua dominação. Bloch chamou reaccionário a Horkheimer, porque ele - Bloch - acreditava na possibilidade de mudar qualitativamente o rumo da história, cuja lógica imanente conduz - segundo Horkheimer - ao mundo totalmente administrado. O problema reside talvez no facto de Horkheimer ter levado a sério a doutrina do mundo como representação, no seio do qual somos escravos, mas a doutrina do mundo como vontade infinita abre-se à liberdade. Este período da filosofia é muito fértil e complexo: as dores do mundo denunciam o carácter ideológico do optimismo. Do ponto de vista teológico, há uma grande proximidade entre Horkheimer e Schopenhauer, mas falta reavaliar a antropologia negativa que, se for vista nos moldes da teologia negativa - a concepção de Deus que não pode ser representado e que é solicitado para salvar um sentido absoluto e suscitar a esperança de que existe um Absoluto -, então o carrasco ameaça confiscar-nos a palavra e triunfar. A teoria da reificação como esquecimento implica uma visão da linguagem e o despertar da memória, mas deve ser pensada em ligação com o fetichismo da mercadoria de Marx. Este capítulo d'O Capital é o obra fundamental da filosofia contemporânea. Somos convidados a revisitar a teoria da maldade radical, que Schopenhauer descobre no pecado original.
A Filosofia dispensa a ciência que nada tem a dizer sobre aquilo que nos preocupa: a ciência é conhecimento de domínio e, como tal, é mais um instrumento da inteligência. Ora, também aqui Schopenhauer subordinou o intelecto à vontade, o que lhe mereceu o elogio de Freud. Não estou a propor a moral da piedade ou da compaixão como solução final, embora aceite a noção de solidariedade universal no sofrimento, aliás uma ideia grata a Sampaio Bruno. A abertura ao teológico não implica o regresso da religião, porque, na esfera filosófica, não há culto: a filosofia recusa a idolatria. Porém, a libertação pela via ascética vislumbrada por Schopenhauer é extremamente sedutora, porque implica resistência: o despojamento é a negação do capitalismo. Suprimir a vontade de viver é negar o capitalismo e o reino do mal existente. O suicídio pode ser visto como a liberdade levada à sua plena consumação. Aqui distancio-me de Schopenhauer: o suicídio não é levado a cabo porque se deseja a vida; o suicídio pode significar a esperança numa outra vida liberta da maldade humana. Neste caso, o homem - apesar de desamparado - pode fintar a vontade infinita, dizendo não à vida em todas as suas determinações.
Na minha economia cognitiva, estou pronto a colocar a filosofia em confronto com a ciência, que, na realidade, não é sabedoria. A noção positivista - isto é, filosófica, - de que a filosofia tende a ser ciência é falsa. Hoje em dia, a filosofia não quer produzir uma teoria do conhecimento para a ciência. A sua tarefa é outra: mostrar que a ciência é mera ideologia instrumental. A ciência só foi ciência enquanto teve a guarda da filosofia. Hoje a filosofia nega a paternidade da ciência e não aceita ser sua escrava: a ciência é, neste momento, uma bastarda, que já não merece ser tratada como uma forma de conhecimento, porque a ciência socializada é pura técnica de controle e de adaptação. O cientista de hoje é um funcionário, um escravo do sistema que lhe nega a dignidade. E os cientistas que dizem ser descendentes de macacos são isso mesmo: macacos que se arrependeram de ser homens. A ciência nega a existência a tudo aquilo que não consegue objectivar, operacionalizar, quantificar e instrumentalizar: o imperialismo do querer científico conduz - como constataram Leonardo Coimbra e Henri Bergson - fatalmente ao niilismo. O materialismo tornou-se, neste contexto de ofuscamento total e de destruição global, uma filosofia insuportável.
Isto traz à minha memória a teoria de Calvino que, lida à luz da Cabala, pode ser integrada na nova síntese filosófica: há animais que são humanos e há outros que parecem ser humanos mas não são humanos. Uma vez que a reconciliação está para além dos poderes humanos, podemos no entanto tentar domesticar a maldade. O pensamento aqui aflorado é perigoso, mas deve ser pensado, até porque não temos nada a perder. Já não podemos perder nada, depois de termos sido espoliados e expropriados da natureza que Deus colocou e confiou à nossa guarda e protecção. O objectivo é restituir a humanidade aos homens que a perderam - os animais metabolicamente reduzidos que mantêm o sistema em funcionamento. O despojamento é a libertação do calvário do consumo, que, depois de nos ter privado da nossa liberdade, explora completamente, do nascimento até à morte, o nosso metabolismo e o nosso sofrimento. O sistema não funciona se os homens humanos recusarem a vontade de viver que os liga ao sofrimento do mundo. Com este pessimismo radical mas expectante, podemos salvaguardar a teoria de Marx, generalizando-a a todos os que sofrem, incluindo os outros seres vivos: o marxismo como humanismo global e ecologicamente orientado. A solidariedade no sofrimento universal exige despojamento: devemos começar a tapar o rosto com um véu para não sermos identificados pelos opressores. O rosto - assim como as impressões digitais ou o ADN - identifica-nos e o sistema usa-o para nos controlar. Homens e mulheres devem tapar o rosto, de modo a mostrar a sua solidariedade no sofrimento e a evitar a sua identificação como peças submissas do sistema: a generalização da burca ou do véu a tapar o rosto significa resistência contra o sistema que nos nega a dignidade, sem mostrar o rosto ao maldito carrasco, cuja acção gera na história a injustiça e a guerra.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Parque Nacional da Gorongosa

Guardo boas memórias de infância desse meu contacto com a natureza vivido no Parque Nacional da Gorongosa - Moçambique, apesar de ter ficado assustado com a ameaça de uma leoa cega de um olho e com um elefante enfurecido com a ousadia do guia. Ontem, Mário Crespo entrevistou o americano responsável - Greg Carr, Presidente da Fundação Carr - pela sua recuperação e restauração do ecossistema, incluindo as comunidades humanas locais, e fiquei sensibilizado quando Carr disse que o contacto com a natureza engrandece a alma. De facto, a debilidade da alma moderna deve-se, em parte, a essa ruptura do homem com a natureza. A cidade expulsa-nos e isola-nos da natureza, circunscrevendo e delimitando o espaço humano seguro, e reduzindo a natureza a um espaço selvagem, exterior e estranho, que nos hostiliza, mas a verdade é outra: o contacto íntimo com a natureza exterior ajuda-nos a libertar a nossa natureza interior, trazendo-lhe paz.
O homem não desembarcou na Terra como um alienígena: o homem é um ser-da-e-na-natureza, isto é, um ser que evoluiu ao lado de outras espécies na natureza. A dominação da natureza está a destrui-la e, ao mesmo tempo, põe em risco a sobrevivência do homem. A relação do homem com a natureza não pode ser instrumental, mas deve ser biófila: biofilia é o termo cunhado para designar as ligações que o homem procura estabelecer - no seu íntimo secreto - com a restante vida e com a natureza: a sobrevivência da humanidade depende da conservação da chamada natureza selvagem - a terra e as comunidades de plantas e de animais que ainda não foram maculadas e domadas pela ocupação e pela acção instrumental do homem, bem como pela restauração de ecossistemas destruídos pela estupidez do homem.
Viaje até ao Parque Nacional da Gorongosa, em busca de uma nova vida e das maravilhas da natureza, que guarda a memória da nossa vida tribal ancestral. Visite o Parque Nacional da Gorongosa e ajude a sustentar esse magnífico projecto ecológico. (A segunda imagem é de uma Cacatua da Palmeira, uma ave extremamente inteligente que vive em estado selvagem na Austrália. A sua inteligência pode ser explicada pela sua longevidade - cerca de 90 anos, no decorrer dos quais aprende muita coisa. É sociável, monogâmica e muito comunicativa, usa o bico com enorme destreza e sabe comunicar batendo as patas no tronco.)
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Prós e Contras: As Contas do Estado

Amanhã será apresentado pelo governo o Or-çamento de Estado, que foi hoje (25 de Janeiro) debatido no Prós e Contras. O orçamento devia unir todos os portugueses em torno de um projecto nacional de modernização, mas o jornalismo desportivo, a violência benfiquista dirigida contra pessoas e património do FCPorto, a falta de credibilidade dos meios de comunicação social sediados em Lisboa, enfim toda essa campanha mediática dirigida contra o Norte e o Porto já dividiu Portugal. Aqui na cidade Invicta começa a emergir um sentimento de autonomia saudável e justo: a comunicação social lisboeta é claramente desprezada e alvo de troça. O sentimento de autonomia é alimentado pela calúnia e pelos jogos encarnados sujos difundidos pelos mass media. Não adianta querer responsabilizar Pinto da Costa pela divisão de Portugal, porque essa divisão resulta da teia de mentiras lavrada hipocritamente em nome da verdade desportiva - a pseudo-verdade encarnada: todos conhecemos a história desportiva do Benfica e, como no tempo do fascismo, os jogos eram prolongados para que o Eusébio - ou outro jogador qualquer - marcasse mais um golo. As taças do Benfica foram vencidas na secretaria, com o aplauso ruidoso e ridículo de jornalistas e comentadores desportivos medíocres e destituídos de bom-senso. Qualquer pessoa inteligente e dotada de conhecimentos percebe que, por detrás dos comentários desportivos, da nota de culpa, das escutas e da violação do segredo de justiça, habita uma mente perversa e imbecil, cujo funcionamento barulhento - devido à escassez de neurónios interligados entre si e de células de suporte - denuncia as suas práticas desportivas e a corrupção que as domina. O país está dividido, porque as pessoas de bom-senso começam a ficar fartas de ser caluniadas diariamente, ano após ano, na praça pública, por indivíduos-ratazanas que não sabem o que é ser civilizado e culto. Porém, não vejo a razão de tanto alarido searista em torno da divisão de Portugal: Afinal, o Benfica poderia retomar o seu esquema fascizante e violento de conquista dos campeonatos sulistas e continuar a acumular falsas taças! De facto, perante esta histeria mediática e a ausência de verdadeiro sentido de humor, impõe-se concluir que o Benfica e a sua triste e feia "nação" constituem forças de bloqueio da modernização e da democratização de Portugal: quer dizer que o desenvolvimento do país exige a abolição do Benfica. A sua presença é muito desagradável, porque traz constantemente à consciência os horrores do passado fascista que pensávamos terem sido enterrados pelo 25 de Abril, o atraso estrutural nacional e a ausência de inteligência - e as ratazanas até são inteligentes. Enfim, precisamos criar uma outra categoria zoológica para designar essas criaturas primitivas que, retomando a organização criminosa da máfia desportiva italiana, se movimentam contra a democracia, a sociedade aberta e a verdade desportiva! As Coisas ainda não identificadas zoologicamente, para as quais a verdade desportiva é sinónimo de falsificação de resultados desportivos a favor da máfia fascista, fingem ficar chocadas com a linguagem ordinária nacional que, elas próprias, usam na esfera pública, sem serem alvo de escutas intrusas da vida privada: os mass media fedorentos fazem tudo para destruir o futebol e atiçar a violência entre adeptos de clubes rivais, pondo em causa a unidade nacional. Há uma diferença fundamental entre a cultura do FCPorto e a cultura do Benfica: Pinto da Costa usa o humor para neutralizar a agressão e reconciliar o país - cultura democrática, enquanto a máfia encarnada usa a violência para gerar mais violência - cultura totalitária, de modo a obter a falsificação dos resultados desportivos e a dividir até à ruptura o país. E este facto está bem documentado e não há argumentos contra a evidência: a chamada "verdade desportiva" visa instrumentalizar e desumanizar o futebol - usando as novas tecnologias para falsificar e desvirtuar os resultados desportivos - e colocá-lo ao serviço de forças irracionais absolutamente destrutivas. O movimento da "verdade desportiva" quer deliberadamente destruir Portugal: "Tempo Extra" da SICNotícias convoca os portugueses para a Guerra Civil. Esta é a verdade sobre a chamada "verdade desportiva", a ideologia da instrumentalização corrupta do futebol. Futebol tecnológico é futebol desumano: perde a graça, a emoção, e, dado a tecnologia ser moldada pelos preconceitos do programador, perde a surpresa, a imprevisibilidade.
