sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

2011: O Regresso de Marx

«A história de toda a sociedade até aos nossos dias mais não é do que a história da luta de classes.
«Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre-artesão e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, travaram uma guerra contínua, ora aberta, ora dissimulada, uma guerra que acabava sempre ou por uma transformação revolucionária de toda a sociedade ou pela destruição das duas classes em luta.» (Marx/Engels)

«O movimento histórico que converteu os produtores em assalariados apresenta-se, por conseguinte, como a sua libertação da servidão e da hierarquia industrial. Por outro lado, estes libertos não se tornam por si mesmos vendedores, senão depois de terem sido despojados de todos os meios de produção e de todas as garantias de existência, oferecidas pela antiga ordem de coisas. A história da sua exploração não é matéria de conjectura: está escrita nos anais da humanidade em indeléveis letras de sangue e de fogo.» (Karl Marx)

«Nos anais da história real é a conquista, a escravidão, a rapina à mão armada, a regra da força brutal que tem sempre a última palavra. Nos manuais hipócritas da economia política, o que, pelo contrário, sempre tem reinado é o idílio. Se fossemos a acreditá-los, teríamos de dizer que jamais houve, a não ser no ano corrente, outros meios de enriquecimento que não sejam o trabalho e o direito. De facto, os métodos de acumulação primitiva são tudo o que quisermos, menos objecto de idílio.» (Karl Marx)

«O regime da dívida pública implantou-se primeiro na Holanda. A dívida do Estado, a sua venda, seja ele despótico, constitucional ou republicano, imprime a sua marca à era capitalista. A única parte da chamada riqueza nacional que é realmente objecto de posse colectiva dos povos é ... a dívida pública. Por isso, a doutrina moderna revela coerência perfeita ao sustentar que uma nação é tanto mais rica quanto mais está endividada. O crédito público torna-se o credo do capital. E o pecado contra o Espírito Santo, para o qual não há perdão, é substituído pelo (pecado) de não ter fé na dívida pública. /A dívida pública converteu-se numa das alavancas mais poderosas da acumulação primitiva. Como uma varinha de condão, ela dota o dinheiro de capacidade criadora, transformando-o assim em capital, sem ser necessário que o seu dono se exponha aos aborrecimentos e riscos inseparáveis das aplicações industriais e mesmo usurárias.» (Karl Marx)

«Essa expropriação opera-se pela acção das leis imanentes à própria produção capitalista, pela concentração dos capitais. Cada capitalista elimina muitos outros capitalistas. (...) À medida que diminui o número dos magnatas capitalistas que usurpam e monopolizam todas as vantagens desse processo de transformação, aumentam a miséria, a opressão, a escravização, a degradação, a exploração; mas cresce também a revolta da classe trabalhadora, cada vez mais numerosa, disciplinada, unida e organizada pelo mecanismo do próprio processo capitalista de produção. O monopólio do capital passa a entravar o modo de produção que floresceu consigo e sob a sua influência. A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho alcançam um ponto em que se tornam incompatíveis com o envoltório capitalista. O invólucro rompe-se. Soa a hora final da propriedade privada capitalista. Os expropriadores são expropriados.» (Karl Marx)

«Mas, se uma população trabalhadora excedente é produto necessário da acumulação ou do desenvolvimento da riqueza no sistema capitalista, ela torna-se por sua vez a alavanca da acumulação capitalista, e mesmo a condição de existência do modo de produção capitalista. Ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao capital de maneira tão absoluta como se fosse criado e mantido por ele. Ela proporciona o material humano ao serviço das necessidades variáveis de expansão do capital e sempre pronto para ser explorado.» (Karl Marx)

«"O que fazer com os desempregados?" Enquanto se avoluma cada ano o número de desempregados, não há ninguém para responder a essa pergunta; e quase podemos prever o momento em que os desempregados perderão a paciência e encarregar-se-ão de decidir o seu destino, com as suas próprias forças. Num instante desses, deverá ser ouvida a voz (de Karl Marx), cuja teoria (faz "soar o dobre de finados da ciência económica burguesa" e do capitalismo.)» (Friedrich Engels)

«Mas a violência joga também outro papel na história, tem um papel revolucionário: é, segundo a frase de Marx, a parteira de toda a velha sociedade prenhe de outra nova sociedade, é o instrumento com a ajuda do qual o movimento social se dinamiza e rompe formas políticas mortas». (Friedrich Engels)

Para finalizar este conjunto de referências textuais dos fundadores do marxismo, não resisto a citar uma frase de Marx que nos ajuda a enterrar a filosofia produzida nas últimas quatro ou cinco décadas, sob a influência nefasta desse alienado mental e cognitivo que foi Nietzsche: «Hoje em dia, o próprio ateísmo não passa de um pecadilho, em confronto com a blasfémia de criticar as relações consagradas de propriedade» (Karl Marx) ou mesmo dos chamados direitos adquiridos. Até aqui tenho criticado o neoliberalismo das últimas três décadas, mas a sua génese recua no tempo, sendo anterior à II Guerra Mundial, como atesta a obra económica e política de Walter Lippmann, ele próprio um neoliberal reaccionário. Ao abandonar a teoria do valor-trabalho de Ricardo e de Marx, a ciência económica tornou-se incapaz de produzir uma história económica do Ocidente, sobretudo do período posterior à II Guerra Mundial. Ora, nós precisamos dessa história económica para condenar o capitalismo tardio. A lógica imanente do capital destruiu a educação e o ensino: o capitalismo precisa não de cidadãos informados mas de consumidores passivos e ignorantes.

J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 18 de dezembro de 2010

Karl Popper está morto

«Os mesmos homens que estabelecem as relações sociais em conformidade com a sua produtividade material produzem também os princípios, as ideias, as categorias, em conformidade com as suas relações sociais. Assim, estas ideias, estas categorias são tão pouco eternas quanto as relações sociais que exprimem. São produtos históricos e transitórios». (Karl Marx)

«As ideias da classe dominante são, em qualquer época, as ideias dominantes: a classe que constitui a força material dominante na sociedade, por exemplo, constitui ao mesmo tempo a sua força intelectual dominante. A classe que tem ao seu dispor os meios de produção materiais controla ao mesmo tempo os meios de produção mental, (isto é, teórica) de modo que, em consequência, as ideias daqueles a quem faltam os meios de produção mental ficam, em geral, submetidos a esse (controle ideológico). As ideias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes - as relações materiais dominantes tomadas como ideias (interiorizadas pelos oprimidos) - e, portanto, das relações (materiais) que fazem de uma classe a classe dominante: consequentemente, são as ideias da sua dominação». (Karl Marx)

Já publiquei aqui alguns textos sobre o racionalismo crítico de Karl Popper (1902-1994). Quando este professor primário ultra-conservador da Filosofia morreu, com a idade avançada de 92 anos, no decorrer dos quais disse muitas palermices, alguns jornais anunciaram a sua morte desejada com este título falso: "O Homem que matou Marx e Freud". O título não é congruente com o racionalismo crítico que diz ser contra a violência e a eliminação física dos adversários, mas expressa bem o desejo secreto dos conservadores e dos neoliberais que acolheram a filosofia de Popper. Eles viram nela, sobretudo no seu anti-historicismo, a expressão ideológica adequada para legitimar, garantir e salvaguardar os seus interesses de classe: o ódio contra a mudança que Popper atribui a Platão é o seu próprio ódio contra a revolução. A sua crítica do historicismo foi movida pelo seu próprio interesse em remover o suporte teórico que anima e vitaliza a praxis política revolucionária: o pensamento dialéctico de Hegel e de Marx, cuja arqueologia ele recua até Heráclito, Platão e Aristóteles, como se estes filósofos gregos tivessem sido historicistas. O anti-historicismo de Popper pode ser refutado com a ajuda dos seus próprios procedimentos críticos, mas não é essa a via que vamos seguir neste texto preparatório: o nosso objectivo é desenvolver um modelo crítico em miniatura da doutrina anti-historicista de Popper, tendo como pano de fundo o confronto entre a sua obra A Sociedade Aberta e os seus Inimigos e a obra A Destruição da Razão de Georg Lukács. Ambas as obras procuram explicar o advento do totalitarismo no século XX e perspectivam-no como resultado do triunfo do irracionalismo: Popper responsabiliza o pensamento dialéctico pela experiência totalitária que identifica malvadamente com a experiência soviética do "comunismo", desprezando o horror do nazismo e dos campos de concentração, enquanto Lukács explica correctamente a revolta contra a razão como resultado da imobilização da dialéctica. Hoje, graças à crise financeira de 2008, podemos facilmente compreender o alcance ideológico da mistificação neoliberal popperiana: ao escolher o marxismo como alvo preferencial da sua falsificação, Popper abre o caminho ao totalitarismo global: algo como a experiência desumana dos campos de concentração nazis está a suceder hoje à escala global. Bruno Bettelheim relatou essa experiência em primeira mão, mas Popper não o leu, porque pensou ter refutado não só o marxismo mas também a psicanálise: as falsificações de Popper pressupõem já aquilo que visam: a destruição do self. (O racionalismo crítico é masturbação mental, o que equivale a dizer que a sua morte e a morte do seu criador coincidem: o racionalismo crítico morreu em Agosto de 1994, como testemunham os discursos dos seus seguidores - W. H. Newton-Smith, Peter Lipton, E. G. Zahar, John Worral, Donald Gillies, David Miller, Peter Clark, Michael Redhead, Günter Wächtershäuser, John Watkins, Michael Smithurst, Kenneth Minogue, Graham Macdonald, Bryan Magee, Hubert Kiesewetter, Anthony O'Hear e, mais recentemente, George Soros - que abandonaram o "mestre" logo que este morreu. O elogio fúnebre foi realmente uma deserção colectiva: os desertores aproveitaram a ocasião solene para enterrar o cadáver do "mestre" e as suas teorias!)

