terça-feira, 6 de outubro de 2009

Georg Lukács: Marxismo ou Existencialismo?

«O actual pensamento burguês atravessa uma crise, pois debate-se continuamente entre um empirismo ateórico e a abstracção sem qualquer conteúdo real. A razão metodológica destas dificuldades (que se explicam naturalmente pela realidade social) reside simplesmente no facto de que as suas categorias de base se referem a um homem abstracto, supra-histórico, a partir do qual não é já possível voltar aos problemas da realidade histórica presente.»
«A tendência dominante da filosofia no estádio do imperialismo consiste em negligenciar as condições sociais, em considerá-las como dados secundários não afectando a "essência da realidade humana"». (Georg Lukács)
A obra de Georg Lukács (1885-1971) deve ser lida à luz dos acontecimentos que marcaram o mundo contemporâneo que, depois da Queda do Mundo de Berlim - o símbolo do colapso da construção do comunismo, assistiu ao triunfo do neoliberalismo e da globalização que justificou durante longos anos sombrios o predomínio do pensamento único, para finalmente mergulhar na maior crise financeira e económica que acossou o capitalismo desde a crise de 1929. Na sua obra Die Zerstörung der Vernunft (A Destruição da Razão, 1954), Lukács empreende uma crítica integral e radical do pensamento filosófico contemporâneo, mais precisamente da história da filosofia alemã, desde a filosofia burguesa clássica até à filosofia do imperialismo, passando pela filosofia dos compromissos sociais dominada pela filosofia dos professores, ou seja, desde Schelling até Heidegger e Jaspers, passando por Nietzsche, Dilthey, Toynbee, Spengler, o vitalismo e o neodarwinismo, de modo a esclarecer os antecedentes ideológicos do nacional-socialismo e a instar o povo de Dürer e de Thomas Münzer, de Goethe e de Karl Marx, a libertar-se da vergonhosa herança do irracionalismo que culminou com as loucuras assassinas do Terceiro Reich. Esta tentativa de esclarecer as raízes intelectuais do fascismo foi muito mal recebida no auto-intitulado mundo livre, não só pelos marxistas como também pelos não-marxistas que admiravam a análise filosófica da teoria de Marx realizada por Lukács em Geschichte und Klassenbewusstein (História e Consciência de Classe, 1923), obra hoje quase lendária, que lhe valeu uma campanha de ataques violentos dentro do movimento comunista. Se esta obra, posteriormente renegada, se tornou um caso lendário no mundo ocidental, o mesmo não pode ser dito da sua obra A Destruição da Razão que Susan Sontag qualifica como "um pequeno tratado, desprezível e simplista, contra a moderna filosofia", Eugene Lunn, como "um dos seus livros mais débeis", e George Lichtheim, como uma obra para esquecer. Mas estes "críticos literários pequeno-burgueses" são, eles próprios, vítimas da filosofia do imperialismo que procurou uma terceira via para além do capitalismo e do socialismo, para além do idealismo e do materialismo, da qual resultou o próprio fascismo e, mais recentemente, o neoliberalismo, com o triunfo efémero do qual se cumpriu a profecia de Lukács: o ataque romântico de Nietzsche contra a cultura capitalista e a Kulturkritik de Simmel acabaram por conduzir a "uma apologia indirecta do capitalismo".