O debate do orçamento do Estado, que contou com a presença de Jorge Lacão (Ministro dos Assuntos Parlamentares), Miguel Frasquilho (PSD-PPD), Pedro Mota Soares (CDS-PP), do lado dos partidos do poder, e de José Gusmão (BE) e Honório Novo (PCP), do lado da oposição avessa ao poder, não trouxe nenhuma novidade, até porque já se sabia que o PSD e o CDS iriam viabilizar o orçamento de Estado. As condições exigidas pelos partidos da Direita para viabilizar o orçamento, nomeadamente a redução do endividamento e da despesa pública, foram satisfeitas pelo governo. No entanto, o PSD e o CDS alegaram uma razão de fundo para dotar o país de um orçamento: a credibilização de Portugal nos mercados financeiros, de modo a evitar os efeitos sociais nefastos da subida dos juros e a crise que se vive na Grécia. A questão crucial colocada por Fátima Campos Ferreira permaneceu sem resposta: Como pôr o país a dar o salto? O CDS exige do governo a tomada de medidas sociais que aumentam de tal modo a despesa corrente e de investimento que inviabilizam o arranque de Portugal. Paradoxalmente, o CDS aproxima-se muito da atitude dos partidos situados à esquerda do PS: todos pensam mais a curto prazo do que a longo prazo, o que contribui para o adiamento da modernização de Portugal. Neste contexto ofuscado pelos interesses partidários, o PS foi o único partido a apresentar medidas positivas, capazes de evitar a anunciada morte lenta de Portugal. Jorge Lacão apresentou as apostas do governo para diminuir a despesa e o endividamento: as novas energias, o carro eléctrico, a construção de novas barragens, o parque escolar, o sector dos transportes e a qualificação dos portugueses. As três primeiras apostas ajudam a reduzir o endividamento público, mas as últimas merecem ser repensadas e criticadas, porque o TGV e o novo aeroporto não contribuem para o desenvolvimento integrado do país. Aquilo que Jorge Lacão disse em relação às finanças regionais devia ser aplicado a todo o país: desenvolvimento desigual - e prejudicial -, em benefício exclusivo da região de Lisboa, foi sempre a palavra-chave de uma capital que se comporta como uma colonizadora bárbara em relação ao resto do país. Os carrascos encarnados do túnel do estádio das trevas, bem como os que apedrejam e incendeiam autocarros e carros portistas, provocaram e agrediram os jogadores do FCPorto, dizendo: «Vão lá para cima». Ora, nestas palavras, revela-se uma clivagem que começa a apoderar-se da consciência nacional: o país acorda para os seus conflitos internos, o que pode funcionar como um despertar para a modernização e a construção de uma sociedade aberta e liberta das forças obscuras que sopram da triste e deprimida capital. O poder central é visto como um invasor alienígena e, como tal, deve ser abatido, como sucede nos filmes de ficção científica, porque a morte lenta de Portugal não é uma metáfora, é a realidade.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Max Horkheimer: Eclipse da Razão

«Hoje a ideia de maioria, privada dos seus fundamentos racionais, assumiu um aspecto completamente irracional. Toda a ideia filosófica, ética e política - tendo sido cortado o cordão umbilical que ligava essas ideias às suas origens históricas - tende a tornar-se o núcleo de uma nova mitologia, e esta é uma das razões pela qual o avanço do iluminismo tende a reverter, até certo ponto, para a superstição e a paranóia. O princípio da maioria, na forma de veredictos populares sobre todo e qualquer assunto, implementado por toda a espécie de escrutínios e modernas formas de comunicação, tornou-se a força soberana à qual o pensamento tem de prover. É um novo deus, não no sentido em que os arautos das grandes revoluções o conceberam, isto é, como um poder de resistência à injustiça existente, mas como um poder de resistência a qualquer coisa que não se acomode. Quanto mais o julgamento do povo é manipulado por todo o tipo de interesses, mais a maioria é apresentada como árbitro na vida cultural. Presume-se que justifique os representantes da cultura em todos os seus domínios, até os produtos da arte e da literatura popular que enganam as massas. Quanto mais a propaganda científica faz da opinião pública um simples instrumento de forças obscuras, mais a opinião pública surge como um substituto da razão. Esse ilusório triunfo do progresso democrático consome a substância intelectual da qual tem vivido a democracia». (Max Horkheimer)
Uma visão de conjunto da evolução da teoria crítica - a expressão forjada por Horkheimer nos anos 30 do século XX para designar o marxismo visto como uma filosofia da não-identidade - e do percurso histórico da Escola de Frankfurt é-nos dada por Martin Jay, Rolf Wiggershaus, David Held, Paul-Laurent Assoun, Zoltán Tar, Eugene Lunn, Terry Eagleton, Stephen Eric Bronner, Christoph Türcke e Fredric Jameson. A criação oficial do Institut für Socialforschung (Instituto de Pesquisa Social) teve lugar no dia 3 de Fevereiro de 1923, por um decreto do Ministério da Educação, na base de um acordo com a Gesellschaft für Socialforschung (Sociedade para a Investigação Social). O seu primeiro director indigitado foi Carl Grünberg e a sua revista chamava-se Archiv, sendo em 1932 substituída pela Zeitschrift für Socialforschung. Em 1931, Horkheimer reorganiza o Instituto de Pesquisa Social e imprime-lhe uma nova orientação teórica e um novo projecto político: a sociologia é substituída pela Filosofia Social. Surge assim a teoria crítica como uma tentativa teórica original, cujo manifesto é o artigo de Horkheimer - Teoria Tradicional e Teoria Crítica, publicado na Zeitschrift, em 1937. A teoria crítica é basicamente uma criação de Max Horkheimer (1895-1973). Os pensadores mais ilustres da Escola de Frankfurt são, além do seu fundador, Theodor W. Adorno (1903-1969), Herbert Marcuse (1898-1978), Walter Benjamin (1892-1940) e Erich Fromm (1900-1980), aos quais podemos acrescentar Ernst Bloch (1885-1977) e Jürgen Habermas. Outros nomes menos conhecidos são Franz Borkenau, Kurt Albert Gerlach, Henryk Grossmann, Otto Kirchheimer, Mira Komarovski, Siegfried Kracauer, Leo Lowenthal, Franz Neumann, Friedrich Pollock, Andries Sternheim, Félix Weil e Karl August Wittfogel. Nesta hora de despertar do pesadelo neoliberal, é preciso reconstruir a teoria crítica e esta reconstrução exige não só o repúdio da ética do discurso de Karl Otto Apel e Jürgen Habermas, mas sobretudo a construção de uma nova utopia, em diálogo produtivo com Marx e os textos seminais da Escola de Frankfurt.
Na Primavera de 1944 (Fevereiro e Março), Horkheimer realizou cinco palestras públicas na Universidade de Colúmbia, das quais resultou a publicação em 1947 do seu livro Eclipse of Reason, onde apresenta as suas ideias sobre a dialéctica do esclarecimento. Em 1947, Horkheimer e Adorno publicaram Dialektik der Aufklärung. A análise crítica da Dialéctica do Esclarecimento fornece-nos todos os instrumentos teóricos necessários para compreender a crise profunda da Modernidade: Horkheimer e Adorno generalizam a crítica marxista da história das sociedades de classes na direcção de uma crítica fundamental e total da história do pensamento ocidental e da sua praxis, entendida como a lógica de uma dominação universal da natureza e do homem. A radicalização da crítica justifica-se pelo facto da dominação da natureza estar a assumir formas não económicas: a visão do mundo natural como um campo de controle e de manipulação humana implica a dominação do próprio homem e do mundo humano. O Iluminismo já não pode ser visto unicamente como o correlato cultural da burguesia em ascensão, mas deve ser alargado de modo a incluir o espectro completo do pensamento ocidental ou mesmo do pensamento em geral. A razão toma assim a sua dimensão histórico-filosófica, de modo a poder pensar como entrou num conflito tão radical consigo própria. Com esta crítica radical da razão que entra em conflito consigo mesma no seio da história, a teoria crítica converte-se numa nova Filosofia da História que desmonta a mitologia da Modernidade capitalista: «o próprio mito é já razão e a razão volta a ser mitologia». O ideal de dominar a natureza, cujos traços já se encontram na astúcia de Ulisses e até mesmo no Génesis, sela o destino da razão instrumental e da autoridade: a vocação emancipatória da razão cede à barbárie. A razão instrumentaliza-se ao transformar a natureza em instrumento, enquanto a natureza procura vingar-se periodicamente contra essa sujeição instrumental. Porém, a revolta da natureza acaba por ser integrada no sistema capitalista, como seu mecanismo de perpetuação, paralisando a crítica e a praxis radical de transformação do mundo. Horkheimer e Adorno usam o princípio marxista da troca como conceito-chave para compreender a sociedade ocidental na sua evolução histórica, o que lhes permite ligar a racionalização de Weber ao conceito de reificação de Lukács. À radicalização da crítica deveria corresponder uma praxis radical e era essa a intenção da Escola de Frankfurt: a razão (Vernunft) - o conceito nuclear da teoria crítica - significa a reconciliação das contradições, incluindo a contradição entre homem e natureza. Após criticar severamente as teorias da identidade absoluta, sem no entanto negar a separação do sujeito e do objecto, Horkheimer destaca a importância da razão objectiva como um antídoto a ser usado contra o império reificado da razão subjectiva instrumentalizada: «Os dois conceitos de razão não representam duas vias separadas e independentes da mente, embora a sua oposição represente uma verdadeira antinomia. A tarefa da filosofia não é lançar teimosamente um contra o outro, mas promover a crítica recíproca dos dois conceitos e, deste modo, se for possível, preparar na esfera intelectual a conciliação dos dois na realidade» (Horkheimer).
O Eclipse da Razão de Horkheimer compreende cinco capítulos - Meios e Fins (I), Panaceias em Conflito (II), A Revolta da Natureza (III), Ascensão e Declínio do Indivíduo (IV) e Sobre o Conceito de Filosofia (V). O objectivo da análise realizada por Horkheimer é explicitar, numa perspectiva imanente, o conceito de racionalidade subjacente à nossa cultura, a fim de «descobrir se esse conceito não contém falhas que o tornam vicioso». Horkheimer descobre uma falha fatal: o conhecimento técnico alarga o horizonte da acção e do pensamento humanos, enquanto a autonomia do indivíduo, a sua capacidade de resistir ao mecanismo de manipulação das massas, o seu poder de imaginação e o seu pensamento independente, sofrem uma regressão substancial. O avanço dos recursos técnicos de informação e a omnipresença do sistema todo-poderoso da indústria cultural implicam um processo de desumanização: «o progresso ameaça anular o que se supõe ser o seu próprio objectivo: a ideia de homem». A emergência vitoriosa do neobarbarismo é sintoma da crise da cultura superior do Ocidente: a racionalidade progressista está, na perspectiva de Horkheimer, «a obliterar a própria substância da razão, em nome da qual se apoia a causa do progresso».
