quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Os Bantos e a Homossexualidade

«Uma vigilância muito estrita durante a noite e abundância de luz eléctrica em toda a parte, que ilumine os dormitórios a qualquer momento, serão medidas talvez recomendáveis e efectivas. Contudo, a conclusão que se impõe quando se estuda este doloroso assunto - a homossexualidade entre os bantos - é de que, como a civilização branca é responsável pela introdução e desenvolvimento terrível deste vício entre os indígenas, os Brancos não devem ser indiferentes à repressão do flagelo que é uma iniquidade que ameaça a própria vida da tribo do sul de África». (Henri A. Junod)
Os lideres dos países não ocidentais, nomeadamente Robert Mugabe, entregam-se irracionalmente ao processo de apagar as relações homossexuais da história das suas culturas, acusando os ocidentais pela introdução e desenvolvimento da homossexualidade entre as populações indígenas, mas a verdade é que a atracção homossexual é universal na condição humana. A colonização europeia pode ser acusada de tudo, menos de ter introduzido as relações homossexuais entre as populações indígenas colonizadas: a colonização das mentes levada a cabo pelos missionários consistiu em alterar as ideias indígenas sobre o sexo, a sexualidade e o género que não encaixavam nos modelos judaico-cristãos desenvolvidos na Europa Ocidental. Os missionários fizeram aquilo que já era feito na Europa Ocidental: reprimir e proibir todas as relações sexuais que não estivessem ao serviço da reprodução. As sexualidades não reprodutivas praticadas naturalmente nessas culturas africanas, americanas e asiáticas foram sujeitas à homofobia cristã. As sociedades africanas pré-coloniais foram sempre capazes de construir um espaço viável para as pessoas que diferiam da maioria, isto é, para as minorias eróticas, mas, aquando da colonização europeia, os missionários cristãos e os ocidentais julgaram ter adquirido o direito exclusivo de propagar a homofobia pelo mundo inteiro. Através da aceitação colonizada da hegemonia cultural e dos preconceitos sexuais ocidentais, as sociedades colonizadas foram forçadas a iniciar a erradicação dos seus nichos eróticos para os dissidentes sexuais. No mundo ocidental, os gregos e os romanos tinham construído nichos culturais para as diversas sexualidades (Amy Richlin), mas, com a adopção do cristianismo como religião oficial de Roma por parte do imperador Constantino I, o Grande, a situação alterou-se radicalmente: a terrível noção judaica do sexo-para-procriação substituiu a noção pagã do sexo-por-prazer. Esta mudança de concepção da sexualidade foi determinada pela passagem do politeísmo para o monoteísmo. O monoteísmo é, por definição, heterosexismo: um único Deus, uma única sexualidade - a heterossexualidade - colocada ao serviço da continuação da espécie humana, um único acto sexual permitido - o pénis na vagina, enfim a consagração exclusiva do casamento heterossexual e da família heteroparental. Em 342, Constante I (Ocidente) e Constâncio II (Oriente), filhos do primeiro imperador cristão de Roma, aboliram o reconhecimento de facto dos casamentos homossexuais. A lei imperial foi gradualmente cristianizada e o paganismo abolido. O primeiro castigo corporal por homossexualidade registou-se em 390, no reinado de Teodósio, o Grande. Embora a literatura e a filosofia continuassem a defender o carácter refinado e civilizado do amor entre homens, os primeiros padres da Igreja, a começar por São Justino, o Mártir, São João Crisóstomo e Santo Agostinho, estabeleceram uma terrível associação entre os actos homossexuais e o abuso sexual de menores, de modo a identificar o sexo com adolescentes como pedofilia e não como pederastia. Com o triunfo do cristianismo, o Ocidente entrou na era do terrorismo mono-sexual que julgou legítimo propagar pelo mundo no decorrer das Descobertas e da colonização europeia abençoada por um Deus Homofóbico. As sociedades colonizadas foram surpreendidas pela homofobia cristã e obrigadas a abdicar da inocência da polissexualidade e dos seus nichos eróticos socialmente reconhecidos: o que os ocidentais através dos missionários homofóbicos introduziram nos novos mundos descobertos não foi a homossexualidade, mas sim a homofobia.