A Destruição da Razão é uma defesa do racionalismo contra o cepticismo irracionalista que estabelece uma separação radical entre o ser e o pensar, como se a verdade do ser fosse de todo impenetrável à razão discursiva. Contra o irracionalismo, Lukács defende que a verdade sobre o mundo é acessível à razão, desde que se recorra ao domínio seguro da dialéctica hegeliana da aparência e da realidade. A defesa da razão aproxima o empreendimento de Lukács da obra de Karl Popper - A Sociedade Aberta e os seus Inimigos (1943), na medida em que ambos procuram compreender o totalitarismo, fazendo a defesa do realismo epistemológico, mas uma diferença crucial separa estes dois empreendimentos filosóficos: Karl Popper limita-se a identificar perigosa e arbitrariamente o pensamento dialéctico e o totalitarismo, deixando de lado o nazismo e o fascismo, enquanto Lukács se preocupa em explicitar as raízes intelectuais do nazismo e o seu advento na Alemanha. Em termos kantianos, o empreendimento filosófico de Lukács procura dar resposta a esta questão: Como foi possível o Holocausto? A resposta de Lukács filia A Destruição da Razão (1954) à grande tradição filosófica que engloba Origens do Totalitarismo de Hannah Arendt (1951), Dialéctica do Esclarecimento de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno (1944), O Medo à Liberdade de Erich Fromm (1941) e Psicologia de Massas do Fascismo de Wilhelm Reich (1946), bem como, mais recentemente, Modernidade e Holocausto de Zygmunt Bauman (1989). A solução de Lukács é demasiado complexa e liga-se estruturalmente à questão nacional alemã, mas não é o problema do desenvolvimento nacional da Alemanha e o adiamento da sua revolução democrática que nos interessa reter: o que realmente interessa é o núcleo teórico desta obra de Lukács. A preocupação principal de Lukács é a defesa da razão dialéctica contra os seus detractores irracionalistas: os herdeiros de Schelling. Usei intencionalmente o conceito de razão dialéctica, em vez de realismo epistemológico, para evidenciar que Lukács refere a teoria leninista do conhecimento lida à luz das anotações de Lenine sobre Hegel e a sua dialéctica, o que lhe permitiu demarcar-se da vulgata estalinista que elimina a dialéctica juntamente com o idealismo hegeliano e desforrar-se dos seus críticos comunistas: a compreensão plena d'O Capital de Karl Marx exige a compreensão plena da lógica hegeliana (Lenine). Mas o confronto estabelecido com a visão de Karl Popper do totalitarismo permite-nos redefinir a preocupação de Lukács usando os termos popperianos contra o próprio Popper: a defesa da razão dialéctica é a defesa da sociedade aberta contra a sociedade fechada. Com esta redefinição da preocupação de Lukács, a filosofia política de Popper é completamente desmisficada: a associação estrutural entre dialéctica e totalitarismo torna-se ideologicamente insuportável e desmentível, na medida em que o advento do totalitarismo não foi promovido pelo pensamento dialéctico, mas sim pelos herdeiros de Schelling que abraçaram o irracionalismo subjacente ao idealismo subjectivo.
Desprovido de uma verdadeira concepção de sociedade, Karl Popper distingue dois tipos de sociedades: as sociedades fechadas, que "se caracterizam pela sua organização tribal, colectivista ou pelo componente mágico", e as sociedades abertas, que são todas aquelas "em que o indivíduo se confronta com decisões pessoais". No fundo, o critério usado por Popper para distinguir os dois tipos de sociedades é a institucionalização - ou não - da crítica: a sociedade aberta é uma sociedade democrática que institucionalizou uma forma de crítica dos governantes - a possibilidade de demissão do governo, enquanto a sociedade fechada obedece a uma outra tradição, a tradição dogmática, que Popper identifica com a tradição do mito. Mesmo aceitando esta distinção puramente formal, tal como os conceitos formais de liberdade e de democracia que dela resultam, a tese popperiana da ligação entre totalitarismo e dialéctica não resiste à crítica: a dialéctica é pensamento crítico e, como tal, incorpora toda a tradição crítica do Ocidente. (:::)
Fazendo eco do seu passado comunista, Karl Popper enuncia a sua tese relativamente à actualidade nestes termos: "aqui no Ocidente vivemos no, em termos relativos, melhor mundo, no mais justo, mais solidário que jamais houve na história: no mundo livre, no mundo onde temos as maiores possibilidades, num mundo onde podemos falar livremente. Um mundo como nunca antes houve", cujas virtudes "foram em parte geradas por marxistas". Sempre que afirma em voz baixa que as virtudes do mundo livre e aberto foram geradas pelo marxismo, Popper desmente a sua tese política básica que associa intimamente a dialéctica ao fenómeno do totalitarismo. A dialéctica que configura todo o pensamento negativo é completamente avessa ao historicismo oracular que Popper lhe atribui: "a convicção de ter descoberto leis históricas capazes