1. Meios e Fins. Neste primeiro capítulo, Horkheimer estabelece uma diferenciação entre razão subjectiva - a racionalidade formal de Weber - e razão objectiva - a racionalidade substantiva de Weber, de modo a clarificar o processo de formalização da razão e as suas implicações teóricas e práticas de longo alcance, tais como a perda da força racional dos conceitos, a dissolução da ideia de razão objectiva, a desumanização do pensamento, a dissociação entre as aspirações humanas e as potencialidades da ideia de verdade objectiva, a instrumentalização da actividade, o pluralismo gerador de um traço esquizofrénico na vida moderna, a perda da experiência, a neutralização da mensagem subversiva das obras de arte, a perseguição da filosofia e a estupidificação da razão. A distinção entre razão objectiva e razão subjectiva corresponde à diferenciação feita na Dialéctica do Esclarecimento (Horkheimer e Adorno) entre dois conceitos de esclarecimento: a razão objectiva destaca os fins e a harmonia como um princípio inerente à realidade, enquanto a razão subjectiva se relaciona com os meios e a adequação de procedimentos a propósitos considerados como certos e presumivelmente auto-justificativos, sem questionar a sua racionalidade. A passagem da razão objectiva para a razão subjectiva foi um processo histórico gradual de esvaziamento do conteúdo objectivo de todos os conceitos racionais, do qual resultou finalmente no nosso tempo indigente a impossibilidade de ver a realidade particular como racional per si: «todos os conceitos básicos, esvaziados do seu conteúdo, tornaram-se meros invólucros formais». A subjectivação da razão - reduzida à capacidade de calcular probabilidades e de coordenar os meios correctos para alcançar um determinado objectivo, implica, simultaneamente, a sua formalização e a sua instrumentalização: a razão transforma-se em mero instrumento usado pelo sistema para dominar a natureza e o homem. O eclipse da razão objectiva é, portanto, o triunfo da razão instrumental, cujo significado é retirado da sua ligação a outros fins alheios à racionalidade e cujo valor é determinado pela função operacional que desempenha na dominação da natureza e do homem. Uma actividade só é racional quando serve outro fim ou propósito - o negócio, a saúde, o relaxamento, o descanso, etc., que ajude a recuperar a energia produtiva, e, no que respeita às obras de arte, a formalização da razão manifesta-se como reificação. A reificação resulta da transformação operada pelo aparelho económico capitalista de todos os produtos da actividade humana em mercadorias. Horkheimer destaca o papel desempenhado pelo pragmatismo neste processo de subjectivação da razão: a tese central do pragmatismo - James, Dewey e Peirce - é «a opinião de que uma ideia, um conceito ou uma teoria, mais não são do que um esquema ou plano de acção». A definição da verdade como o sucesso da ideia significa que as nossas ideias são verdadeiras porque as nossas expectativas se cumprem e as nossas acções têm sucesso. O ataque pragmatista à contemplação e ao pensamento especulativo visa glorificar a perícia técnica: o pensamento passa a ser avaliado por algo que não é pensamento - o seu efeito na produção ou o seu impacto sobre o comportamento social. Ao liquidar-se a si mesma, abdicando da sua capacidade para determinar a racionalidade dos fins, a razão capitula perante o sistema social existente, levando ao conformismo: o indivíduo ajusta o seu comportamento à realidade tal como é. Ser racional é, segundo esta perspectiva instrumental, não ser refractário.
2. Panaceias em Conflito. A dialéctica elabora-se e exerce-se na e pela crítica da sociedade estabelecida e das suas ideologias. Sem esses conteúdos objectivos não há propriamente dialéctica: Horkheimer elaborou a teoria crítica através do diálogo e da crítica de outros pensadores - Kant, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche, Bergson, Dilthey, Weber, Husserl, Heidegger, Scheler, Sartre - e de outras tradições filosóficas - o positivismo, o pragmatismo, a Lebensphilosophie, o existencialismo, o neotomismo, a metafísica, a fenomenologia -, isto é, a génese da teoria crítica foi tão dialéctica como o método que aplicou aos fenómenos sociais. As panaceias em conflito são, neste segundo capítulo, o positivismo, do qual o pragmatismo é uma versão, e o neotomismo: «Tendo perdido a sua autonomia, a razão tornou-se um instrumento. No aspecto formalista da razão subjectiva, sublinhado pelo positivismo, enfatiza-se a sua não-referência a um conteúdo objectivo; no seu aspecto instrumental, sublinhado pelo pragmatismo, enfatiza-se a sua submissão a conteúdos heterónomos. A razão tornou-se algo inteiramente aproveitado no processo social. O seu valor operacional, o seu papel na dominação dos homens e da natureza tornou-se o único critério para a avaliar». Horkheimer encara o pragmatismo como uma expressão do positivismo, porque ambas as correntes do pensamento identificam a filosofia com o cientismo: a apologia da ciência-instrumento vista como a campeã automática do progresso e como glorificação da tecnologia. A crítica do cientismo nestas duas versões complementares é articulada por Horkheimer com a crítica do neotomismo: as duas escolas antagónicas são censuradas pelo facto de bloquearem o pensamento crítico, através de afirmações autoritárias e despóticas. Segundo Horkheimer, cada uma destas filosofias expressa uma verdade, mas, logo a seguir, é levada a distorcê-la e a torná-la exclusiva: o positivismo critica o dogmatismo, anulando o princípio de verdade, em nome do qual a crítica alcança o seu sentido, enquanto o neotomismo defende o princípio de verdade com uma tal rigidez que o transforma no seu oposto. Positivismo e neotomismo têm um carácter heterónomo: o primeiro tende a substituir a razão autónoma pelo automatismo da metodologia científica moderna, o segundo pela autoridade de um dogma.
3. A Revolta da Natureza. A natureza dominada vinga-se periodicamente contra a sua sujeição repressiva, quer sob a forma de rebeliões sociais, quer sob a forma do crime organizado e da perturbação mental. Horkheimer retoma aqui o conceito freudiano de civilização como repressão das exigências dos instintos humanos, ligando-o ao processo histórico da sociedade burguesa que visa a dominação da natureza, para minar a ideia de progresso e a tese iluminista do desencantamento do mundo: «Dado que a subjugação da natureza, dentro e fora do homem, prossegue sem um motivo significativo, a natureza não é efectivamente transcendida ou reconciliada, mas simplesmente reprimida». O processo de repressão provoca reacções violentas por parte da natureza que acossam a civilização desde os seus primórdios. Porém, a moderna civilização burguesa conseguiu integrar e domesticar essas revoltas da natureza, usando-as como mecanismo de perpetuação da sua matriz civilizacional: «Traços típicos da nossa era actual são a manipulação desta revolta pelas forças predominantes da própria civilização e o uso da mesma como um meio de perpetuação das próprias condições que a provocaram e contra as quais insurge. A civilização como irracionalidade racionalizada integra a revolta da natureza como outro meio ou instrumento». Horkheimer analisa o fascismo como o culminar da racionalidade técnica da sociedade capitalista. Com a emergência do fascismo, o iluminismo retrocede à barbárie: o fascismo, compreendido como síntese satânica da razão instrumental e da natureza, encoraja a revolta da natureza do indivíduo e, ao mesmo tempo, suprime-a: «No fascismo moderno, a racionalidade atingiu um ponto em que não se satisfaz simplesmente com a repressão da natureza; a racionalidade agora explora a natureza, incorporando no seu próprio sistema as potencialidades rebeldes da natureza. Os nazis manipularam os desejos reprimidos do povo alemão».
A actual crise financeira e económica revela o momento de verdade da teoria do fascismo de Horkheimer e de Marcuse, segundo a qual o totalitarismo é o resultado natural da democracia liberal-burguesa. A teoria de Marx não precisa ser revista para identificar o fascismo: o que se modificou no capitalismo tardio (Werner Sombart) foi a forma de dominação. As posições de comando dispersas em organizações individuais foram substituídas pela dominação totalitária dos interesses particulares sobre toda a sociedade, alterando substancialmente a composição das classes dirigentes. A burocracia foi alargada até adquirir um grau elevado de autonomia. O capitalismo organizou-se e planificou-se com a revolução dos administradores (James Burnham). Independentemente de se reclamarem da Direita ou da Esquerda, os economistas, os gestores, os administradores e os políticos neoliberais comportam-se como fascistas, que organizam e remodelam a população numa colectividade resignada e pronta a servir nas mãos das novas classes dirigentes qualquer objectivo civil e militar. O neoliberalismo que culmina o capitalismo tardio (Spätkapitalismus) à escala global e que produziu a actual crise financeira e económica é, na sua substância, neofascismo, que recorre ao darwinismo para legitimar a sua dominação global. Horkheimer discute diversos aspectos do mecanismo de perpetuação, tais como a interiorização da dominação pelo desenvolvimento do sujeito abstracto, a inversão dialéctica do princípio de dominação pela qual o homem se torna, ele próprio, um instrumento da mesma natureza daquele que domina, e a repressão do impulso mimético, mediante os quais a civilização procura integrar a revolta da natureza no seu próprio sistema, negando o antagonismo do espírito em relação à natureza. Porém, como a ideologia do neoliberalismo decorre do darwinismo incorporado no pragmatismo americano, vamos analisar apenas a situação do homem numa cultura de autopreservação, a partir do darwinismo perspectivado como uma filosofia que pertence à principal corrente derivada do iluminismo - o positivismo - e que reflecte a revolta da natureza contra a razão. Segundo o darwinismo popular - aquele que predomina actualmente na divulgação científica - a sobrevivência do mais apto - o êxito ou sucesso do indivíduo, em linguagem económica neoliberal -, depende da sua capacidade de adaptação às pressões que a sociedade e a economia de mercado exercem sobre ele: a sobrevivência do indivíduo requer a sua transformação num mecanismo que reage a cada momento às situações difíceis de um modo apropriado e, na nossa sociedade industrializada, deliberadamente ajustado. Como a vida social está cada vez mais submetida à racionalização e à planificação, a vida do indivíduo, incluindo os seus impulsos mais ocultos, que outrora constituíam o seu domínio privado, deve adaptar-se às exigências da racionalização e da planificação sociais: «a autopreservação do indivíduo pressupõe o seu ajustamento às exigências de preservação do sistema», do qual não consegue escapar. Ora, a racionalização não resulta da acção de forças anónimas do mercado, mas sim da acção consciente de uma minoria de burocratas e de tecnocratas, que decide em nome da massa de sujeitos, obrigando-os a ajustar as suas vidas e os seus comportamentos a uma realidade que os confronta como algo absoluto e esmagador: aqueles que recusam navegar a onda criada pelas classes dirigentes são automaticamente excluídos. O princípio de realidade estabelecido não permite ao indivíduo - outrora autónomo - confrontá-lo e conformar a realidade com a esfera do ideal: as ideologias foram sistemática e deliberadamente desacreditadas ou omitidas pelo pensamento único, com o objectivo de facilitar a elevação da realidade estabelecida ao status de ideal. O ajustamento é apresentado como o modelo de todos os tipos de comportamento subjectivo e objectivo, privado e público: o triunfo da razão subjectiva é, portanto, o triunfo da realidade unidimensional, para usar o conceito de Marcuse.
A minoria de gestores corruptos que levou a cabo a globalização substituiu a selecção natural pela acção racional, mas compreendeu que o conceito de sobrevivência do mais apto é simplesmente a tradução dos conceitos da razão formalizada - e da sua economia neoliberal - na linguagem da história natural. Darwin inverte a metafísica idealista, quando encara a razão como um órgão da natureza. Para a metafísica idealista, o mundo era, de certo modo, um produto da mente, enquanto, para o darwinismo, a mente é um processo da natureza, que abdica da filosofia para lhe dar voz: «a natureza, poderosa e venerável deidade, é governante e não governada». Embora tenha auxiliado a natureza rebelde, libertando-a da tirania do logos, a equiparação darwinista da razão e da natureza é uma falácia típica da era da racionalização instrumental: a equiparação darwinista da razão e da natureza degrada a razão e exalta a natureza bruta como pura vitalidade. Idealismo e materialismo mais não são do que meras versões da racionalidade instrumental: o primeiro deprecia a natureza como força bruta, o segundo louva-a como pura vitalidade, mas ambos bloqueiam a visão da natureza como «um texto a ser interpretado pela filosofia que, se for correctamente lido, revelará uma história de sofrimento infinito». Porém, o darwinismo exige a adaptação incondicional do indivíduo a uma realidade social esmagadora, cuja opacidade não permite questionar e problematizar: o seu conceito de razão como órgão natural, em vez de libertar a razão da sua tendência intrínseca para a dominação e de a investir com maiores possibilidades de conciliação, implica a rejeição de todos os elementos da mente que transcendam a função de adaptação, usando-os como meros instrumentos da autopreservação. A abdicação darwinista do espírito converte a razão em serva da selecção natural. A dialéctica procura uma terceira alternativa que possibilite conciliar a natureza e a razão, para além do materialismo e do idealismo, porque a negação teórica do antagonismo entre espírito e natureza significa, na prática, admitir o princípio da dominação universal da natureza pelo homem. Como escreve Horkheimer: «Somos herdeiros, para o melhor ou o pior, do Iluminismo e do progresso tecnológico. Opor-se a ambos por um regresso a estágios mais primitivos não alivia a crise permanente que deles resulta. Pelo contrário, tais expedientes conduzem-nos do que é historicamente racional às formas mais horrendamente bárbaras de dominação social. O único meio de auxiliar a natureza é libertar o seu pretenso opositor, o pensamento independente».