Conseguiu Popper refutar o historicismo que atribui a Hegel e a Marx? Há uma diferença fundamental entre as dialécticas históricas de Hegel e de Marx: Hegel limita-se a contemplar a história concluída, olhando para o passado e os seus horizontes, isto é, para uma essência já revelada nos fenómenos que chegaram a ser, enquanto o saber de Marx procura transformar o mundo e ajudar a construir um mundo melhor. A dialéctica materialista não se fecha sobre a história contemplada, porque o seu saber não se refere simplesmente a um passado susceptível de ser conhecido, mas a um devir efectivo em formação: o conhecimento dialéctico é, ele próprio, um factor de mudança. Em termos popperianos, usados contra o seu anti-historicismo, o "activismo" de Marx - a tarefa política de transformar o mundo - não pode ser divorciado do seu "historicismo". O historicismo de Hegel não faz previsões históricas, como é evidente: «Já em Hegel o espírito absoluto da história tem os seus elementos nas massas, mas só encontra expressão adequada na filosofia. E o filósofo aparece apenas como instrumento através do qual o espírito absoluto, que faz a história, chega à consciência de si próprio depois de se ter completado o movimento histórico. A participação do filósofo na história limita-se assim à consciencialização subsequente: o filósofo chega post festum» (Karl Marx). De acordo com a própria definição artificial de Popper, Hegel não é um historicista no sentido de fazer previsões históricas: a filosofia da identidade que Popper lhe atribui, vendo nela a apologia do status quo - um argumento marxista! - é alvo da crítica materialista da dialéctica idealista de Hegel: a dialéctica materialista constitui-se como crítica do pensamento da identidade, e a sua concepção da história não é determinista, como supõe Popper. Reduzir o marxismo a uma filosofia determinista da história, atribuindo-lhe diversos determinismos - o sociológico, o economicista ou o tecnológico, sem decidir claramente por um deles, é esquecer que, num mundo feito pelo homem, a própria dialéctica é uma relação sujeito-objecto: Marx nunca negou a liberdade do homem e o seu papel fundamental no processo histórico, em nome de um determinismo económico absoluto capaz de conduzir ao "socialismo". Quando distingue entre a corrente fria e a corrente quente do marxismo, Ernst Bloch mais não faz do que chamar a atenção para a dialéctica do determinismo e da liberdade: a economia capitalista entregue à sua própria lógica imanente não irá conduzir de modo pacífico e automático à construção de um mundo melhor: cabe à subjectividade, que trabalha e que se perde na alienação, a tarefa de romper a objectivação, que a confronta de fora como se fosse uma potência natural estranha, de modo a «funcionar» como parteira de uma nova sociedade. Ao contrário do que diz Popper, cuja exposição pretensamente crítica da doutrina marxista omite por má-fé a teoria da alienação e do fetichismo da mercadoria, de modo a emprestar-lhe fraudulentamente as noções gregas de essência e de fenómeno, Marx não hipostasia a história, como se os homens fossem meros instrumentos dessa entidade metafísica que os usa para atingir os seus próprios objectivos. Contra essa visão metafísica da história veiculada pela "Escola Crítica", Marx afirmou que «a história não faz nada: "não possui riquezas imensas", "não trava batalhas". São os homens vivos, reais, que fazem tudo isso, possuem coisas e travam batalhas. Não é a "história" que utiliza os homens como um meio de alcançar - como se ela fosse também uma pessoa - os seus próprios fins. A história não é mais do que a actividade dos homens perseguindo os seus objectivos». (:::)

Ao definir o historicismo como a doutrina, segundo a qual a história é regida por leis específicas, históricas ou evolutivas, que o homem deve conhecer para prever o seu destino, Popper distancia-se claramente do espírito dessa imensa revolução espiritual do Ocidente que foi o historicismo, tal como foi analisado por Dilthey, Troeltsch, Croce e Meinecke. O historicismo tal como o define Popper não tem nada a ver com o historicismo real: Popper inventa os seus próprios alvos teóricos, gerando objectos teóricos artificiais que atribui depois aos chamados irracionalistas, sem os ter lido em primeira mão, para a seguir os criticar, isto é, os refutar. Popper refuta as suas própria criações teóricas artificiais, simplificando-as de modo grotesco, como se estivesse a refutar as teorias genuínas dos chamados filósofos oraculares, em especial dos filósofos que «previram» ou «profetizaram» o colapso do capitalismo. A profunda ignorância de Popper revela-se desde logo no modo como estabelece a génese do historicismo. Em vez de a procurar onde ela realmente se encontra, isto é, nos sistemas de Leibniz (Alemanha), Shaftesbury (Inglaterra) e Vico (Itália), que iniciaram a demolição da crença no carácter absoluto das verdades de razão, com o objectivo de conquistar um novo sentido do histórico, Popper recua-a no tempo até àquilo a que chama o seu modelo mais simples e antigo: a doutrina do povo eleito, segundo a qual a história deve ser interpretada à luz de uma visão teísta, reconhecendo Deus como o autor da peça representada no palco da história. Como pretende retomar mais tarde a moral cristã para dar um suporte não-racional ao seu racionalismo crítico, Popper aponta a sua artilharia defeituosa contra o judaísmo: Deus escolheu como instrumento do seu plano um - o povo judeu - entre todos os povos, confiando-lhe a missão de assumir a herança da Terra. E vemos a seguir Popper - sem escrúpulo intelectual - a derivar por mera substituição o fascismo ou o racismo e o marxismo da doutrina do povo eleito: o povo eleito é substituído no primeiro caso pela raça eleita - a raça ariana segundo Gobineau, e, no segundo caso, pelo proletariado. A semelhança entre esta perspectiva de Popper e a visão de Karl Löwith é mais aparente do que real: além de não responsabilizar os judeus pelo holocausto, como faz Popper, Löwith procura demonstrar que a filosofia da história - termo forjado por Voltaire - se inicia com a fé hebraica e cristã na salvação e termina com a secularização do seu esquema escatológico, mas sem cometer o erro popperiano de atribuir aos gregos uma filosofia da história. Encarar a filosofia da história como resultado da secularização da escatologia hebraica e cristã não inviabiliza a perspectiva de que o pensamento histórico propriamente dito começa apenas na época moderna, com o século XVIII, até porque não há qualquer afinidade entre uma teologia da história e uma filosofia da história consequente, como demonstrou Hannah Arendt: o repto marxista ao esquema de Löwith encontra-se na filosofia da esperança de Ernst Bloch. Os textos de Marx citados no parágrafo anterior desmentem a interpretação que Popper faz do seu historicismo como o empenhamento em descobrir o sentido da história, como se este fosse uma lei eterna pré-fabricada - um destino traçado de antemão - e imposta à acção dos homens que fazem efectivamente a "sua" história, e não a "história" da História. Com recurso ao seu célebre dualismo de factos e de decisões, mais tarde teorizado como dualismo de factos e de padrões (políticas), Popper afirma que, embora a história não tenha um sentido, podemos dar-lhe um sentido, interpretando-a do ponto de vista de nossa luta pela sociedade aberta, por um regime da razão, pela justiça, igualdade, liberdade e pelo controlo do crime internacional. Popper desvirtua a teoria marxista da história para se apropriar de modo abstracto - no vazio - dos seus "frutos": a luta permanente pela realização prudente dos sonhos de um mundo melhor. O herói filosófico de Popper, Sócrates, não é de todo estranho a Hegel e a Marx. A criação por si mesmo do saber absoluto converte-se na criação do homem por si mesmo através do trabalho e da luta, e o devir para si do Espírito converte-se em história real, que existe unicamente como uma história dialéctico-material, como uma história agitada pela luta de classes, ao fim da qual aparece como meta a emancipação do homem. Hegel e Marx tomaram como tema da história humana a inscrição gravada no Templo de Delfos, a mesma inscrição que orientou Sócrates: "Conhece-te a ti mesmo". Porém, em Marx, o conhecimento de si mesmo não é a mera filosofia da auto-consciência, mas antes o conhecimento que o operário adquire de si mesmo ao compreender-se como homem convertido em mercadoria e, ao mesmo tempo, como um sujeito criador de valores, o que supera de modo revolucionário o seu carácter de mercadoria. Em Marx, a prática da inscrição do Templo de Delfos é uma suspensão efectiva da alienação que desemboca na praxis. Merleau-Ponty não está muito longe da verdade quando afirma que o marxismo, mesmo sendo incapaz de dar forma à história mundial, permanece bastante forte para desacreditar as outras soluções: o marxismo não é uma hipótese qualquer, substituível amanhã por outra; ele é a única filosofia da história que enuncia as condições sem as quais não haverá humanidade no sentido de uma relação recíproca entre os homens, nem racionalidade na história. Renunciar a esta filosofia da história equivale a renunciar à razão histórica e, como sucedeu depois da Queda do Muro de Berlim que consagra o triunfo do neoliberalismo, a desistir da luta pela realização do humanismo: a força da teoria de Marx reside precisamente na sua capacidade para nos fazer compreender que a humanidade não é humanidade senão de nome enquanto a maior parte dos homens vive por procuração, e que uns são senhores, outros escravos. Como escreve Merleau-Ponty: «Fora do marxismo, só há o poder de uns e a resignação de outros. As razões pelas quais aderimos ao marxismo e dele não nos desligamos facilmente, quaisquer que sejam os "desmentidos da experiência", são agora claras: é que, colocadas na perspectiva dessa única filosofia da história, as "sabedorias históricas" aparecem como fracassos. O marxismo tem um primeiro título, todo subjectivo, a beneficiar de um sursis: é que ele é o único humanismo que ousa desenvolver as suas consequências». Ao desvalorizar a história, em nome de uma razão hipostasiada - Popper desconhece a teoria sociológica da razão de Durkheim! - e de uma liberdade abstracta, Popper contribuiu mais para o fortalecimento de uma sociedade fechada do que para a construção de uma sociedade aberta: a sua tese do indeterminismo aplicada à história e aos assuntos humanos tem como resultado a negação tanto da liberdade como da história entendida como luta pela conquista da liberdade: negar os determinismos sociais em nome de uma liberdade individual abstracta é o mesmo que entregar o destino dos homens aos caprichos dos poderes dominantes. Embora pareça crer no poder libertador do conhecimento, Popper redu-lo a uma conversa interminável - mera troca desigual de argumentos sob coacção da lógica da dominação - que visa mais a instrumentalização das consciências do que a sua emancipação. O seu ataque à noção de liberdade avançada por Engels a partir de uma célebre frase de Hegel revela o cariz obscurantista da ideologia que opera no interior do pensamento de Popper: «A liberdade é a consciência da necessidade» (Engels). Em vez de procurar compreender esta noção de liberdade no seu contexto polémico - a crítica da "filosofia da realidade" de Dühring - e no âmbito de uma teoria da emancipação, Popper nega o poder emancipador do conhecimento quando coloca esta questão retórica: «Serão porventura aqueles que agem sob a pressão de determinantes bem conhecidas, por exemplo uma tirania política, libertados pelo conhecimento delas?» O tema da relação entre necessidade e liberdade é fundamental tanto para a dialéctica hegeliana e marxista como para a construção de um mundo melhor: a liberdade não é - em Hegel - apenas reconhecimento da necessidade, mas necessidade compreendida - a verdade da necessidade - que implica uma mudança nas condições reais de existência. O reconhecimento não pode efectivamente transformar a necessidade em liberdade, na medida em que a transição da necessidade para a liberdade exige uma dimensão do ser fundamentalmente diferente, transformação esta operada não pela liberdade de negação abstracta mas pela liberdade de negação concreta. Popper, que não captou bem o sentido desta relação dialéctica entre necessidade e liberdade, teme o conhecimento crítico que orienta a praxis de transformação qualitativa do mundo: o Evangelho segundo Sir Karl Popper é o evangelho da ignorância e, por isso, não devemos ficar espantados com o facto do seu racionalismo crítico se voltar na hora da verdade para a religião em busca da fé e não do conhecimento - a fé na razão tal como foi apregoada pelo seu fundador já defunto.