de fazer antever o curso dos acontecimentos históricos". Se a história obedecesse a leis objectivas, quase naturais, que determinassem o curso dos acontecimentos históricos, a dialéctica seria supérflua, porque num mundo completamente determinado não haveria lugar para a liberdade humana. A abertura do campo da história humana inviabiliza todo o pensamento não-dialéctico que defende a unidade do método científico: os métodos das ciências naturais são inadequados para a compreensão do campo da história do homem. Opôr a previsão científica à profecia histórica, como faz Popper, é tomar partido pelo historicismo tal como o define. Sem ter consciência disso, Popper perfilha o historicismo que atribui erradamente aos seus adversários marxistas: a naturalização da história das sociedades humanas é uma ideia absolutamente anti-dialéctica, que, se fosse levada a sério, paralisaria a praxis humana de transformação do mundo, toldando a consciência histórica e a imaginação política. O historicismo marxista tal como o apreendem Lukács ou Gramsci é a negação do historicismo que Popper atribui ao marxismo, ou seja, o marxismo devolve a Popper a crítica que este lhe dirige: a miséria do historicismo - o título de uma das obras de Popper - é o historicismo da miséria presente, na medida em que a apologia popperiana da sociedade aberta se converte na apologia da sociedade capitalista que, apesar da vigência formal da democrática, continua a gerar e a agravar as desigualdades e as assimetriais sociais, políticas, económicas, geográficas, regionais e culturais. Ao destronar a razão dialéctica a favor do entendimento, o racionalismo crítico de Popper fica cego diante das forças obscuras e verdadeiramente fascistas que ameaçam internamente a sociedade aberta, e, em vez de tirar da crise que atormenta a filosofia a conclusão socialista, faz a apologia do neoliberalismo. O racionalismo crítico é, politica e historicamente, uma filosofia antidialéctica, portanto uma filosofia desprovida de verdadeira compreensão histórica, e, por isso, engana-se sobre a realidade, fazendo do presente uma "lei eterna" ou uma "existência eterna", que, sem estremecer de remorso, vergonha e arrependimento, afirma ser a melhor existência que jamais houve na história. Todos os homens que morreram ou que vivem em sofrimento protestam contra esta pretensão popperiana de vivermos no melhor mundo que jamais houve na história: as aspirações da humanidade não se espelham numa sociedade que gera pobreza, corrupção, exploração, opressão e miséria!
A leitura d'A Destruição da Razão deve ser reforçada pela leitura de outras três obras de Lukács: Der Junge Hegel (1948), Zur Philosophischen Entwicklung des Jungen Marx (1954) e Existencialismo ou Marxismo? (1949). A última obra completa a primeira ao incluir o existencialismo de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Maurice Merleau-Ponty como a última variante e a mais evoluída da filosofia do imperialismo, cuja epistemologia derivada do idealismo subjectivo implica a rejeição do socialismo. A ideologia irracionalista é acusada de transformar, mistificando-a, a condição do homem do capitalismo imperialista numa condição humana geral e universal. (:::)
(Em construção) J Francisco Saraiva de Sousa

3 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Vejo agora que segui um caminho demasiado complexo, cuja iluminação exige estudos prévios mais aprofundados. O reformismo teve a sua responsabilidade no Holocausto, mas prefiro clarificar o irracionalismo que levou a filosofia a perder o rumo certo: a recepção de nietzsche e de Heidegger por parte da esquerda contribuiu para o fracasso do socialismo. Ao perder o contacto com a economia, a filosofia tornou-se mitologia conceptual que reflecte na teoria uma realidade alienada. A esquerda esvaziou-se de conteúdos e abandonou o projecto de mudança: a esquerda instalada é o maior inimigo do pensamento de esquerda. Este fracasso da esquerda ajuda a compreender o triunfo do neoliberalismo e a ausência de alternativa de esquerda à crise do capitalismo. A anarco-esquerda libertária é um paradoxo: quer ser libertária e, ao mesmo tempo, precisa de um estado forte para alimentar a sua indigência cognitiva. Ora, uma tal esquerda de classe média é vulnerável à investida fascista. Aliás, a sua atitude aristocrática herdada de Nietzsche é já fascizante!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A profecia de Lukács cumpre-se: o fantasma do fascismo assombra a Europa e o mundo. É nesta chave que devemos ler Lukács! A divisão do trabalho capitalista invadiu a cultura, neutralizando-a, e a filosofia do imperialismo tentou fugir dessa clausura abrançando o irracionalismo que preparou o fascismo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Afinal, até está a correr bem: em vez de recapitular a teoria de Lukács, a mudança de terminologia permite actualizá-la, dando-lhe um alcance mais profundo e actual. :)