4. Ascensão e Declínio do Indivíduo. A liquidação da razão acarreta necessariamente a liquidação do indivíduo: «Se a razão é declarada incapaz de determinar os objectivos supremos da vida e deve contentar-se em reduzir tudo o que encontra a um mero instrumento, o seu único objectivo remanescente é apenas a perpetuação da sua actividade de coordenação. Essa actividade era outrora atribuída ao sujeito autónomo. Contudo, o processo de subjectivação afectou todas as categorias filosóficas: em vez de as relativizar e de as preservar numa unidade de pensamento melhor estruturada, reduziu-as ao status de factos a ser catalogados. Isso também é verdadeiro para a categoria do sujeito. A filosofia dialéctica desde os tempos de Kant tentou preservar o transcendentalismo crítico, sobretudo o princípio de que os traços e as categorias fundamentais da nossa compreensão do mundo dependem de factores subjectivos. A consciência da tarefa de determinar as origens subjectivas dos conceitos deve estar presente em cada etapa de definição do objecto. Isso aplica-se tanto às ideias básicas como facto, acontecimento, coisa, objecto, natureza, quanto às relações psicológicas ou sociológicas. Desde o tempo de Kant, o idealismo jamais esqueceu essa exigência da filosofia crítica. Até os neo-hegelianos da corrente espiritualista vêem no ego "a mais alta forma de experiência que nós temos, mas... não uma forma verdadeira", porque a ideia de sujeito é em si mesma um conceito que deve ser relativizado pelo pensamento filosófico. Mas Dewey, que por vezes parece unir-se a Bradley na elevação da experiência à mais elevada posição na metafísica, declara que "o ego ou sujeito da experiência é parte e parcela do curso dos acontecimentos". Segundo Dewey, "o organismo - o ego, o sujeito da acção - é um factor dentro da experiência". E, no entanto, quanto mais a natureza é vista como "uma total mixórdia de substâncias heterogéneas", como meros objectos em relação aos sujeitos humanos, mais o outrora presumivelmente sujeito autónomo é esvaziado de qualquer conteúdo, até se tornar finalmente um mero nome sem nada a denominar. A transformação completa de todos os domínios do ser à condição de meios conduz à liquidação do sujeito que presumivelmente deveria usá-los. Isto dá à moderna sociedade industrializada o seu aspecto niilista. A subjectivação que exalta o sujeito também o condena. /No processo da sua emancipação, o ser humano partilha o destino do resto do seu mundo. A dominação da natureza envolve a dominação do homem. Cada sujeito deve não só participar na sujeição da natureza exterior, humana ou não-humana, como, para o fazer, deve subjugar a natureza em si mesmo. A dominação tornou-se interiorizada por si mesma».
Com a entrada da psicanálise no Instituto de Pesquisa Social, termina a era de Grünberg e começa a era de Horkheimer: o recurso à teoria de Freud é fundamental para compreender o mecanismo de perpetuação que integra a revolta da natureza no próprio sistema da civilização ocidental. A interiorização da repressão e a inversão dialéctica do princípio de dominação ajudam a clarificar o destino do indivíduo na cultura da autopreservação. Horkheimer analisa exaustivamente as peripécias da individualidade ao longo da história do Ocidente, isto é, desde a ascensão do indíviduo na Grécia Antiga até ao seu declínio na sociedade moderna. O que interessa aqui destacar é a crise do indivíduo: o antagonismo entre a individualidade e as condições económicas e sociais da sua existência deixou de ser na sociedade de consumo um elemento essencial na construção da própria individualidade. O antagonismo em relação à sociedade, mediante o qual o indivíduo constrói o seu self como projecto, foi completamente suplantado na mente consciente dos indivíduos pelo desejo de adaptação milimétrica à realidade. A mediação do poder social pelo poder sobre as coisas implica o domínio do próprio indivíduo pelas coisas, a perda de traços individuais genuínos, a perda de liberdade e a transformação da sua mente num autómato da razão formalizada. O sistema da indústria cultural ajuda a integrar o indivíduo no sistema de instrumentos, mostrando-lhe o seu caminho na realidade como ela é e como deve ser e será. O liberalismo conduziu, pela via da colonização económica do mundo da vida e do mundo da personalidade, ao conformismo total: a mónada liberal - o símbolo do indivíduo económico atomístico da sociedade burguesa - converteu-se finalmente num tipo social, isto é, numa figura sem rosto e sem personalidade, incapaz de planear o futuro remoto para os seus herdeiros e para si. O indivíduo entregue exlusivamente à tarefa da autopreservação desiste da sua esperança de auto-realização: a sua mente está fechada para o sonho de um mundo basicamente diferente e para os conceitos que, em vez de serem meras classificações ou rótulos de factos e de estatísticas, sejam orientados para a realização verdadeira de um mundo melhor. De certo modo, estes indivíduos de mente fechada e cognitivamente atrofiada são meras projecções astrais da mente do engenheiro, isto é, da mente do industrial em forma tecnológica e economicamente orientada: o comando decidido da mente tecnológica visa transformar «os homens num conjunto de instrumentos sem objectivos próprios». O processo de reificação do homem está praticamente consumado nesta era tecnocrática e economicista: o homem é cada vez mais reduzido a um mero instrumento, avaliado em função de critérios estritamente económicos, tais como a sua produtividade, a sua eficiência e a sua competitividade. Perante este processo que converte o homem em instrumento, o empresário em funcionário, o trabalhador em sindicalista integrado, o político em corrupto deslumbrado, o economista em ladrão profissional, o universitário em burreco diplomado, o magistrado em agitador fascista, o jornalista em criador de intrigas, o professor em incompetente diplomado e o erudito em especialista da opinião pública, e que paralisa a evolução para o humano, a filosofia desespera, porque teme pelo futuro: «Os verdadeiros indivíduos do nosso tempo são os mártires que atravessaram os infernos do sofrimento e da degradação na sua resistência à conquista e à opressão, e não as personalidades bombásticas da cultura popular (da TV), os dignatários convencionais. Esses heróis não celebrados expuseram conscientemente a sua existência como indivíduos à aniquilação terrorista que outros arrostam inconscientemente através dos processos sociais. Os mártires anónimos dos campos de concentração são os símbolos da humanidade que luta para nascer. A tarefa da filosofia é traduzir o que eles fizeram numa linguagem que será ouvida, mesmo que as suas vozes finitas tenham sido silenciadas pela tirania».
5. Sobre o Conceito de Filosofia. Todos os conceitos filosóficos tradicionais estavam enraizados no conceito do universalmente humano da espécie humana, mas a sua formalização levada a cabo pelo cientismo separou-os desse conteúdo humano. Neste sentido, a formalização da razão significa desumanização do pensamento: o ataque positivista à contemplação e o louvor da perícia técnica expressam o triunfo dos meios sobre os fins, ou seja, o triunfo pragmatista da fábrica como protótipo da existência humana, mediante o qual todos os sectores da cultura superior são modelados segundo a produção na linha de montagem ou segundo o escritório executivo racionalizado. A Filosofia torna-se assim alvo da perseguição totalitária movida pela mentalidade de engenheiro contra os intelectuais que recusam reduzir a razão a um mero instrumento: «Um homem inteligente não é aquele que pode simplesmente raciocinar com correcção, mas aquele cuja mente está aberta à percepção de conteúdos objectivos, que está apto a receber o impacto das suas estruturas essenciais e a transformá-las em linguagem humana; isto também se aplica à natureza do pensamento como tal e do seu conteúdo objectivo. A neutralização da razão, que a despoja de qualquer relação com o conteúdo objectivo e do seu poder de julgar este último, e que a reduz ao papel de uma agência executiva mais preocupada com o "como" do que com o "porquê", transforma-a cada vez mais num simples mecanismo enfadonho de registar factos. A razão subjectiva perde toda a espontaneidade, produtividade e poder para descobrir e afirmar novas espécies de conteúdo - perde a própria subjectividade. Como uma lâmina de barbear frequentemente afiada, esse "instrumento" torna-se demasiado ténue e, afinal, inadequado até mesmo para dominar as suas tarefas formais». A emancipação do intelecto da vida instintiva não o livra do seu conteúdo concreto. Ao reduzir as suas ligações com este conteúdo, a razão subjectiva atrofia o intelecto e contribui para a crescente estupidificação em curso.
Horkheimer opõe ao princípio da dominação da natureza a ideia marxista de reconciliação do homem com a natureza, mas rejeita toda a filosofia que procure afirmar a unidade da natureza e do espírito: o monismo filosófico é censurado pelo facto de servir para entrincheirar e fortificar a ideia de dominação da natureza pelo homem. A dialéctica rejeita tanto o monismo como o dualismo e, nesta dupla-rejeição, resiste à sua própria imobilização: hipostasiar um dos pólos ou dos momentos do processo ou ansiar desesperadamente pela sua resolução final é abdicar da própria dialéctica. Horkheimer reitera a dicotomia metodológica das ciências naturais e das ciências sociais reabsorvidas na e pela Filosofia: as ciências naturais trabalham com fórmulas, enquanto a filosofia reexamina significados. O filósofo, que recusa o temor de que a capacidade de pensar possa ser tolhida de alguma maneira pelo sistema dominante, «não pode falar sobre o homem, o animal, a sociedade, o mundo, a mente, o pensamento, tal como o cientista da natureza fala sobre uma substância química qualquer: o filósofo não possui uma fórmula. Não existe fórmula. A descrição adequada, revelando o significado de qualquer desses conceitos, com todas as suas sombras e interligações com outros conceitos, é ainda uma tarefa prioritária. Aqui, a palavra, com os seus estratos semi-esquecidos de significado e associações, é o princípio director». Estas conexões devem ser repensadas e preservadas nos conceitos, que, longe de sairem limpos e novos em folha das oficinas da produção teórica, são fragmentos de uma verdade total em que se encontra o seu significado: a preocupação fundamental da filosofia é construir a verdade a partir desses fragmentos. Assim, a definição de liberdade é, segundo Horkheimer, a teoria da História e vice-versa. Em polémica com o neopositivismo lógico, Horkheimer repudia a lógica formal, em nome da lógica hegeliana, que «é tanto a lógica do objecto quanto a do sujeito; (que) é uma teoria abrangente das categorias básicas e das relações entre a sociedade, a natureza e a história». Horkheimer atribui à linguagem um papel determinante na compreensão dos fenómenos sociais e na desocultação da verdade, definida como adequação entre o nome e a coisa: «A filosofia é o esforço consciente para unir todo o nosso conhecimento e compreensão numa estrutura linguística em que as coisas são chamadas pelos seus nomes exactos». Walter Benjamin tinha elaborado uma teoria da linguagem, na base da qual estava a crença de que o mundo tinha sido criado pela palavra de Deus: o acto de criação de Deus é aqui visto como uma concessão ou doação de nomes e o homem, criado à imagem de Deus, recebeu o dom de nomear. Porém, os nomes do homem e os nomes de Deus não são exactamente os mesmos, porque, com a separação entre o homem e a coisa, se perdeu a adequação absoluta do discurso divino: o discurso humano traz a marca da corrupção que é a lógica formal, mediante a qual o homem nomeia as coisas por meio de abstracções e de generalizações. A tarefa do crítico redentor é precisamente libertar e recuperar essa linguagem de Deus, aprisionada e perdida nos textos humanos, através da descodificação hermenêutica das diversas aproximações inferiores do homem. Embora evite a fundamentação teológica da teoria da linguagem de Benjamin, Horkheimer aceita a noção da corrupção da linguagem «pura» (Karl Krauss): o discurso humano, produzido e difundido pela cultura de massas, tornou-se unidimensional e afirmativo (Marcuse), instrumental e ideológico, e, por isso, na sua condição de instrumento das forças dominantes e obscuras na sociedade administrada, incapaz de expressar a negação, isto é, de escutar a voz de protesto dos oprimidos. Cabe à filosofia chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes, sondando os testemunhos mudos da linguagem e os estratos da experiência que neles se preservam: «A linguagem reflecte os anseios dos oprimidos e a condição da natureza».