Os alvos do anti-historicismo de Popper são Marx e a política revolucionária. Porém, a relação de Popper com Marx é extremamente ambígua: Popper analisa vários aspectos da teoria de Marx, com os quais concorda; não os refuta, hipostasia-os em si mesmos, isolados das suas relações internas no seio da teoria, de modo a dar a cada um deles uma designação geral pejorativa, como por exemplo economicismo, activismo, filosofia oracular, sociologia do conhecimento, determinismo sociológico, futurismo moral, novo tribalismo ou historicismo económico. Usando a linguagem de Thomas Kuhn, podemos dizer que Popper não tem um paradigma alternativo capaz de operar uma revolução científica: o seu objectivo é mais político do que teórico. O uso abusivo de argumentos ad hominem testemunha precisamente essa ausência de alternativa teórica, desqualificando a autoridade intelectual de Popper que, temendo a revolução social, parece defender uma abordagem tecnológica da sociologia - matéria que desconhece! -, com o objectivo de travar as forças sociais dinâmicas da história. As distinções que estabelece entre profecia histórica e engenharia social e entre engenharia utópica e engenharia de acção gradual visam travar a política revolucionária, isto é, impedir a mudança qualitativa da sociedade. Popper reconhece-o claramente quando, após ter analisado a teoria do ciclo de negócios de Marx, sem a criticar, apela ao intervencionismo do Estado na aplicação de políticas anticíclicas. A unidade da ciência - ou do método - defendida por Popper concede o primado ao método sobre o objecto, sem levar em conta a especificidade do objecto das ciências sociais e humanas: Popper defende que os mesmos métodos e critérios se aplicam tanto às ciências naturais como às ciências sociais. O seu ataque contra a dialéctica da essência e da aparência é levado a cabo em nome de uma transparência social inexistente: ao tomar o mundo social por aquilo que aparenta e pretende ser, isto é, em função das suas definições oficiais - as definições sociais da classe dominante, Popper inviabiliza a crítica ideológica, fazendo a apologia do mundo estabelecido num suposto primitivo estado de inocência. Privado desta base racional e crítica, isto é, da necessidade de rasgar o véu ideológico que cobre a sociedade para a poder ver à luz da verdade, o seu princípio de uma sociedade aberta converte-se naquilo que sempre foi - um princípio de sociedade fechada que, confiante nos modelos matemáticos burgueses do putativo equilíbrio de mercado, não tolera a verdadeira dialéctica. A crise financeira de 2008 refuta cabalmente o optimismo oportunista de Popper: um dos seus discípulos entusiastas, George Soros, foi levado a romper com o seu racionalismo crítico, denunciando a falsidade da doutrina da unidade do método e a falácia do Iluminismo subjacente à sua cartilha pseudo-racionalista: Popper retoma de Marx o princípio da revolução permanente e aplica-o exclusivamente ao crescimento do conhecimento científico, ignorando ou fingindo ignorar a função manipulativa da razão na construção social da realidade. Para todos os efeitos, Popper abraçou a racionalidade instrumental e usou-a não para melhorar a sociedade e proteger a natureza, como é evidente, mas para anular a oposição e dissolver as diferenças num consenso de fundo generalizado. Vou dar dois exemplos do seu procedimento oportunista e obscurantista: falsificar as suas próprias falsificações do pensamento dialéctico alheio, o único capaz de deter as forças totalitárias em movimento neste mundo global dominado pela teologia de mercado (Marx).

1. Segundo Popper, Marx era um racionalista que, tal como Sócrates e Kant, acreditava na razão humana como base da unidade da humanidade, mas a sua teoria de que os nossos conhecimentos são determinados pelos interesses de classe minou o racionalismo, levando ao surgimento da sociologia do conhecimento. Mas que racionalismo é este? O racionalismo do direito natural que faz da razão imutável o tribunal da história e da crítica do conhecimento? As noções popperianas de razão e de natureza humana são as do direito natural, contra as quais se ergueu o historicismo real, não a ficção historicista de Popper: «Há um movimento contínuo de crescimento nas forças produtivas, de destruição nas relações sociais, de formação nas ideias; de imutável há apenas a abstracção do movimento - mors immortalis» (Karl Marx). (:::)

2. Popper herda de Hegel a natureza social da razão, mas distancia-se do seu pretenso "colectivismo". Hegel colectivista? Popper é intelectualmente desonesto! Na filosofia racionalista de Popper, o social é concebido como intercâmbio intelectual entre indivíduos concretos. A sua teoria social da razão é interpessoal e não-colectivista, como pensa ser - na sua ficção interna - a de Hegel e a de Marx. Popper converte a luta de classes de Marx, bem como a luta pelo reconhecimento recíproco de Hegel, a última das quais desconhece porque nunca leu uma das mais belas obras da Filosofia - a Fenomenologia do Espírito de Hegel, numa mera disputa intelectual. Curiosamente a crítica que Marx dirige a Hegel aplica-se igualmente a Popper: «Assim, a filosofia da história (de Hegel) não é mais do que a história da filosofia, da sua (dele) filosofia. Já não há "história segundo a ordem dos tempos", há apenas a "sucessão das ideias no entendimento"». Porém, a fúria idealista de Hegel é inofensiva quando comparada com a fúria histérica de Popper: Hegel estava convencido de que a história tinha chegado ao seu fim com a acção política de Napoleão, cabendo-lhe assim a tarefa de revelar no e pelo discurso verdadeiro a história concluída, enquanto Popper usa a disputa intelectual actual para evitar o salto qualitativo do reino da necessidade para o reino da liberdade, afirmando que vivemos no melhor mundo possível. (:::)