A Dialéctica é Filosofia-Mundo e filosofia-mundo negativa, no sentido em que todos os seus conceitos se referem à negação da totalidade antagónica da ordem existente: «O todo é, como escreve Adorno, o não-verdadeiro». Os grandes ideais da civilização ocidental - liberdade, justiça plena, igualdade, fraternidade - são os protestos da natureza contra a sua condição humilhada, perante os quais a filosofia assume duas atitudes: a renúncia à exigência de ser considerada como verdade definitiva e absoluta (1) e a admissão de que as ideias culturais fundamentais têm valores de verdade, que a filosofia pode avaliar, levando em conta o meio social antagónico onde se originam (2). Ao assumir estas duas atitudes, a filosofia opõe-se à ruptura entre as ideias e a realidade: «A filosofia confronta o existente, no seu contexto histórico, com a exigência dos seus princípios conceptuais, a fim de criticar a relação entre ambos e, assim, transcendê-los. A filosofia saca o seu carácter positivo precisamente da acção recíproca destes dois procedimentos negativos». A teoria crítica é geralmente caracterizada como crítica imanente, um procedimento dialéctico que Horkheimer, Benjamin, Adorno e Marcuse usaram de modo ligeiramente distinto. A negação, que exerce um papel fundamental na dialéctica, tem duas faces: (1) negação das pretensões absolutas da ideologia dominante - crítica da ideologia - e (2) negação das exigências imperiosas da realidade estabelecida. A dialéctica debruça-se sobre os valores existentes e insere-os num conjunto teórico que revela a sua relatividade. E, visto que sujeito e objecto, palavra e coisa, não podem ser conciliados nas actuais circunstâncias sociais e económicas, a dialéctica usa o princípio de negação para tentar salvar as verdades relativas do naufrágio dos falsos princípios fundamentais. A essência do pensamento dialéctico reside na compreensão da negatividade e da relatividade da ordem estabelecida e da sua cultura de autopreservação. Mas a posse desse conhecimento não constitui - por si só - a superação da totalidade antagónica existente. A dialéctica marxista é completamente distinta da dialéctica hegeliana, na medida em recusa o princípio de identidade, em nome da diferença entre o ideal e o real e entre a teoria e a praxis. O que está em jogo na situação presente é saber se no futuro irá predominar a tendência barbarizante ou a visão humanista: «A lógica da história é tão destruidora como os homens que produz: onde quer que penda a sua força de gravidade, reproduz o equivalente do infortúnio passado. O normal é a morte». Ou, como Adorno esclarece mais adiante, «a enfermidade actual consiste justamente na normalidade». A filosofia não pode determinar o rumo da história e muito menos garantir de antemão o triunfo da visão humanista, mas, ao «fazer justiça àquelas imagens e ideias que, em determinadas épocas, dominaram a realidade, exercendo o papel de absolutos, e que foram abandonadas no curso da História», pode funcionar como um correctivo da História. Como memória e consciência da espécie humana, a filosofia pode ajudar a evitar que a marcha da humanidade mergulhe na catástrofe: a sua função consiste em auxiliar as pessoas a reconhecer a desproporção entre o peso do mecanismo esmagador do poder social e o das massas atomizadas. A negação determinada, a denúncia da racionalidade instrumental que mutila a humanidade e impede o seu livre desenvolvimento, repousa, como diz Horkheimer, na confiança no homem.
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Prós e Contras: Sismos - Estamos preparados?

«Os homens e os povos só são grandes pela Dor. A Alegria banaliza e adormece, a Dor inquieta e dinamiza. /A Alegria atravessa o mundo em marcha; a Dor bate às portas a esmolar companhia. O mendigo, que atravessa a aldeia, de casal em casal, é a dor que lembra aos homens o quanto de impenetrabilidade e solidão eles lançaram sobre a vida. E ele diz que a indiferença do Céu para os nossos desejos não é maior que a nossa incompreensão de alma para alma. /Nunca uma grande alma se sentiu desgraçada no meio da Dor; e, aí, a alma de Óscar Wilde atingiu a beleza divina, a altura do pensamento, a simplicidade de infinita fundura. /Há quem, com o pretexto de amar a vida, dê ao paganismo a superioridade da Alegria sobre o cristianismo como religião da Dor. Nem é outro o motivo das teorias de Nietzsche. Sim; o cristianismo é a grande religião da Dor. De tal modo ele acolhe os pobres e os miseráveis que não nos acode a lembrança da mais luxuosa catedral ou da mais modesta capela sem um longo círculo de escorraçados da Alegria, implorando amor e piedade. /Amar a vida é compreendê-la, alargar o seu círculo de acesso para lá das vitórias naturalistas da selecção, dar-lhe sentido que se não perca e valha em absoluto e substância. Se o paganismo vibra de infantil Alegria naturalista, o cristianismo é a Alegria reconquistada, o sol depois da tempestade, a dignidade e certeza da vida, de olhos abertos e atentos na face da morte. A Dor é o caminho da redenção. Para salvar as almas da treva exterior e da morte, preciso era ter delas um conhecimento que as talhasse em relevo inapagável; só a Dor leva os olhos ao fundo do abismo e arranca a profundidade à luz da superfície». (Leonardo Coimbra, A Alegria, a Dor e a Graça.)
Este texto de Leonardo Coimbra, um dos filósofos da Escola do Porto, responde às questões fundamentais que Fátima Campos Ferreira pretende colocar aos protagonistas de uma eventual catástrofe sísmica nacional. O debate Prós e Contras de hoje (18 de Janeiro) será dedicado ao sismo no Haiti que provocou e continua a provocar caos e dezenas de milhares de mortos, mediante uma simulação deslocada e alarmista: E, se o sismo ocorresse em Portugal, estaríamos e estamos preparados? Colocada deste modo, a questão é, desde logo, dirigida aos burocratas da protecção civil e dos serviços anexos e exige apenas uma resposta superficial, deixando escapar a lição essencial do sismo no Haiti: a fragilidade da vida humana e a facilidade com que ela mergulha e se aniquila a qualquer momento no caos e na morte. Leonardo Coimbra estabelece uma distinção entre cultura da alegria e cultura da dor, de modo a mostrar que a actual cultura da alegria infantilizada ou da loucura erótica produz uma perturbação perigosa da economia prazer-desprazer que induz os homens a perder a capacidade de empreender trabalhos difíceis ou a pensar a longo prazo: a satisfação imediata das necessidades e dos desejos atrofia literalmente a mente e os seus órgãos cognitivos, privando os homens da alegria de viver. O homem que evita a todo o custo o sofrimento conhece o gozo, mas não conhece a alegria, e a sociedade que se entrega, como a nossa, à loucura erótica adormece e paralisa num tédio mortal. O homem habituado ao conforto ou à vida fácil não pensa no futuro e não recorda o passado, preferindo viver o presente como se fosse uma eternidade, a sua pequena eternidade, da qual é ocasionalmente arrancado pelas catástrofes naturais.
O sismo no Haiti deve despertar-nos dessa pequena eternidade em que vivemos afogados, cheios de ilusões e de pensamentos não pensados, alertando-nos para a nossa verdadeira condição ontológica de seres sem-abrigo. O que interessa debater não é o risco sísmico do solo nacional, as regiões que podem ser mais afectadas pela ocorrência de um terramoto, o estado da ciência e a imprevisibilidade dos sismos, a organização nacional de um plano da protecção civil e a eventual resposta dos Hospitais, Bombeiros, INEM e empresas de água, electricidade e gás, mas sim confrontar as pessoas com a morte e a fragilidade da vida humana e da própria cultura perante uma catástrofe natural. Com a análise aprofundada das imagens de caos que nos chegam do Haiti, o debate pode e deve amplificar a insegurança ontológica já vivida pelos portugueses, não por causa de um eventual sismo, mas por causa do desemprego, da regressão cognitiva e da pobreza, e prepará-los para a necessidade de implementar um outro modelo de sociedade que garanta trabalho para todos, porque «só quem trabalha se sente livre e realmente existente» (L. Coimbra). Não precisamos simular uma catástrofe natural para saber o que é a insegurança ontológica: os portugueses já vivem os efeitos negativos de uma catástrofe social, o desemprego e o medo de ficarem efectivamente sem-abrigo. Há muitas maneiras de morrer sem deixar a vida e a morte social é uma delas: a corrupção de uns gera a passagem de muitos da condição fundamental de sem-abrigo ontológico para o terrível estado de sem-abrigo social. Portugueses e haitianos vivem essa terrível transformação: precisam aprender a regressar a si mesmos e, a partir do seu núcleo essencial, revoltarem-se violentamente, enquanto indivíduos, contra o sistema social que gera miséria e pobreza. Só podemos construir uma nova sociedade, liberta da corrupção e da exploração do homem pelo homem, destruindo esta sociedade que nos nega a dignidade de uma existência autêntica: o homem sem emprego e sem trabalho não consegue ser plenamente livre e existir realmente como pessoa. Um desempregado ou inactivo é um morto-vivo que, devido à corrupção de uma minoria, pode ser expulso do seu lar para a rua. A apropriação capitalista do mundo e dos seus bens gera necessariamente a pobreza: aquilo que pertence a todos passa a ser propriedade de meia dúzia de corruptos e os que foram privados estão sujeitos a ficar materialmente sem-abrigo e mentalmente arruinados. O capitalismo é uma violência permanente que se abate sobre o mundo e a vida, da qual o homem só pode libertar-se aprendendo a desobedecer.
O voo caótico da borboleta sísmica do Haiti chegou ao debate moderado por Fátima Campos Ferreira: um verdadeiro caos cognitivo e neurosísmico que, segundo João Duarte Fonseca, tem um atraso de 40 anos. Foi um debate de sismogénese mental e cognitiva na horizontal e na vertical, isto é, um delírio sísmico lisboeta que, a começar por António Ribeiro, contagiou todos - Carlos Sousa Oliveira, João Luís Gaspar (Açores), Alfredo Campos Costa e Adérito Serrão (Instituto de Meteorologia), com excepção de João Duarte Fonseca que denunciou, já na segunda parte do debate, essa longa conversa de "baratas-tontas". Os chamados especialistas nacionais não estudam as falhas geológicas e não possuem estudos actualizados sobre a geologia portuguesa, como se viu pelo mapa envelhecido dos solos de Lisboa que engasgou o comentário de Alfredo Campos Costa. Como gerir a catástrofe e o risco sem conhecimentos geológicos aprofundados e actualizados? Porém, a denúncia lúcida de Duarte Fonseca não impediu que outras figuras dessem o seu contributo voluntarioso, cheio de impulsina - a hormona especificamente portuguesa, para um debate que passou rapidamente da geologia para a engenharia (Fernando Santos), da gestão da catástrofe para a gestão do risco e a cultura da segurança, a partir de um cenário de destruição haitiana a ocorrer no futuro próximo em Lisboa, o cenário imaginado por Fátima Campos Ferreira. Aliás, Luís Gaspar - sentindo-se ofendido na sua dignidade vulcânica - reforçou o seu ego quando falou da existência de bons centros de geologia em Portugal, em especial do seu centro de excelência. Tudo foi reduzido a um jogo de palavras impulsivo e irresponsável: um centro de excelência não deixa de ser excelente, mesmo que não produza conhecimentos e resultados públicos que possam ser claramente partilhados pelos portugueses. A excelência é uma dessas palavras mágicas que engorda e dilata alguns tristes e magros luso-egos, mas onde tudo é excelente, nada é excelente, como confirmou o próprio teor - ou ausência dele! - do debate. As regiões sísmicas são, claro, Lisboa, Algarve e Açores: o que fazer em caso de ocorrer uma réplica da mesma magnitude do terramoto de 1755 (9) em Lisboa? A Protecção Civil anseia pelo teste das suas brincadeiras com simuladores (Susana Pereira da Silva), os bombeiros (Fernando Curto) reagirão de modo automático e a GNR irá prender os ladrões ocasionais obedecendo ao comando. O INEM articula-se ao plano inexistente e o Hospital de Santa Maria (anos 40 de má construção!), depois de sofrer uma forte destruição, tentará manter o serviço de emergência. Enfim, todos esperam funcionar num fluxo de comunicação reactiva e automática, mas, no caso de falência de alguns dos elos da cadeia de comando, provocada talvez pela morte dos seus responsáveis ou por uma falha de energia e das telecomunicações, será necessário apelar à ajuda do Porto e de Coimbra, como lembrou Fátima Campos Ferreira. Lisboa que já sonha com novos recursos financeiros do Estado para alimentar o seu delírio sísmico, as suas simulações e os seus simulacros baudrillardianos, precisa ser socorrida pelo Porto, mas, para que isso sucedesse, seria necessário investir nos serviços de socorro do Porto e haver um plano nacional que não existe. Os técnicos mortais - todos eles eternos candidatos aos recursos do Estado que desejam usar para brincar às simulações ou para financiar reuniões científicas e tertúlias a que não comparecem - foram finalmente forçados a reconhecer que Portugal não está preparado para fazer face à catástrofe sísmica conspirada e pintada com tons sinistros por Fátima Campos Ferreira e vista como uma "mera teoria" ou modelo (Fernando Curto), acabando por abraçar o bom-senso de Duarte Fonseca.