(Em construção) J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Prós e Contras: Portugal - Compreender a Crise

Faço parte de uma geração que foi privada da herança, em nome da cartilha neoliberal. Porém, o meu espírito rebelde fez de mim um autodidacta: o que sei - o conhecimento do movimento real total - aprendi sozinho, lendo os mestres que forjaram o Ocidente, longe da Universidade. Apropriei-me às escondidas da herança que o neoliberalismo procurou destruir e que a Universidade me negou. (Aliás, a Universidade portuguesa, cativa como está de forças obscuras, amigas da ignorância activa, é a negação absoluta do conhecimento!) Este quadro de George Tooker - Government Bureau, 1956 - faz parte dessa herança amaldiçoada pelo neoliberalismo e ignorada pela Universidade: a pintura americana foi muito sensível às transformações sociais desencadeadas pela crise financeira de 1929, e, de certo modo, o mundo que "retrata" pode ser articulado com o pensamento de Esquerda, não só europeu, mas também e sobretudo americano. As Universidades americanas não eram, pelo menos nessa altura, tão democráticas quanto a imagem difundida pelo poder dominante no exterior fazia crer: os casos de Paul Baran, que ganhava menos que os seus colegas do Departamento de Economia por ser um economista marxista, e de Paul Sweezy, que foi hostilizado e afastado da Universidade de Harvard pelo mesmo motivo, durante a época de McCarthy, apesar da protecção de Joseph Schumpeter, testemunham o lado negro e falso da democracia americana. O capitalismo que "coloca no lugar das coisas o preço das coisas" (Adriano Moreira), roubando a alma às pessoas, nunca tolerou a oposição e, na sua versão global neoliberal, quase conseguiu eliminar todo o pensamento que o confrontasse com o seu carácter histórico e falso. O neoliberalismo é pensamento identitário, isto é, totalitarismo consumado: os seus efeitos foram e continuam a ser mais maléficos do que os das experiências totalitárias do século XX. Nestas últimas décadas, instalou-se o mito do eterno presente (D. José Policarpo), tão glorificado por Manuel Castells, que iludiu as massas com a sociedade afluente (John Galbraith), como se a pobreza tivesse sido realmente abolida: a dependência em relação à burocracia estatal - ou mesmo das empresas privadas - e o consumo devorador do mundo como estilo de vida que os americanos querem generalizar a todo o mundo. Pelo menos, a universalização da democracia liberal como fim da história foi o desejo expresso por Francis Fukuyama, que Adriano Moreira traduziu nestes termos: sermos todos "democráticos" à imagem do modelo constitucional americano. O americanismo primário - denunciado por Heidegger - converteu-se depois da Queda do Muro de Berlim em sonho totalitário que alimentou a globalização tal como a conhecemos nos planos financeiro e comunicacional, fora dos quais nunca houve globalização, sobretudo no sentido kantiano do termo. Falta saber qual é a natureza da relação existente entre esta globalização dos capitais e o capitalismo monopolista estudado por Paul Baran e Paul Sweezy na altura em que Tooker pintou os seus quadros: a lógica do capitalismo monopolista encontra-se viva no neoliberalismo, ou seja, este último decorre do primeiro, aprofundando e acentuando a irracionalidade da economia capitalista e dos seus efeitos nefastos sobre a qualidade de vida. Porém, se olharmos atentamente para este quadro de Tooker, vemos não só a burocracia estatal em acção vigilante - o demiurgo administrativo e o seu carácter terrivelmente anónimo e impessoal - mas também pessoas desalmadas, solitárias e alienadas que desaprenderam o que é ser independente. Ora, esta mesma imagem de abandono absoluto encontra-se trabalhada teoricamente no pensamento independente americano, bastando citar os nomes de Wrigth Mills e de David Riesman para o confirmar. Max Weber no domínio da sociologia e Franz Kafka no domínio literário são duas das figuras intelectuais que ajudaram a tomar consciência da lógica burocrática e dos seus efeitos desumanos: o quadro de Tooker pode ser interpretado como a negação de um determinado modelo de Estado Social, precisamente aquele que o identifica com a empresa social (Adriano Moreira). Herbert Marcuse denunciou a consciência feliz dos cidadãos transformados em consumidores passivos, mas nos quadros de Tooker não vemos pessoas felizes; pelo contrário, vemos autênticos zombies que vão levantar os seus subsídios sociais a uma repartição do Estado, para depois irem deambular - quais fantasmas prisioneiros da sua própria solidão! - para os grandes centros comerciais ou fazer uma incursão pelas ruas e pelos estabelecimentos de diversões padronizadas - sexuais, claro! - da noite urbana. As duas visões não são incompatíveis: o acesso facilitado superiormente ao consumo e a indústria cultural geram a consciência feliz, como se vivêssemos no melhor mundo possível, mas esta felicidade - mais aparente do que real - é conquistada à custa da perda da individualidade e do auto-governo, numa palavra, da perda da autonomia. Tooker despe as suas figuras humanas das mentiras oficiais e apresenta-as tal como são quando lhes arranca a aparência de felicidade: indivíduos que perderam o controle sobre os seus próprios destinos e o destino do mundo e que se resignaram, sem perturbar a reprodução da ordem social dominante. A consciência feliz significa precisamente conformismo e apatia perante o sistema vigente. O capitalismo conseguiu domesticar ou mesmo liquidar o único elemento que lhe pode fazer frente: o pensamento independente, a subjectividade rebelde e o uso público da sua própria razão sem a orientação de outrem. Quando definiu a sociedade unidimensional como sociedade sem oposição, Marcuse ainda podia confiar na oposição externa, mas a Queda do Muro de Berlim livrou o capitalismo dos seus inimigos externos, abrindo o espaço mundial ao triunfo do neoliberalismo. Ora, o capitalismo entregue a si mesmo e à sua lógica imanente comporta-se tal como Marx «previu»: como um sistema social desregulado que acentua de tal modo as clivagens sociais e as contradições sociais que acaba por gerar a sua própria crise. A lógica imanente do capitalismo é absolutamente necrófila: o capitalismo mata tudo e todos, tal como o demonstra a actual crise financeira e económica, deixando atrás de si um lastro de violência e de morte. O espírito capitalista, tão elogiado por Werner Sombart, enriquece poucos à custa do empobrecimento de muitos: o neoliberalismo global protagonizado pelos USA e pela União Europeia dos eurocratas alterou efectivamente a fronteira da pobreza, fazendo-a subir até ao interior do continente europeu, como observou Adriano Moreira. A subida da fronteira da pobreza para o Norte significa o fim do mundo afluente: Adriano Moreira reconhece assim que o capitalismo entregue à sua própria lógica imanente gera pobreza e miséria, ao mesmo tempo que debilita a Europa e o Ocidente. Goethe, Máximo Gorki e Georg Lukács, bem como Hegel com a sua noção profunda da tragédia no ético, já tinham denunciado a inumanidade e a falta de cultura do capitalismo: a chamada cultura do capitalismo rebaixa a humanidade, animalizando-a, sem exibir nenhuma tendência para a criação cultural; a valorização do homem e da cultura não pode ser levada a cabo no âmbito de um sistema social que valoriza apenas a actividade económica, reduzindo as coisas ao seu preço (Adriano Moreira). O capitalismo está a destruir o Ocidente: a economia com referências éticas - noção avançada por Adriano Moreira - está a desaparecer a passo acelerado, e a globalização que se operou nas últimas décadas, sob a hegemonia dos USA e da feia China e da prepotência da Alemanha no seio de uma União Europeia enfraquecida, acelerou a decadência do Ocidente: os americanos só sabem conversar sobre os preços dos bens que adquirem. Os convidados deste debate aplaudiram a globalização, sem se aperceberem que ela mina o domínio do Ocidente. Apesar de ser "bonito", o discurso da humanidade unificada é um discurso perigoso: qualquer tentativa para o realizar lançará a humanidade na miséria generalizada, ao mesmo tempo que promoverá a revolta incontrolada da natureza. O preço da globalização leviana está acima das possibilidades da natureza biológica humana e da conservação dos ecossistemas naturais: a afirmação das identidades locais como reacção à globalização em curso revela a incompatibilidade da natureza humana com o processo de globalização, cuja lógica imanente é a do princípio de identidade que subsume o particular - anulando-o - sob o geral abstracto capitalista. A globalização é totalitária e, se for consumada, nem sequer a noção de "humanidade toda igual com pequenas diferenças" (D. José Policarpo) estará a salvo: a globalização enquanto pensamento identitário não suporta a diferença. Capitalismo e totalitarismo são sinónimos. D. José Policarpo tem razão quando diz que precisamos mudar de sistema.