João Duarte Fonseca foi peremptório: não há resposta organizada e eficaz para minorar os efeitos desastrosos de um sismo de grande intensidade. O cidadão tem o direito de esperar que as instituições do Estado cumpram as suas obrigações, mas, antes dessa ajuda ocorrer, as vítimas devem ser socorristas de si próprias, porque, nessas situações de caos e de destruição, cada um de nós é o seu próprio agente de protecção civil. O socorro de proximidade é aquele que começa logo a funcionar, muito antes de chegar a ajuda internacional e dos serviços do Estado: os vizinhos ajudam os vizinhos, os conhecidos ajudam os conhecidos, os amigos ajudam os amigos, enfim os familiares socorrem os familiares. Quanto à situação que se vive no Haiti, pouco foi dito, mas o objectivo do debate não era o sismo nesse país pobre do hemisfério Norte, mas a simulação de um sismo desastroso em Lisboa para testar verbalmente a nossa preparação para fazer frente a uma tal situação de caos sem segurança garantida. Lisboa exige ao país aquilo que ela lhe nega - espírito de entreajuda nacional e desenvolvimento nacional equilibrado. Estará o país nesse cenário de destruição total de Lisboa com vontade de a ajudar? Se o Benfica é Portugal, como disse na Madeira o diabo-chefe, então todos nós que não somos benfiquistas não somos portugueses, incluindo os sportinguistas que moram na capital. Como disse André Malraux, no caminho da vingança encontra Portugal não-benfiquista - Portugal aberto ao futuro - o sentido da sua vida. A catástrofe natural pode ajudar a libertar Portugal do fascismo encarnado. A sismogénese social e cultural - a desejada - poderia finalmente ajudar a configurar um novo Portugal liberto da corrupção encarnada fascizante e nazi. As catástrofes naturais podem funcionar como promotoras da renovação e da modernização. (Leia aqui este post dedicado ao mesmo debate.)
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Escola do Porto e Antropologia Existencial

«Mas um outro e mais sério perigo vai levantar o uso da inteligência nas sociedades primitivas - a descoberta da Morte. O animal vive sem esse conhecimento, mergulhado no mundo pelas sensações, ocupando a consciência com a acção, obturando o clamor do passado na adaptação de agora e vivendo o futuro como presente na ocupação sucessiva dos caminhos das tendências ou instintos a satisfazer.
«Só o homem pensa e conhece a Morte. Ou porque seja, com Scheler, o único animal que objectiva, dizendo eu e o Mundo; ou porque, com Heidegger, viva um tempo primordial onde o passado se acusa no presente e onde o futuro se abre à projecção da sua angústia.
«Heidegger encontra, com efeito, na existência humana perdida no mundo e na existência humana reencontrando-se, os caracteres fenomenológicos da existência. A fenomenologia da existência é, para ele, a ontologia da realidade. Existência, que se encontra na existência humana, pois que nenhuma existência há que não esteja nesta envolvida - ele o conclui por um renovo do argumento ontológico de Santo Anselmo. O primeiro carácter dá a inquietação, o mal-estar e o medo, que o homem banal adormece na uniformidade do mal de todo o Mundo. O segundo carácter dá a angústia perante o desamparo da sua existência finita e humilhada. Esta angústia é, sobretudo, a angústia perante a Morte, temporalização primordial, em que o passado e o presente se englobam num verdadeiro futuro». (Leonardo Coimbra)
Este texto de Leonardo Coimbra, retirado da sua obra inacabada O Homem às Mãos com o Destino, revela a superioridade filosófica e científica dos pensadores portuenses em relação aos seus críticos lisboetas: o Porto Culto (Sampaio Bruno) pensava de modo ousado e profundamente actual, enquanto os seus críticos lisboetas teciam anacronismos estupidificantes ao abrigo de um racionalismo idealista e frouxo, protagonizado por António Sérgio, entre outras figuras ineptas para o pensamento filosófico. Os ilustres portuenses, em especial Sampaio Bruno, pensaram com rigor a condição nacional de estar exilado na sua própria Pátria, mas, como depressa compreenderam, esta condição não é apenas um traço tipicamente português, mas também e fundamentalmente uma estrutura antropológica: o homem é, por natureza, o ser-em-risco (Herder, Gehlen, Rilke), isto é, o único ser cuja existência se encontra perpetuamente ameaçada, e, no âmbito nacional, o homem portuense - o cidadão do Porto - é um ser duplamente em risco, pelo facto de ser português e, acima de tudo, portuense: Ser portuense é ser um estrangeiro nesta terra inóspita e sinistra a que se chama Portugal. Sampaio Bruno pensa a condição portuense em analogia com a condição dos judeus expulsos da pátria: o portuense é, como o judeu na diáspora, um estrangeiro em solo pátrio, mas esse facto não é negativo; pelo contrário, dá-lhe a distância suficiente para garantir a objectividade da sua perspectiva, fazendo dele um homem universal (Teixeira de Pascoaes). Ora, é na compreensão deste exílio portuense em terras de Portugal - «o calvário do exílio mental adentro de fronteiras» (Joel Serrão) - que devemos procurar as estruturas fundamentais da antropologia filosófica da Escola do Porto, libertando-a dessa violência selvagem que se chama filosofia portuguesa (Álvaro Ribeiro): «Ser portuense de cerca de 1870 é a primeira condição que em tal inquérito (das condições culturais a que reagiu o pensador portuense) importa relevar. Falta-nos ainda, entre tanta outra coisa que nos falta, uma fundamentada sociologia cultural dos vários meios portugueses. Mas a quem a ideia tenha tentado já, não é difícil distinguir as feições culturais sobrassalientes de Braga, Porto, Coimbra, Lisboa de 1870, por exemplo. No burgo portuense de então, e de algumas décadas atrás, pressente-se um sobressalto cultural, em desfasamento com formas tradicionais, que poeticamente se cristalizará na obra de Guilherme Braga (outro esquecido!), anunciador de Cesário, de Gomes Leal, de Guerra Junqueiro, e, até, de António Nobre, e culturalmente nas obras de Amorim Viana e de Bruno, a quem se não poderá atribuir a responsabilidade de não terem tido, nem então nem agora, continuadores à sua altura. Esse Porto tão português mas também avidamente interessado pelas novidades do estrangeiro, que o comboio depunha rapidamente nas mãos dos moços que, em política, em poesia e em filosofia, sonhavam fraternidade, eis uma das chaves para a compreensão do pensamento de Bruno» (Joel Serrão). Se não levarmos a cabo este movimento de separação e de afirmação da autonomia da Escola do Porto no contexto cultural nacional, não podemos pensar a Filosofia em língua portuguesa. Pensar o exílio de si mesmo e do Porto na Pátria é já pensar o homem universal como náufrago. Lançado sem outra opção no mundo pátrio que o hostiliza, o homem portuense começa por o ver como um poder inimigo e limitador da liberdade dos seus movimentos: Portugal surge-lhe como alguma coisa que limita a sua existência e a realização dos seus sonhos diurnos.
Aquilo que Sampaio Bruno pensou em termos de exílio foi, mais tarde, tematizado por Heidegger em termos de apatridade. Na Carta sobre o Humanismo, Heidegger escreve: «A apatridade torna-se um destino do mundo. É por isso que se torna necessário pensar este destino sob o ponto de vista ontológico-historial. O que Marx a partir de Hegel reconheceu, num sentido essencial e significativo, como alienação do homem, alcança, com as suas raízes, até a apatridade do homem moderno. Esta alienação é provocada e isto, a partir do destino do ser, na forma de Metafísica, é por ela consolidada e ao mesmo tempo por ela mesma encoberta, como apatridade. Pelo facto de Marx, enquanto experimenta a alienação, atingir uma dimensão essencial da história, a visão marxista da História é superior a qualquer outro tipo de historiografia. Mas porque nem Husserl, nem, quanto eu saiba até agora, Sartre reconhecem que a dimensão essencial do elemento da História reside no ser, por isso, nem a Fenomenologia nem o Existencialismo atingem aquela dimensão, no seio da qual é, em primeiro lugar, possível um diálogo produtivo com o marxismo». No seio da Escola do Porto, coube a Sampaio Bruno estabelecer esse diálogo produtivo com o marxismo, com o objectivo de elaborar uma filosofia da História de Portugal no âmbito da História Mundial. O anti-positivismo de Sampaio Bruno, aliado à sua atracção pelo marxismo, lido à luz da Cabala, da qual resultou o esboço de uma interpretação económica da História de Portugal, aproxima a sua filosofia da história da filosofia do Princípio Esperança de Ernst Bloch: o humanismo da esperança histórica que Leonardo Coimbra retoma do humanismo cristão, encontra-o Sampaio Bruno na corrente quente (Bloch) do marxismo. Tal como Ernst Bloch, Sampaio Bruno opõe às teorias do gradualismo e do progresso científico e tecnológico enquanto libertador da humanidade uma interpretação messiânica secularizada da história, atribuindo ao homem a tarefa de salvar a humanidade, a natureza e o próprio Deus: a esperança é integrada nesse amplo projecto político de libertação universal, que, fundado no conhecimento rigoroso do mundo, aguarda activamente a realização de um futuro melhor - bonum futurum. O pensamento verdadeiramente genial de Sampaio Bruno gira em torno da sua ideia de Deus: «Deus é omnisciente actualmente, mas não é omnipotente». A noção da não omnipotência de Deus no mundo actual permite-lhe não só livrar Deus da responsabilidade pelo mal existente, como fez mais tarde Hans Jonas para pensar Deus depois de Auschwitz, como também afirmar que «o homem não está neste mundo nem para saber nem para gozar», mas sim para «ajudar a evolução da Natureza» (Novalis): «Trabalhando, para saber, a fim de poder», «o homem tem de dar contas do supremo dever que lhe incumbe, o dever para com a natureza inteira. Libertando-se a si, libertando os seus irmãos de espécie, ele contribuirá já para a libertação universal». O fim único e supremo do homem neste mundo é eliminar o mal existente, ajudando a evolução da natureza e resgatando Deus, sem no entanto pretender realizar o infinito no finito. A grande política - a luta fracturante contra o mal existente - implica uma moral cósmica - isto é, ecológica - que Sampaio Bruno retoma de Guerra Junqueiro, para mostrar a falsidade da moral religiosa, da moral filosófica e da moral ascética. A modernização de Portugal pode e deve ser levada a cabo sem o desencantamento do mundo.
A filosofia elaborada pela Escola do Porto vacila entre a Filosofia da Vida e a Filosofia da Existência, mas nessa vacilação fértil e criadora predomina a tendência vitalista que foi clara e exaustivamente tematizada por Leonardo Coimbra, o mais bergsoniano de todos os filósofos portuenses: «O que é a evolução? A evolução é, antes de mais, uma hipótese científica de que as ciências biológicas não podem prescindir. O como da evolução e o seu processo é que são discutíveis; a evolução é um facto e uma hipótese indispensável» (L. Coimbra). Leonardo Coimbra constrói o seu sistema criacionista em diálogo produtivo com a filosofia de Henri Bergson ou mesmo com o organicismo ampliado de Whitehead, sem abdicar do racionalismo aberto e da dialéctica da ciência: «O biologismo bergsonista é, pois, uma metafísica, uma ontologia, e não um simples legítimo protesto irracionalista à Schopenhaeur e Nietzsche contra a Razão, prisioneira de si mesma, que é a Razão de Kant» (L. Coimbra). A recepção portuense da filosofia de Nietzsche permitiu aos seus filósofos captar uma noção profunda que foi posteriormente explicitada por Heidegger como o culminar final - ou o fim - da metafísica. Leonardo Coimbra, tal como Guerra Junqueiro, Sampaio Bruno e Teixeira de Pascoaes, demarca-se aqui do irracionalismo subjacente à filosofia da vontade de poder de Nietzsche, interpretada como um humanismo antropolátrico: «O esteticismo dum Nietzsche, descendente intelectual de Schopenhauer, é-o apenas em proximidade e acidente histórico e geográfico, pois é a mais alta afirmação da vontade de domínio, dando aos impulsos da vida o direito de tudo servirem à saúde, à alegria e à força biológica. Nietzsche é um protesto contra o objecto matemático-físico em nome do instinto, da propulsão das formidáveis latências biológicas. Mas essas forças, que mais não são que a vontade indisciplinada e colérica, desespiritualizada e dissipada em desejos e violências, são ainda as forças de um homem dono e conquistador universal. Tanto Nietzsche é apesar de tudo um cientista que aceitará o eterno retorno, logo que possa levar o entusiasmo da acção até à embriaguez de infindáveis repetições. Nietzsche perde-se na sombra da sua loucura, mas a Schopenhauer é só a negação total que o pode salvar» (L. Coimbra).
O pensamento de Leonardo Coimbra, em constante andamento de aprofundamento e de ampliação, culmina com a publicação da sua obra antropológica fundamental - A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre, donde retirámos a última citação. Em Portugal, Teixeira de Pascoaes assume a crítica do cientismo da dispersão moderna e do maquinismo, opondo a procura ao encontro, o desejo à posse, enfim o Ser ao Ter. Leonardo Coimbra retoma a crítica do clericalismo científico de Pascoaes, fazendo dela uma chave de leitura crítica da história da filosofia moderna, desde Descartes - o seu fundador - até Bergson e Lenine, com incursões pela filosofia antiga e medieval. Esta leitura crítica do pensamento moderno toma a forma de uma crítica dos humanismos idealista e antropolátrico, em nome do humanismo cristão ou teocêntrico. Toda a filosofia moderna e contemporânea é dominada pelo humanismo antropolátrico, que «reduz o Universo a uma integral referência, subordinação e dependência do homem» e que «só é nítido depois do cristianismo e em consciente negação de Cristo, de Deus e do espírito, deixando o homem reduzido a uma vontade-força, a uma exclusiva vontade de domínio exaustivo e conquistador». Leonardo Coimbra identifica o humanismo antropolátrico com o cientismo, que, encarado como uma idolatria do homem e da produtividade indefinida, é promovido pelo «imperialismo do querer científico, inteiramente desviado do seu verdadeiro destino de elemento da cultura para exclusivo cultural». O cientismo exclusivista que resulta da excessiva estima da cultura científica fomentada pela Modernidade conduziu a uma redução do todo às conquistas do homem, isto é, a uma referência da realidade à vontade humana: o homo sapiens - o homem positivista de Comte - aparece como o verdadeiro tipo de homem, que tem, diante de si, uma natureza oferecida à sua omnipotência dominadora. A concepção do homem como centro e senhor da realidade consuma-se no materialismo dinâmico: o cientismo degrada-se e faz-se tecnicismo.
Heidegger pensou mais tarde a essência da técnica em termos muito próximos da crítica do cientismo de Leonardo Coimbra: «A essência do materialismo esconde-se na essência da técnica; sobre esta, não há dúvida, muito se escreve, mas pouco se pensa. A técnica é, na sua essência, um destino ontológico-historial da verdade do ser, que reside no esquecimento». A técnica torna o ente manifesto e, enquanto forma da verdade do ser, funda-se na história da metafísica, como a sua fase final em que todo o ente aparece como a matéria de um trabalho, ou, como diz Coimbra, como matéria a ser trabalhada por uma razão dominadora e exploradora. Na peugada de Bergson, Leonardo Coimbra separa a invenção científica da invenção técnica, o que lhe permite pensar a essência do delírio do industrialismo como a orgia da invenção técnica numa sociedade entregue ao capitalismo selvagem. Na era da técnica, o humanismo niilista ou exaustivo é o último extremo do humanismo antropolátrico: «O homem é tudo. O resto, nada mais que matéria oferecida à sua ambição e conquista: - extroversão integral, expansão da vontade do homem sobre a anónima fisionomia do Todo; extroversão da mola que se distende, da toalha de água que irrompe, submergindo e dissolvendo tudo. É o gesto dum querer avassalador, acompanhado duma insaciável vontade, que, a cada conquista, sente uma força propulsora inesgotada, impelindo a novas e mais audaciosas conquistas. A cada movimento de expansão vencedora a vontade aumenta de ambição e cobiça, como se a mola ao distender-se readquirisse, pelo acaso dos encontros, novas forças de elasticidade acrescendo-lhe as possibilidades de novas expansões. Este humanismo de conquista, exaustivo de tudo o que não é homem ou humano serviço, é a forma da vontade do cientismo técnico, como o foi do homem essencialmente mágico». Da devastação da natureza e do seu domínio técnico faz eco este Soneto a Orfeu de Rilke:
«A máquina ameaça todo o conseguido, quando
se atreve a ser no espírito e não no obedecer.
Pra que a hesitação mais bela da mão magnífica não resplandeça
corta ela mais rígida a pedra para o edifício mais resoluto.
«Em nada fica atrás, para que uma vez lhe escapemos
e ela, luzente de óleo, se pertença na fábrica silenciosa.
Ela é a vida, - supõe saber mais que ninguém,
ela ordena e cria e destrói co'a mesma decisão.
«Mas para nós o existir é ainda encantado; em cem
lugares é ainda origem. Um jogo de puras
forças que ninguém toca que não ajoelhe e admire.
«Palavras extinguem-se ainda ternas ao tocar o Indizível...
E a música, sempre nova, das pedras mais frementes,
ergue no espaço inutilizável a sua casa divinizada».
Neste Soneto a Orfeu, Rilke contrapõe à exactidão da máquina a mão hesitante mas criativa do artesão, de que o poeta, o construtor da casa divinizada da palavra, é o mais alto representante: «A máquina moderna parece, por vezes, um volante louco, girando nas imensas voltas da sua inércia e levando os homens esfarrapados e feridos na vertigem da sua velocidade» (L. Coimbra). A Escola do Porto atribui ao Homem um lugar de tal modo privilegiado no esquema da evolução criadora ascendente que lhe cabe tornar o universo consciente e salvá-lo: «O lugar do homem é dum certo modo - o modo humilde - o centro da criação. O coração humano é como o filtro onde a natureza se purifica para servir a vida do Espírito. Somos semeados em corpo de morte e corrupção, ressuscitaremos em incorruptível corpo de imortalidade. A Parúsia marca a conclusão de toda a viagem do homem e da natureza desentendidos (porque o homem se afastou de Deus), viagem de inquieta procura, na névoa, de Deus de que o homem se separou, das linhas da harmonia duma natureza obscurecida por sua pecaminosa vontade de domínio e orgulho» (L. Coimbra). A tensão entre filosofia da vida e filosofia existencial que caracteriza a filosofia da Escola do Porto dificulta a explicitação das estruturas formais da sua antropologia filosófica. Ao abraçar o humanismo cristão, Leonardo Coimbra permite pensar a sua antropologia como uma interpretação existencial do homem, de cunho marcadamente personalista e dialógico: «O homem real não é o puro homem natural, mas sim o homem que optou e opta, o homem que usou mal a sua liberdade e que, enredando as suas relações com os seres e os mundos, as suas universais relações, vive longe de Deus e em desarmonia com o Universo. Não é ainda o homem decaído do estado de natureza, pois já vimos que tal estado é meramente abstracto e não explicaria a fome de infinito e eterno, a transfiguração e transmutação da vida que faça esta substancial, de lábios colados a uma fonte capaz e não em permanente caminho por entre fontes insuficientes para a sede que transporta. O homem real é o homem decaído dum estado sobrenatural, em que a natureza, dada em liberdade, pela liberdade se possui aumentando-se no amor a Deus ou diminuindo e perdendo-se em rebeldia e afastamento. Este o significado do pecado original. O homem autêntico, o homem da realidade é o ser de liberdade merecendo ou desmerecendo a vida deiforme, e, quando a não mereça, descendo da liberdade para a natureza até minguar e obscurecer a própria natureza no que ela teoricamente seria sem a Graça, que a põe em condições de escolher o Infinito Bem ou de Ele voluntariamente se afastar». O homem autêntico é um desterrado do mundo edénico para o mundo de prova, da dor, da angústia, do trabalho, que pode ser de perda ou de resgate. O criacionismo de Leonardo Coimbra é, desde logo, uma filosofia da liberdade e, neste aspecto, distingue-se claramente da filosofia biológica de Bergson: o primeiro é uma ontologia espiritual que opera a integração do ser no plano espiritual, enquanto a segunda é, primeiramente, uma ontologia vitalista que se abre depois à liberdade e à vida inventiva do Espírito através da religião mística ou dinâmica. Com o recurso à tese tomista da analogia do Ser, Coimbra mostra que a vida humana não é uma coisa, mas ser de liberdade, convocado e chamado ao mundo e à vida para tomar uma decisão responsável (Heidegger): a opção entre o Bem e o Mal, entre a proximidade de Deus e o afastamento de Deus, entre o resgate e a perda, enfim entre a existência autêntica e a existência inautêntica. Leonardo Coimbra elaborou uma teoria da Queda e do Resgate, que, nas suas últimas obras, recupera a teoria cristã do pecado original. Mas, se recuarmos aos seus escritos anteriores, onde expõe uma teoria social do conhecimento, fortemente marcada pela Escola Sociológica de Durkheim, levando em conta as suas leituras críticas de Schopenhauer e de Antero de Quental, podemos definir a perda - a vida inautêntica - como a queda da vida pessoal nas ideias e nas formas padronizadas de comportamento que a sociedade hipercapitalista impõe aos seus indivíduos através da organização social do seu mundo da vida. A Graça - Deus que habita o nosso núcleo essencial, não como hóspede mas como hospedeiro - fortalece o coração do homem, levando-o a assumir a missão política de libertar os outros, libertando-se a si mesmo: a Alegria resulta da libertação do núcleo essencial desse hóspede estranho e sinistro - a sociedade capitalista interiorizada - que pretende colonizá-lo e forçá-lo a agir em conformidade com o acordo social estabelecido que imobiliza a história e a sociedade num coisismo social e ideológico. Neste sentido, a filosofia tardia de Leonardo Coimbra é resgatada dessa prisão que seria o regresso a alguma forma de neotomismo, aproximando-a da filosofia tardia de Horkheimer que encerra um pensamento que tende para o teológico, isto é, para Deus, sem o qual não podemos salvar um sentido absoluto: «Deus é presente nas almas pelo acto primeiro da sua dádiva, mas nenhuma alma, porque é liberdade, existe sem aceitação e apropriação livre do seu ser de natureza e muito menos da sua possível vida sobrenatural. A opção dará o afastamento ou a aproximação de Deus, essa última determinação de todo o seu ser inclinando-se, ao sopro da Graça, em franca abertura da alma, é a marcha, em fé e esperança, de toda a vida dada à Caridade e em seu devotado serviço. Livremente, as almas se inclimam e, como caravelas animadas de força íntima e própria, vão de velas pandas no largo mar da vida, cheias de Graça, demandando o porto e abrigo seguro, o verdadeiro oceano sem limites de praias, de altura ou profundidade, - o mar da vida eterna e infinita» (L. Coimbra).