Prós e Contras debateu hoje (13 de Dezembro) a questão: Como devemos interpretar a crise? Conforme lembrou Fátima Campos Ferreira, esta questão já tinha sido discutida no debate anterior pela sociedade anónima; hoje foi a vez de quatro figuras públicas debaterem a mesma questão: o Cardeal Patriarca de Lisboa D. José Policarpo, Adriano Moreira, António Barreto e José Barata-Moura. Aquilo que queria meta-criticar neste debate - a apologia ingénua da globalização em curso que beneficia a curto, médio e longo prazo os interesses da China em detrimento dos interesses do Ocidente - já o fiz, recolocando em primeiro plano a questão do futuro do Ocidente num mundo hipercapitalista que caminha para o seu ocaso global. De resto, D. José Policarpo disse tudo logo no início da sua primeira participação: Já foi tudo dito sobre a crise; só falta resolvê-la. Neste mundo neoliberal global, a competição com a China e outras potências emergentes implica retrocessos sociais, alguns mais toleráveis e razoáveis do que outros, precisamente aqueles que implicam a perda do domínio ocidental e o retrocesso civilizacional. O capitalismo que, no passado, ajudou a fortalecer o domínio ocidental, é hoje o seu maior inimigo: as participações de D. José Policarpo, de Adriano Moreira e de Barata-Moura, com a excepção da de António Barreto, um defensor acérrimo da mestiçagem indiferenciada, revelam algumas contradições no seio do discurso ingénuo da globalização, visto serem críticas em relação ao pensamento único que se instalou depois do triunfo do neoliberalismo. Recusar a redução de Portugal ao factor financeiro-económico, em nome da alma, da história e da cultura (D. José Policarpo), ou recusar reduzir as coisas aos seus preços no mercado (Adriano Moreira), cada uma destas rejeições implica não só um desconforto em relação à lógica irracional e auto-destrutiva do hipercapitalismo que tudo devora, incluindo os valores, como também uma crítica velada da globalização. Não se pode ser contra o neoliberalismo sem ser ao mesmo tempo contra a globalização que ele operou e protagonizou nas últimas décadas. Assim, por exemplo, na questão do Estado Social, Adriano Moreira aconselhou recuar sem abandonar o objectivo, ao mesmo tempo que propunha, para a saída da crise, a refundação do Estado, através do discurso que diz a verdade à população para a preparar para o período de austeridade que a aguarda nos próximos anos. Ora, este discurso de refundação do Estado não é inteiramente compatível com o sentido da globalização que ameaça a soberania dos Estados-Nacionais, especulando as suas dívidas. Após ter feito a apologia dos últimos 30 anos e do bem-estar no mundo inteiro, António Barreto foi mais longe quando afirmou a fragilidade da democracia: o seu discurso foi uma reacção aos discursos de D. José Policarpo e de Barata-Moura. Corrigindo a palavra do Cardeal Patriarca de Lisboa, António Barreto afirmou que temos alma e cultura mas sem economia e sem política. E contra a perspectiva de Barata-Moura, segundo a qual quem jogou na bolsa com o dinheiro público quer recuperá-lo agora, especulando com as dívidas soberanas dos Estados periféricos, como se os especuladores americanos fossem os únicos responsáveis pela crise, António Barreto acusou os governantes portugueses e as classes dirigentes de seguirem o ensinamento de Álvaro Pais, o filósofo escolástico português que, no século XIV, estabeleceu a distinção entre guerras justas e guerras injustas para legitimar o combate contra os mouros e a sua expulsão de Portugal: prometer o que não podem cumprir. Porém, esta responsabilização política pela crise é uma co-responsabilização que envolve conjuntamente governantes e governados, o que implica uma crítica implícita da democracia vigente no mundo ocidental. Não sei se estarei a ser fiel à perspectiva de António Barreto se disser que ele vê a crise nacional como uma crise económica - a destruição do tecido produtivo, e uma crise política - a debilidade da cidadania e da democracia e a falta de lideranças políticas competentes, mas, para todos os efeitos, já ninguém duvida seriamente do carácter estrutural - e não somente externo - da crise nacional. Porém, António Barreto vai ainda mais longe quando afirma que já não temos pescadores ou agricultores para investirmos no sector primário da economia. Com esta radicalização do pessimismo - legítima, é certo! -, António Barreto acabou por denunciar a artificialidade do bem-estar - os portugueses viveram nestes últimos 30 anos acima das suas possibilidades - que tinha elogiado na sua primeira intervenção, como se o regime democrático fosse o regime da mentira organizada que nos afunda no abismo da anarquia da miséria. Para evitar a condenação literal da democracia, será melhor lembrar o seu actual carácter formal, como fez D. José Policarpo. Com efeito, numa sociedade capitalista, o poder económico detém o poder jurídico-político e o poder ideológico: o exercício da democracia num tal quadro social só é tolerado formalmente enquanto não põe em cheque o próprio sistema económico e a sua reprodução. O espectro de Marx esteve presente neste debate, quer na defesa do discurso da produção e do desenvolvimento económico, quer no discurso do carácter formal da democracia liberal. Para terminar, vou lembrar que, segundo Marx, a história tende a desenvolver-se pelo seu lado mau: colocados perante a escolha entre a verdade e a mentira, o esforço e a facilidade, a liberdade e a escravatura, os homens, sejam ricos ou pobres, escolhem a mentira, a facilidade e a escravatura. Perante esta opção catastrófica da humanidade mutilada, prefiro concluir reconduzindo para a teoria da circulação das elites de Vilfredo Pareto, lida à luz do bem-comum: precisamos de novas elites para protagonizar a mudança social qualitativa em Portugal, na Europa e no Mundo. Como disseram D. José Policarpo e António Barreto, já não temos tempo a perder!

J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Escola do Porto Revisitada

«Nestes últimos meses, a cidade do Porto, que representa o norte do país, tem manifestado verdadeira simpatia pela nossa sociedade devido ao entusiasmo de algumas almas que sonham estimular e orientar, num sentido superior e definido, as acordadas energias da Raça. /E este movimento de simpatia a favor da Renascença revela as qualidades organizadoras do norte. Será o norte, portanto, que edificará, sobre as ruínas da monarquia que o sul gloriosamente derruiu, a Democracia Lusitana. /Por isso, o Porto é o berço da Renascença, o lugar carinhoso e natal onde desabrochou para criar raízes em toda a terra portuguesa. /As manifestações da Câmara Municipal e do Centro Comercial mostram bem o que acabamos de afirmar: a plena identificação do Porto com a Renascença e o seu programa». (Teixeira de Pascoaes)

«O absoluto é dos poetas e o relativo é da ciência. O sábio observa, analisa, decompõe; o filósofo generaliza, dá o conjunto; o poeta dá o significado anímico das coisas, a sua própria natureza». «O inimigo da poesia não é o sábio verdadeiro, mas o pseudo-cientista, muito pedante do que imagina saber oficialmente. Ser homem é já ser poeta ou possesso duma grandeza misteriosa». «A essência das coisas, essa verdade oculta na mentira, é de natureza poética e não científica. Aparece ao luar da inspiração e não à claridade fria da razão». «Em todo o poeta verdadeiro existe um filósofo adormecido, como existe um poeta adormecido em todo o verdadeiro filósofo. O poeta filosofa depois de cantar e o filósofo canta depois de filosofar». (Teixeira de Pascoaes)

Já publiquei diversos textos sobre a Escola do Porto. Uso esta expressão para designar uma escola de pensamento - sobretudo filosófico - em língua portuguesa, sediada na Cidade Invicta. Não a associo apenas ao nome de Sampaio Bruno: atribuo-lhe um âmbito mais vasto, de modo a abarcar todo o pensamento filosófico e científico e até mesmo os movimentos artísticos que emergiram no Porto. Eis alguns dos links mais importantes:

1. Escola do Porto e Antropologia Existencial. (A exegese apresentada neste texto é «violenta», mas absolutamente legítima: conservo a mesma chave de leitura ou chave hermenêutica.)

2. Leonardo Coimbra, Filósofo Portuense. (Leonardo Coimbra fundou a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde foi professor de Filosofia: a sua obra é integralmente filosófica.)

3. Guerra Junqueiro e Fernando Pessoa. (Este texto permite apreender a génese da Escola do Porto, a partir da Renascença Portuguesa. Porém, a questão da génese da filosofia portuense é muito mais complexa, se pensarmos no contributo decisivo e ímpar de Sampaio Bruno. Usei a expressão filosofia portuense para quebrar o feitiço do pensamento português, a falsa identidade. )

4. Porto Filosófico. (Texto importante para compreender a génese da Escola do Porto e a estrutura geral da filosofia portuense.)

5. Guerra Junqueiro: Poesia e Filosofia. (Foi a partir desta conferência internacional que decidi iniciar o estudo do pensamento dos ilustres portuenses.)

6. Guerra Junqueiro: O Projecto da Trilogia Poética. (Analisa aspectos da obra de Guerra Junqueiro que tinham sido negligenciados no estudo anterior, mas a chave de leitura permanece a mesma, tendo sido reforçada.)

7. Teixeira de Pascoaes e o Sentido da Vida. (A controvérsia entre Teixeira de Pascoaes e António Sérgio merece ser revisitada.)

8. Jaime Cortesão: Historiador da Nacionalidade. (Este texto é um resumo muito esquemático de um trabalho mais extenso.)

9. Jaime Cortesão e os Descobrimentos Portugueses. (Membro da Renascença Portuguesa, pelo menos durante um certo período da sua vida, Jaime Cortesão permite apreender histórica e culturalmente o âmbito universal da Escola do Porto.)