Kierkegaard estabeleceu uma distinção entre pensador existencial ou subjectivo e pensador sistemático ou abstracto, de modo a demarcar o seu conceito de existência da filosofia hegeliana: o pensador abstracto move-se numa zona de pensamento puro, sem ter em conta as necessidades particulares do seu existir, enquanto o pensador existencial se encontra ao serviço da sua própria existência. Teixeira de Pascoaes identifica-se nitidamente com o pensador existencial, o que lhe permite meditar a sua própria poesia e apresentar o seu homem universal como uma concepção existencial do homem. O conceito kierkegaardiano de existência remonta à distinção clássica entre a essentia (aquilo que uma coisa é em si, o seu íntimo quid) e a existencia (o existir dessa coisa, o seu quod) dos seres, para redefinir a existência como o existir do homem, tal como ele se dá e se afirma no terreno da vivência existencial. A existência aplica-se somente ao homem e, quando afirma que o mundo sem o homem seria absoluta inexistência, Teixeira de Pascoaes reserva este termo para significar exclusivamente a existência humana. Cada um dos pensadores da Escola do Porto pensa a existência humana de modo peculiar: Guerra Junqueiro pensa-a como regresso ao lar, Sampaio Bruno pensa-a como exílio e Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra pensam a existência humana como liberdade que se apreende a si mesma na referência a uma transcendência que é Deus, mas todos eles apreenderam a característica essencial que permite separar a existência da vida. A existência está para além de todas as determinações da vida e das coisas do mundo, como algo essencialmente indivisível que só cessa e desaparece quando o homem morre ou enlouquece: o homem pode perder tudo, incluindo a posse dos seus membros, o uso dos seus sentidos ou mesmo todo o seu físico defeituoso, sem por isso perder a última e mais profunda camada do seu ser, para a qual tudo é exterior, não essencial e estranho. A existência ou se apreende como um todo ou se perde como um todo. O despojamento, bem como a auto-libertação, a respeito de todas as coisas e da esfera do próprio corpo não afecta esse núcleo essencial que cada um de nós vive como uma estranheza cruel da alma para consigo ou como um seu recuo forçado para dentro de si mesma, até aos últimos confins do solitário eu, depois de perdido tudo o que o prendia à vida. Esta experiência íntima que nos confronta com a estranheza de tudo o que é familiar explicita-se no fenómeno da angústia perante o desamparo - o abandono - da existência finita e humilhada do homem e da sua atitude perante a morte. O mundo é-me estranho. Os outros - próximos ou distantes - são-me estranhos. A alegria é a minha alegria, o sofrimento é o meu sofrimento, a doença é a minha doença e a morte é a minha morte. A existência é a minha existência. A minha alma é uma estranha neste mundo que sou forçado a partilhar com outros que me são estranhos. Na estranheza radical do mundo e na angústia perante a morte, descubro o meu núcleo essencial que já habita a Casa de Deus. A experiência do nada ocorre, como compreendeu Leonardo Coimbra, na religiosidade oriental, tal como foi tematizada por Schopenhauer: o espírito asiático defende a supressão da vontade de viver, mediante a adopção de uma atitude de pura contemplação e a transmutação de todo o esforço em pura passividade. Buda recomenda aos seus discípulos o despojamento de tudo o que seja material, de modo a alcançarem o Nirvana, a única redenção a esperar para o sofrimento deste mundo. Porém, na filosofia da existência, a experiência do nada não visa a pura passividade; pelo contrário, a vivência do nada, como pano de fundo inóspito e sombrio que continuamente destrói todas as ligações, já fixadas e tornadas habituais, com a vida, coloca o homem num permanente estado de tensão, que o chama ao sentimento da sua missão e o força a tomar uma decisão responsável: optar pela flecha que é a sua existência autêntica. O homem autêntico não se perde no nada, como sucede com o budista asiático que se perde e se absorve no Nirvana, o seu derradeiro fim normal, abdicando do tempo em benefício do eterno, mas assume corajosamente a temporalidade e a historicidade que definem a sua condição humana e o seu modo de existir: «A temporalização, para usar a profunda linguagem de Heidegger, cristã é a que dá sentido a todas as outras formas do tempo - abstractos longínquos de realidades subordinadas à Realidade-Origem. Cristo aparece no tempo, dando-lhe vivo sentido histórico. Aparece, e as preformações em si insubsistentes, vazios aspirando uma plenitude, que pressentem e desconhecem, orientam-se no sentido do Fim, adquirindo significado e valor histórico. E as realidades futuras serão o crescimento, no tempo, do germe de eternidade depositado na história. Vozes falando a sua insuficiência, em falência de ser, sofreguidões de ser, esperando; vozes de oração e fé, almas de caridade, dessedentando-se - fons vincit sitientem - em sua presença mística: eis a história» (L. Coimbra). A referência a Cristo como a origem das coordenadas históricas é fundamentalmente um apelo à acção política: «Cristo é a resposta, é a mão do invisível dando-se na terra às desgraças suplicantes; é a história, porque é a Origem e o Fim e, entre os dois, a esperança unindo-os pelo humilde resplendor da caridade. Antes de Cristo a terra é um grito varando o Azul». Leonardo Coimbra herda da filosofia do idealismo alemão a noção da Filosofia como órgão da liberdade: «A filosofia é, pois, um órgão de maior proximidade política, isto é, de mais directa acção social. Humaniza e transmite, traz à síntese dinâmica da Razão os elementos analíticos de progresso, que lhe vêm chegando das ciências. /A filosofia, órgão da liberdade metafísica, será também o órgão das liberdades sociais, assimptóticas dessa liberdade ideal, que seria a própria vida espiritual na origem, nascimento e visão em Deus. Os olhos de Espinosa contemplando, lúcidos e serenos, o íntimo estremecimento de seu espírito no amor intelectual de Deus». Esta compreensão do pensamento de Leonardo Coimbra exige um recuo até às suas primeiras obras filosóficas, em particular Esboço de um Sistema Filosófico e A Razão Experimental: «A pessoa é autónoma e livre, porque, em frente da realidade social, não se limita a sofrer, mas reage e cria (novo mundo). Houve uma interferência do individual e do colectivo, que permitiu ao primeiro fazer-se pessoa e dirigir o segundo».
Quando o indivíduo humano se desvincula de tudo o que lhe é exterior e estranho, do seu corpo, do sentimento, da percepção ou mesmo da consciência, mergulhando na profundidade do seu núcleo essencial, descobre um estranho hóspede interior e imanente: «A religião é uma Relação, é a relação dum eu limitado com o Infinito que o sustenta, é essencialmente a atitude desse eu, que, vendo-se em angústia, insuficiência e possível abandono, se abre em humildade ao Invisível que o socorre. Esse Invisível é um estranho hóspede, que bateu para que se abrisse e foi, de pronto, reconhecido por nós como o único e autêntico dono da casa. É o hóspede que alimenta o hospedeiro e põe neste a confiança de que só perdendo-se nele, se reencontrará em substancial e imperecível realidade. O orgânico, a ressonância corporal, a simbólica que o corpo empresta é linguagem daquela atitude e nunca a substância do seu ser. O corpo salva-se pela penetração da vontade até aquele ponto em que ele, caindo e levantando-se mas obedecendo, serve a relação do homem com Deus» (L. Coimbra). A descoberta desse estranho hóspede - que é Deus transcendente e, ao mesmo tempo, imanente - na chama ou no fogo do núcleo essencial ajuda a clarificar duas noções fundamentais da antropologia existencial de Leonardo Coimbra: o humanismo antropolátrico é um humanismo de suficiência, enquanto o humanismo teocêntrico é um humanismo de insuficiência. Com a formulação desta oposição entre dois modos de ser ou de existir, Leonardo Coimbra pensa o humanismo cristão como a emergência da pessoa em contraposição ao idealismo: «O idealismo moderno é um humanismo de suficiência ou dispersão, em que o homem é o criador ou o ponto de passagem de forças impessoais que, atravessando-o e subindo-o por agora, acabarão por o dissolver no seu inconsciente anonimato». À noção do homem como ponto de referência e medida de todo o ser, Leonardo Coimbra opõe - em polémica com a interpretação de Berdiaeff - a problemática da liberdade - a exigência da liberdade metafísica - de Dostoiévski: «a consciência profunda do homem perante Deus». O homem vontade-força, o homem técnico, que se faz ponto de referência e medida de todo o ser está condenado a destruir a vida que a Terra acolhe: «Antropolatrismo é, pois, igual a niilismo». Assumindo-se como redentor do homem, o homem técnico que «espera vencer a morte pela operação cientista da ressurreição» leva a cabo a humanização integral, através de dois processos: a colocação de todos os seres ao serviço do homem ou a sua destruição e a multiplicação do homem até à colonização humana do universo. Leonardo Coimbra censura a audácia deste imperialismo cientista, não só por causa da sua concepção do homem como ser auto-suficiente e do afastamento de Deus que este soteriologismo universal implica, mas também por causa dos seus efeitos destrutivos: o homem não se basta a si mesmo e a sua consciência não é o registo único da luz universal. O homem é o ser livre que se auto-apreende como ser relativo a Deus, porque não se criou a si próprio: a liberdade pela qual decide o seu projecto de vida foi-lhe concedida por Deus. A liberdade do homem é, portanto, uma dádiva da transcendência, que lhe desvenda a sua insuficiência ontológica, a insegurança do seu ser e as probabilidades de alcançar ainda o que autenticamente pode ser. Pela liberdade que Deus lhe concedeu, o homem pode conformar a sua existência como se modela qualquer material e fazer a sua própria história, liberta dos constrangimentos do seu património genético e dos condicionalismos exteriores. A finitude radical da existência humana revela a sua insuficiência ou falência de ser e, por conseguinte, a sua dependência em relação a Deus que habita o seu núcleo essencial.
Dado não decorrer apenas como um acontecer natural, a existência humana exige uma orientação: cabe ao homem enquanto ser livre decidir e optar por um destes caminhos - a orientação antropolátrica que o conduz ao niilismo ou a orientação de Deus que o leva à salvação. A orientação antropolátrica é o caminho da existência inautêntica e da perda, enquanto a orientação de Deus é o caminho da existência autêntica e do resgate. O sentido da decisão responsável pela existência autêntica pode ser visto como uma viagem do pensamento do homem pelos caminhos infinitos: «O homem é sempre mais rico de desejo e imaginação do que lhe pode dar a realidade quotidiana. Alargar esta é dar lugar geométrico e metafísico aos sonhos da sua imaginação, e não é pequena alegria ver aumentar a sua compreensão espiritual pelo alargamento das suas relações humanas» (L. Coimbra). O homem que viva completamente mergulhado na vida quotidiana e nas suas rotinas corre o risco de se perder a si próprio nesse mundo impessoal, seguindo «espontaneamente as linhas da compressão social que o levam para o quase inconsciente cumprimento de seus fins sociais». Leonardo Coimbra acompanha de perto a sociologia de Durkheim para mostrar que o indivíduo precisa da sociedade para emergir como pessoa, mas, a partir dessa emergência social do eu, a pessoa deve reagir e modificar essas linhas de obrigação do meio criadas pela pressão ou coerção social: o homem só pode encontrar-se a si mesmo se conseguir distanciar-se do seu eu social e da coacção lógica que o obriga a viver numa espécie de temor escravizante, submisso e sujeitado ao acordo social estabelecido que bloqueia a construção de um novo mundo social. Afastar-se do mundo social coisificado - colonizado pelo sistema capitalista e pelos mass media que dissolvem e afogam a individualidade na opinião pública anónima - para o interior mais íntimo do eu é uma tarefa que só pode ser realizada com a ajuda da consolação da filosofia (Boécio): «O encontro do homem consigo mesmo no espelho da meditação reflexa é evidentemente a condição indispensável para que este ponha e se dê fins, deixando de seguir espontaneamente as linhas da compressão social que o levam para o quase inconsciente cumprimento de seus fins sociais». Leonardo Coimbra descobre e explicita uma temática partilhada por Bergson e Heidegger: a coexistência de dois si mesmos, o eu social - das Man de Heidegger - e o eu livre ou fundamental - o si mesmo autêntico de Heidegger. Heidegger preconiza a transformação do Man - o eu impessoal - da vida quotidiana em ser-si-mesmo, mediante a qual a existência humana produz um solus ipse. O solipsismo existencial ou ontológico mais não é do que a actualização do principium individuationis, que Heidegger atribui não à vontade mas ao Cuidado (Sorge), o órgão do homem para o futuro. Segundo Bergson, a função da vontade é libertar o si mesmo fundamental das exigências funcionais da vida social e da linguagem ordinária usada para comunicar com os outros num mundo externo absolutamente distinto de nós. Ora, a linguagem criada por este mundo comum leva à formação de um segundo si mesmo que obscurece o si mesmo fundamental. Cabe à filosofia trazer de volta o si mesmo social ao si mesmo real e concreto, cuja actividade é pura espontaneidade criativa. Leonardo Coimbra vê neste eu livre de Bergson «um protesto da dialéctica contra o cousismo do tempo algébrico». A dialéctica da liberdade desperta o homem banal do seu ilusionismo coisista, fazendo-o pensar consigo mesmo e com Deus, e, ao mesmo tempo, convoca-o para a tarefa da libertação, isto é, da construção de uma sociedade aberta, que Leonardo Coimbra pensa como uma sociedade de eus autónomos ou de si mesmos autênticos que sabem escutar a voz da consciência. Esta voz da consciência, que é, como vimos, a voz de Deus, chama o homem, a partir do seu núcleo essencial, à autenticidade, a qual se desvela como culpa humana no duplo sentido de ser culpado ou ser responsável pelos seus actos e de estar em dívida ou dever alguma coisa a Alguém. O homem foi lançado no mundo sem ser trazido ao ser-aí por si mesmo: a sua existência está sempre-já em dívida com Alguém que lhe concedeu a vida e a liberdade. Para Leonardo Coimbra, Kierkegaard, Gabriel Marcel, Henri de Lubac e Karl Jaspers, esse Alguém é Deus, e, com esta noção de homem como ser livre e relativo a Deus, a antropologia existencial converte-se, de certo modo, em antropologia teológica (W. Pannenberg): a comunicação com os outros passa pela linha indirecta da comunicação com Deus.
J Francisco Saraiva de Sousa