10. Teixeira de Pascoaes: Materialismo e Clericalismo Científico. (Com este texto liberto o pensamento de Teixeira Pascoaes do preconceito provinciano sulista.)

11. D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto. (Infelizmente, não cheguei a concluir este texto. Refiro-o para mostrar o âmbito vasto da matriz portuense, tal como a concebo.)

J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 12 de dezembro de 2010

Walter Benjamin Revisitado

«A Revolução Copernicana na percepção histórica é a seguinte: antes o passado era o ponto fixo e o presente era visto como um esforço para aproximar tentativamente o conhecimento até esse ponto. Agora a relação deve inverter-se: o passado transforma-se em viragem dialéctica que inspira uma consciência desperta. A política mantém o seu primado sobre a história». (Walter Benjamin)

O primado da política sobre a história introduz uma novidade revolucionária no seio da teoria marxista, alterando o seu campo de forças internas: aqui reside o grande contributo de Benjamin para a teoria política marxista. A continuidade da história dos opressores deve ser quebrada e rompida pela praxis de homens dotados de consciência desperta. A imaginação dialéctica mais não é do que este despertar para a política de ruptura com a história dos vencedores. Já publiquei neste blog alguns textos sobre o pensamento de Walter Benjamin. Deixo aqui os links mais importantes:







7. Max Horkheimer: Eclipse da Razão. (Apresenta a filosofia da linguagem de Walter Benjamin.)

J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Prós e Contras: Exercício de Cidadania

«(Nos Estados capitalistas de hoje) não governa nenhum credo nem visão do mundo, mas uma insípida mediocridade e a apatia do indivíduo frente à fatalidade e àquilo que vem de cima. A nossa missão actual é, acima de tudo, assegurar que no futuro não se volte a perder a capacidade para a teoria e para a acção que nasce dela, nem sequer numa futura época de paz, na qual a rotina diária pudesse favorecer a tendência para esquecer de novo o problema. Devemos lutar para que a humanidade não fique desmoralizada para sempre pelos terríveis acontecimentos do presente, para que a fé num futuro feliz da sociedade, num futuro de paz e digno do homem, não desapareça da terra.» (Max Horkheimer)

Doença, loucura e morte foram os anjos negros que velaram o berço de Edvard Münch ao nascer: o quadro Melancolia (1894-95) aqui reproduzido não só traduz o ódio que o pintor nutria pela figura tradicional da mulher burguesa e o pânico que lhe provocava o novo modelo feminino surgido após a libertação, mas também a minha própria visão da cidadania em tempo de crise: o tema de hoje do debate Prós e Contras. A bancarrota cultural da sociedade portuguesa leva-me a encarar os portugueses como cidadãos mutilados: o interesse da classe dominante na situação da educação gerou nestas últimas décadas cidadãos metabolicamente reduzidos, incapazes de pensar para além do imediatismo da sua condição vegetativa e de resistir à irracionalidade do sistema social vigente. Portugal é, mais do que nunca, o túmulo do pensamento independente: a produção universitária em série de analfabetos diplomados colide com a ideia de um futuro feliz para o país. Portugal carece de inteligência cultivada: os zombies portugueses sentem-se intimidados pela cultura superior e pelo conhecimento. A história do pensamento português fornece-nos um exemplo clássico de eliminação do adversário: António Sérgio não suportava a "vaidade" de Oliveira Martins ou mesmo dos ilustres portuenses; a sua obra polémica é alimentada mais pela crítica subjectiva do que pela crítica objectiva de perspectivas teóricas. Fátima Campos Ferreira pensa que as Universidades portuguesas são "boas", mas não são e o próprio debate nas suas diversas ondas e derivas opinativas desiguais mostrou precisamente isso: a bancarrota cultural da sociedade portuguesa promovida activamente pelas políticas da educação, do ensino superior e da cultura. Pensar que temos "boas" universidades é abdicar do futuro: as Universidades portuguesas são literalmente antros comportamentais.

Prós e Contras foi hoje (6 de Dezembro) palco da cidadania em tempo de crise: diversos cidadãos comuns expressaram as suas perspectivas sobre o estado de miséria generalizada do país. Nomeio apenas as figuras que estiveram no palco central, embora as melhores perspectivas tenham sido expressas pelos outros convidados da plateia: Olímpia Resende (Administração Fiscal), Ana Almeida (cardiologista), José Luís Peixoto (escritor), Salvador Mendes Almeida (Fundação de deficientes físicos), José Gil Duarte (gestor turístico) e Maria João Barros (enfermeira). À primeira vista, o debate superou as expectativas de Fátima Campos Ferreira, mas, se pensarmos bem, a cidadania exibida enferma dos mesmos vícios que nos mergulharam nesta crise nacional. A visão dominante foi esta: 30 anos perdidos sem lideranças fortes, competentes e exigentes (Olímpia Resende). Porém, como vivemos em democracia, a crítica das diversas lideranças políticas que governaram Portugal nos últimos trinta anos implica necessariamente a crítica dos cidadãos que votaram nelas. Como disse um professor da plateia (Saavedra), falhámos todos, visto que todos acreditaram no Pai Natal, aliás um padrasto maléfico que não foi nada justo na distribuição social da riqueza nacional, incluindo os fundos financeiros provenientes da União Europeia. Ora, se dermos algum crédito à tese de que hoje os portugueses estão mais informados (Ana Almeida) do que estavam em 1983, quando o FMI pousou na Portela, então somos obrigados a questionar a qualidade da informação fornecida pelas figuras mediáticas - as celebridades bombásticas e saloias do triste centralismo lisboeta - e pelo sistema de ensino e de educação. De um modo geral, os convidados foram mais propensos a denunciar o negativismo dos telejornais (José Luís Peixoto) do que a qualidade do ensino administrado pelas escolas e universidades portuguesas, apesar destas instituições estarem intimamente ligadas - e talvez de modo corrupto ou ilícito. Com efeito, cidadãos bem informados, curiosos e dotados de boas ferramentas teóricas não se deixam enganar facilmente: os portugueses foram enganados porque desejaram ser enganados (Maria João Barros), pensando mais com a barriga do que com a cabeça. E, o que é preocupante, mostraram desejar continuar a ser enganados: os discursos do jovem arquitecto ou de Salvador Mendes Almeida mostraram que as gerações mais jovens - as dos recibos-verdes e do emprego precário - continuam deslumbradas com a possibilidade de riqueza fácil, de preferência garantida pelo Estado-Papá. Continuam a exigir ao Estado aquilo que este já não pode dar: as excepções à medida de austeridade de redução dos salários da função pública - o caso Açores - mostram que não há coesão social - e muito menos solidariedade - em Portugal. Apesar de vivermos uma situação de vida ou de morte, os portugueses parecem alimentar a mesma esperança que os levou a encarar a entrada na UE e na zona Euro como a salvação nacional. A esperança messiânica não se concretizou, mas a desilusão ainda não está verdadeiramente instalada: os portugueses têm dificuldade em encarar a realidade de frente, sem drogas paliativas, e, sobretudo, em assumir responsabilidade pelo seu triste fado (José Gil Duarte). Alguém disse que o maior erro da geração dos 35 aos 50 anos reside no facto de ter ficado deslumbrada com a riqueza aparente e fácil - riqueza resultante do endividamento público e privado irracional, deixando os partidos esvaziar-se. A solução proposta é entrar nos partidos e exigir novas lideranças, de resto uma solução infantil que pode encobrir outro interesse mais egoísta e mesquinho: usar os partidos políticos como plataformas para promover os interesses privados em detrimento do interesse nacional. Pessoas que se deixaram enganar por lideranças políticas e económicas medíocres, deslumbradas como estavam - e continuam a estar - com a riqueza fraudulenta em si e para si, não merecem credibilidade: o futuro de Portugal não pode ser confiado a pessoas arrependidas. Saavedra só acordou desse sonho de vida fácil há cerca de seis meses, mas nem todos os portugueses desejam acordar para a realidade. A sociedade civil opõe resistência à mudança social qualitativa: o sentimento de medo referido por José Duarte deve ser visto como medo de perder uma vida improdutiva e inautêntica - consumida no consumo embrutecedor de bens e de serviços - sustentada e garantida pelo Estado.

Eu sou um teórico crítico e, nessa qualidade, não posso perder a oportunidade para desenvolver o pensamento crítico e dialéctico, procurando introduzir a razão no mundo. Ora, esta função social da Filosofia exige uma análise profunda da sociedade portuguesa e do carácter nacional: os cidadãos comuns não estão acima da crítica, até porque eles também são responsáveis pela situação de miséria em que vivemos. Detesto privar, isto é, "socializar" com portugueses, porque sei que essa "luso-socialização" é pura perda de tempo. Não podemos construir um mundo novo com indivíduos que se alienaram do mundo ou discutir racionalmente fragmentos do mundo com criaturas desprovidas de conceitos teóricos e históricos! Entre portugueses reina a futilidade! Algumas intervenções neste debate entre cidadãos comuns confirmam a minha desconfiança em relação à capacidade analítica dos portugueses: Ana Almeida defendeu - e bem! - a optimização dos cuidados médicos, sugerindo a atribuição de prémios ou o aumento salarial como estímulos pecuniários para obter esse efeito; o estudante de arquitectura desconhece o mundo anterior ao seu nascimento, como se o mundo tivesse surgido depois do seu nascimento e a função da escola fosse prepará-lo para usufruir sem esforço uma vida de riqueza; Salvador Mendes Almeida anseia - em nome da igualdade castradora - pela colaboração do Estado para converter o país numa arena de deficientes físicos e mentais; a vendedora ambulante de castanhas, além de fazer da castanha assada um prato típico de Lisboa, gosta que as pessoas tenham inveja de si e do seu triunfo na vida; José Luís Peixoto prefere o protesto à resignação, como se a produção cultural real fosse promovida pelos subsídios do Estado; Olímpia Resende quer que o Estado pague atempadamente as suas dívidas aos privados, como se a crise de valores - a sua versão da inversão dos valores! - derivasse do atraso desses pagamentos; José Duarte anseia por uma economia ao serviço do homem, ao mesmo tempo que usa e promove as velhas receitas económicas, precisamente as que colocaram o homem ao serviço da economia, para operar essa mudança mental de paradigmas; e Saavedra acordou demasiado tarde para a realidade nua e crua do país. Enfim, intervenções deste tipo mostram claramente que a sociedade civil portuguesa está dependente do Estado. A sociedade portuguesa está efectivamente doente, como disse Maria João Barros: as soluções sectoriais propostas por alguns destes cidadãos comuns derivam de uma análise errada da situação de crise do país: em vez do emagrecimento saudável do Estado, as soluções propostas engordam-no cada vez mais, ao mesmo tempo que alimentam o cenário terrível de um país de velhos (Ana Almeida) a cuidar da sua própria decadência física e mental. Ora, este comportamento egoisticamente geriátrico e necrófilo corrobora a minha tese da bancarrota cultural da sociedade portuguesa. Se as escolas e as universidades portuguesas tivessem cumprido a sua real função, teríamos assistido a um outro tipo de debate mais inteligente e construtivo entre cidadãos adultos, responsáveis e suficientemente competentes para não con-fundir num mesmo mundo simbiótico o mundo interior e o mundo exterior. Em vez de um debate entre adultos racionalmente competentes, assistimos a um debate entre adultos que se comportam como crianças perante o Estado e o mundo comum. Seria demasiado fácil recorrer novamente ao depoimento do estudante de arquitectura para esclarecer o fenómeno regressivo que acabei de diagnosticar, mas prefiro acentuar a insensibilidade social exibida pelos presentes em relação ao sem-abrigo, cuja participação teve piada, além de ter sido relevante, bem como a sua indiferença intelectual em relação às propostas do "sueco amante de Portugal". Apesar de terem esbarrado contra ouvidos fechados ao conhecimento crítico, estas duas participações detectaram as raízes estruturais da crise nacional: as famílias que cercaram Salazar - isto é, o Toni - são as mesmas que cercam as lideranças políticas da III República. A solução de mudar de capital é, portanto, pertinente, como meio para combater a corrupção e o centralismo exacerbado, mas esta mudança não precisa ser física para realizar o efeito pretendido, bastando não concentrar na capital política a capital social, a capital económica, a capital financeira, a capital comunicacional e a capital cultural. A definição kantiana de iluminismo - como a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado - ajuda-nos a compreender o atraso estrutural de Portugal: um povo infantilizado anseia sempre por lideranças fortes (Olímpia Resende) ou pela vinda de estrangeiros (o FMI de José Luís Peixoto), porque nunca foi capaz ao longo da sua história de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Cientes da menoridade do povo português, e aproveitando a efeméride da morte de Francisco Sá Carneiro - aquele que nunca demonstrou efectivamente as suas qualidades de líder político, prestando-se por isso aos abusos da mitologia política, o PSD e o CDS já sonham com uma nova Aliança Democrática, isto é, com a vinda de um novo ciclo ditatorial. Um Presidente, uma maioria absoluta no Parlamento e um Governo de Direita Conservadora e Reaccionária! E o povo imbecilizado (Guerra Junqueiro) aplaude a sua própria dominação!

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Prós e Contras: Visões de uma Economia em Risco

«A dívida pública criou uma classe de capitalistas ociosos, enriqueceu, de improviso, os agentes financeiros que servem de intermediários entre o governo e a nação. As parcelas da sua emissão adquiridas pelos arrematantes de impostos, comerciantes e fabricantes particulares proporcionam-lhes o serviço de um capital caído do céu. Mas, além de tudo isso, a dívida pública fez prosperar as sociedades anónimas, o comércio com os títulos negociáveis de toda a espécie, a agiotagem, em suma, o jogo de bolsa e a moderna bancocracia». (Karl Marx)

«A crescente concentração da riqueza nas mãos de uns poucos. O esmagamento de muitos pequenos produtores pelos grandes produtores. A crescente miséria das massas. A ocorrência de colapsos periódicos no sistema - as crises, cada qual mais devastadora do que a outra. O trabalho cria, o capital apropria-se.» (Leo Huberman)

Este quadro de Edward Hopper - Sunday, 1926 - ajuda a esclarecer o que aí vem: a Grande Depressão de 1929 não só marcou a pintura de Hopper, como também foi lembrada hoje no debate moderado por Fátima Campos Ferreira. O Prós e Contras de hoje (29 de Novembro) confrontou algumas visões da nossa economia em risco: Henrique Medina Carreira, Daniel Oliveira, João Confraria, José Castro Caldas, João Ferreira do Amaral e Miguel Morgado deram voz a diversas perspectivas económicas, sem no entanto conseguirem encaixar a economia numa teoria crítica da sociedade. Ora, na ausência de uma teoria da sociedade, não é possível transcender a crise económica que mergulha Portugal no abismo da bancarrota e a Europa na desagregação: o libertário Daniel Oliveira aceita aquilo que supostamente critica - o neoliberalismo. Contra Medina Carreira que defendeu a neutralidade mágica dos números, Daniel Oliveira afirmou - e com absoluta razão - que uma discussão económica é sempre uma discussão ideológica e política. Porém, a sua ideologia libertária é tributária do neoliberalismo: ele quer dar aos portugueses aquilo que estes não produzem. A economia mágica de Daniel Oliveira é a economia do endividamento público, isto é, do capital caído do céu: a sua ideologia libertária, profundamente individualista, anti-social e anti-humana, faz dele um parasita do neoliberalismo e das engenharias financeiras que conduziram à actual crise financeira e económica. O pensamento libertário ou esquerdista de Daniel Oliveira, que Lenine já tinha denunciado sabiamente como a doença infantil do pensamento político de Esquerda, limita-se a operar uma inversão no seio do próprio darwinismo social: distribuir os rendimentos dos muito ricos pelos mais pobres, sem levar em conta a capacidade produtiva do país. A afirmação de João Confraria de que a Europa nos é, doravante, adversa pode ser usada aqui para quebrar o feitiço económico de Daniel Oliveira: as torneiras que financiaram a modernização simbólica (John K. Galbraith) de Portugal estão a ser fechadas. O esquerdismo infantil de Daniel Oliveira e o keynesianismo enigmático de Castro Caldas - confesso que não o compreendi bem, mas a culpa até pode ser minha! - não estão preocupados com a produção económica real e efectiva: atribuem ao Estado uma função paternal, ou seja, a de garantir um nível elevado de vida aos seus cidadãos-filhos, como se o capital caísse do céu, qual mana dos polinésios. Esta concepção mágica da produção do capital instalou-se efectivamente em Portugal e na Europa: o poder político e económico estabelecido levou os portugueses a acreditar que a União Europeia e a Zona Euro iriam subsidiar eternamente os seus luxos e a sua improdutividade endémica. Para os portadores deste pensamento mágico, o Estado é o papá que dá aos seus filhos um cartão de crédito ilimitado: os portugueses não precisam de estudar e de produzir para melhorar a sua situação existencial; basta-lhes endividarem-se para manter a mentira organizada - o aspecto moderno - que é Portugal das últimas três décadas. Convém dizer que a modernização de Portugal operada nas últimas décadas é absolutamente simbólica: os grandes investimentos públicos - o novo aeroporto de Lisboa, a terceira travessia do Tejo e o TGV - previstos pelo actual governo socialista são simbólicos. A modernização simbólica limita-se a dar ao país o aspecto de progresso: um aeroporto apropriadamente brilhante, edifícios de Estado adequadamente imponentes, diversas auto-estradas e vias rápidas, um plano económico aparente, um enorme projecto hidroeléctrico e/ou de energias renováveis, a intenção de criar empresas de inovação tecnológica e, acima de tudo, um défice na balança de pagamentos. Porém, a modernização simbólica não implica o avanço do bem-estar económico real do povo; pelo contrário, o bem-estar económico é retardado e o pagamento desses investimentos públicos é transferido para as gerações futuras. No fundo, a modernização simbólica é um estratagema político para enganar o povo, como disseram Medina Carreira e Miguel Morgado, levando-o a acreditar que alguma coisa está a ser feita quando, na verdade, as construções públicas dispendiosas e improdutivas são usadas para comemorar a existência dos políticos do arco do poder - PSD e PS - e a sua ineficiência à custa do interesse público real. Como disse Medina Carreira, Portugal não tem crescido economicamente nestas últimas décadas, apesar da despesa pública ter duplicado: Portugal é, efectivamente, uma enorme mentira organizada pelas elites do poder. A crise financeira e económica teve, pelo menos, o mérito de acordar alguns portugueses deste longo sonho mágico, abrindo os horizontes do seu triste e feio mundo - um mundo profundamente corrupto e cunhista, não-competitivo e sem mérito - a uma outra perspectiva mais realista do futuro nacional, desta vez assente numa política racional de desenvolvimento económico no quadro de um mundo cada vez mais global e mais competitivo.

Outra maneira de chamar a atenção para a ausência de uma teoria da sociedade - detectada neste debate - pode ser formulada dizendo que os intervenientes tendem a identificar a sociedade com a economia, isto é, a colonizar todas as esferas sociais e culturais com a terrível gestão económica. O neoliberalismo é precisamente esta colonização da sociedade e do mundo da vida pela economia de mercado capitalista: o seu economicismo intrínseco é o responsável pela decadência do Ocidente. A sociedade é reduzida a um agregado de empresas ou de instituições não-económicas geridas em termos estritamente económicos. A racionalização defendida por João Confraria - ou mesmo a neutralidade ideológica dos números de Medina Carreira - mais não é do que a colonização dessas instituições públicas pela racionalidade funcional ou instrumental, isto é, a sua subjugação à racionalidade que encontramos em acção na tecnologia, na economia e nas instituições burocráticas. Ora, uma tal racionalidade funcional não implica grandes doses de pensamento ou de reflexão teórica: basta-lhe uma atitude calculadora, classificatória e manipuladora da realidade. Os economistas neoliberais querem moldar a realidade à imagem dos seus pobres e distorcidos modelos económicos ou, o que é ainda pior, submetem a realidade à violência dos números sistematicamente distorcidos, manipulados e falsificados e dos cálculos ideológicos usados para os obter. O neoliberalismo que protagoniza actualmente esta racionalidade funcional é, na sua essência profunda, capitalismo transcendental no sentido que lhe deram Adolf A. Berle e Gardiner C. Means na obra The Modern Corporation and Private Property: uma sociedade onde a produção está a ser realizada sob o controle básico de um punhado de indivíduos - deslumbrados pela riqueza em si e para si - que controlam organizações - sociedades anónimas e mercados financeiros - que se aproximam mais de instituições sociais do que de empresas privadas materialmente produtivas. De certo modo, o neoliberalismo é a ideologia profissional que os economistas e os gestores inventaram e usaram em benefício próprio, para substituir o empresário tradicional pela figura do capitalista ocioso encarnada por eles próprios. Com efeito, colonizar a sociedade pelas forças irracionais da rentabilidade económica e da propriedade privada é colocá-la sob o controle deste grupo profissional: a sua suposta neutralidade ideológica é, toda ela, profundamente ideológica. A rejeição categórica da herança teórica e política de Marx - encabeçada explicitamente neste debate por João Confraria que receia a ocorrência de uma revolução social idêntica à Revolução de Outubro de 1917 - denuncia, ela própria, o carácter ideológico do governo económico da sociedade, da cultura, do mundo da vida e da personalidade. O capital não tem pátria e, por isso, não devemos ficar espantados com o facto de Medina Carreira e dos economistas em geral serem pró-FMI/Comissão Europeia: a circulação global de capital e dos seus portadores, que iludiu Zygmunt Bauman, levando-o a pensar que a mobilidade constituía a marca decisiva do mundo global, mostra até que ponto este grupo profissional perdeu as suas raízes nacionais, culturais e civilizacionais. Aliás, os economistas oficiais da ordem estabelecida perderam totalmente a experiência de vida e, por isso, vivem mergulhados num mundo alienado. Neste debate, a única voz moderada que se ergueu contra a vinda dos estrangeiros foi a de Ferreira do Amaral. Além de ter dito que o FMI não traz nenhuma outra medida de austeridade que não esteja contemplada no actual Orçamento de Estado, Ferreira do Amaral mostrou-se desiludido com a União Europeia: a Europa de hoje não tem futuro, porque a moeda forte divide os Estados membros, sem permitir o crescimento económico dos países periféricos - Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha - na zona Euro. Os Estados não podem estar dependentes dos mercados financeiros: Com esta afirmação, Ferreira do Amaral demarcou-se claramente dos seus colegas de debate, que defenderam o governo económico da Europa, a vinda do FMI ou a racionalidade que supostamente move os mercados financeiros.

Porém, quando avançou com a ideia do Sistema Nacional de Saúde como um seguro de saúde, com o seu próprio orçamento independente, Ferreira do Amaral recua, voltando a reintroduzir a gestão económica numa esfera autónoma da sociedade, sem se aperceber que a saúde e a educação como bens são completamente distintas dos bens económicos. O crescimento económico de Portugal exige reformas estruturais, em especial as reformas da Administração Pública, da Segurança Social, da Educação, do Serviço Nacional de Saúde, da Justiça, do modelo vigente de Estado Social, do Sistema Político, e do próprio Estado. Mas as linhas gerais destas reformas estruturais não dependem exclusivamente de estudos numéricos sectoriais, como defendeu Medina Carreira. A sociedade portuguesa precisa libertar-se da tirania económica: o economicismo que impõe os seus modelos funcionais a todas as esferas da sociedade contribui decisivamente para o aprofundamento do processo inumano de burocratização e de controle total de toda a vida social e cultural, anulando o pluralismo e a democracia, asfixiando a liberdade individual e a criatividade, e agravando as desigualdades sociais e regionais. (Medina Carreira é contra a regionalização!) O economicismo é, politicamente falando, um fenómeno proto-fascista: a racionalização funcional da sociedade e da cultura, do homem e da sua consciência, nega a autonomia a todos os outros níveis estruturais da sociedade, gerando uma uniformidade sem imaginação favorável à irrupção do fascismo. Se não travarmos a racionalização funcional em curso, em nome de uma outra racionalidade mais substantiva - a racionalidade dialéctica, o economicismo conduz-nos a um recuo social e civilizacional. Os modelos da economia neoclássica - uso esta expressão no sentido lato que lhe deu Robert L. Heilbroner - devem ser criticados e confrontados com a ideologia nefasta que lhes é subjacente: entregues a si mesmos, como se fossem verdades absolutas, eles estão a moldar uma realidade absolutamente irracional. Conforme demonstraram Paul A. Baran e Paul M. Sweezy, a ordem social e cultural própria do capitalismo é irracional e necrófila: a instituição da propriedade privada inibe, altera e derrota os esforços para desfazer as desigualdades sociais, com as quais todos nós aprendemos a viver e a não pensar seriamente nelas. O pensamento burguês gosta de naturalizar aquilo que não é efectivamente "natural": a sua visão da ordem social capitalista é inteiramente fetichista. Não admira que um economista conservador e reaccionário como Murray Wolfson denuncie o historicismo inerente à economia marxista! A actual crise financeira e económica mostra a historicidade concreta e intrínseca da ordem social capitalista, ao mesmo tempo que refuta cabalmente os modelos económicos neoliberais e a realidade social à escala global que moldaram nas últimas décadas. A situação precária do mundo desafia a imaginação dialéctica com a irracionalidade do sistema capitalista como um todo e não apenas dos processos reais de produção: a sociedade gerada pelo neoliberalismo é irracional na sua totalidade, e essa irracionalidade que se apossou dos "seus" homens bloqueia a própria tarefa política da teoria crítica. A teoria social é, como disse Herbert Marcuse, teoria histórica, e a história é o reino da possibilidade no reino da necessidade: os conceitos elaborados pela teoria crítica da sociedade devem culminar na mudança social qualitativa, mas isso só pode suceder se forem realizados real e efectivamente pela praxis histórica de homens concretos libertos do deserto ideológico promovido pela tirania economicista neoliberal. Em Portugal, a destruição do sistema de ensino e de educação, levada a cabo em nome de objectivos obscuros, operou sistematicamente uma mutilação cognitiva do indivíduo que, somada à sua mutilação afectiva e à sua loucura, o animalizou de tal modo que ele já não sabe o que é ser humano. A atrofia dos órgãos mentais e a regressão cognitiva, operadas pela burocratização do ensino e da educação, com a ajuda preciosa dos meios de comunicação de massas, funcionam como mecanismos psicológicos - ou psicopatológicos! - que garantem a perpetuação da irracionalidade da ordem social capitalista: o sistema capitalista não só devasta a natureza, gerando uma terrível crise ecológica, como também nega a humanidade aos homens. O princípio necrófilo que lhe é inerente conduz inexoravelmente o mundo à catástrofe. A tarefa de reinventar uma nova sociedade irá ser muito lenta e prolongada, na medida em que requer a reinvenção do próprio homem.

J Francisco Saraiva de Sousa