A monografia do missionário Henri A. Junod - Usos e Costumes dos Bantos: A Vida duma Tribo do Sul de África - testemunha essa operação ideológica de apagar as relações homossexuais dos estudos antropológicos. Na mente dos missionários sedimenta-se o ódio dos ensinamentos e das mentiras da escola milenar da homofobia judaico-cristã: a realidade é desvirtuada, distorcida e moldada de modo a adaptar-se ideológica e praticamente à ideologia religiosa castradora. A evangelização é puro acto de violência: a palavra dos Evangelhos distorcida pelo ódio à carne e ao prazer reclama a exclusividade, confiscando e roubando a palavra aos e dos outros. A doutrina cristã propagada pelos missionários visa a mortificação do mundo. Junod não constitui excepção a esta regra cristã que sacrifica o certo - o mundo e a vida - em nome de uma outra vida absolutamente incerta, mas o mesmo já não pode ser dito de Evans-Pritchard que abraçou o caminho da ciência objectiva. Quando publicou pela primeira vez a sua monografia sobre os Zande, Evans-Pritchard omitiu as suas observações da homossexualidade entre os homens deste povo africano. Só no fim do seu percurso vital Evans-Pritchard resolveu partilhá-las, relatando o comportamento entre guerreiros e escudeiros. Os homens zande tinham relações sexuais com rapazes, pedindo a mão do rapaz com uma lança, tal como quando pediam a mão de uma rapariga aos pais desta. De modo semelhante aos samurais e seus aprendizes, os jovens guerreiros zande que viviam na corte tinham rapazes com os quais praticavam relações intercrurais. Embora aceitassem e tolerassem o sexo entre homens, pelo menos a pederastia, os zande tinham horror ao lesbianismo: as mulheres zande dos haréns fabricavam pénis artificiais a partir de tubérculos ou de bananas. Com a publicação destas observações, Evans-Pritchard redimiu-se do seu preconceito sexual, ajudando a compreender a homossexualidade entre os povos africanos pré-coloniais e modernos. A descrição etnográfica de Junod da tribo Tonga constitui um clássico dos estudos africanistas - elogiado por Evans-Pritchard e outros antropólogos - que não omite a sua vida sexual, apesar de reconduzir a homossexualidade tonga para o Apêndice III do primeiro volume, atribuindo-a erradamente à má influência da civilização branca. O título do Apêndice revela desde logo esse preconceito sexual: "Vícios contra a natureza nas casernas de Joanesburgo". Em vez de uma concepção objectiva e imparcial da homossexualidade, Junod defende o seu preconceito sexual homofóbico que condena todo o acto sexual que não seja potencialmente procriador, retomando do estoicismo a ideia do que é ou não natural (Boswell). Assim, segundo Clemente de Alexandria, ter relações sexuais com qualquer outro fim que não o de gerar filhos é violar a natureza. Santo Agostinho e Fílon de Alexandria defenderam ideias semelhantes: os actos que violam a natureza - a tradição ou a lei - são pecados.
Os Padres da Igreja, nomeadamente São Justino, associavam a homossexualidade à religião pagã e, como desejavam ser diferentes dos seus vizinhos pagãos, travaram uma luta sem tréguas contra a promiscuidade sexual, a prostituição, o adultério, a homossexualidade e o sexo com jovens. Para combater a polissexualidade do mundo pagão, os cristãos abraçaram a ideia de antinatural, afirmando que a finalidade do sexo era procriar. Qualquer outro uso do sexo era considerado antinatural. Porém, como demonstrou Ovídio, é muito difícil recorrer à natureza para fundamentar teologicamente os costumes sexuais, porque a natureza não considera vergonhoso que uma bezerra seja montada pelo pai, que a filha de um garanhão possa vir a tornar-se sua parceira de acasalamento ou que o bode entre nos rebanhos que gerou. São João Crisóstomo apresentou as regras de comportamento sexual, condenando os costumes sexuais pagãos em geral e os actos homossexuais em particular. O ataque contra a homossexualidade assenta na ideia de que esta forma de sexualidade do mesmo sexo produzia um terceiro tipo de sexo que não tinha sido criado por Deus. Ao assumir o papel passivo numa relação homossexual, o homem "transforma-se" numa mulher, deixando de conservar a sua natureza de homem sem no entanto se transformar completamente numa natureza feminina. Como disse São Bernardo de Clairvaux, o homem que praticasse actos homossexuais "estava a desonrar a sua masculinidade", tal como a hiena. Para Santo Agostinho, o corpo de um homem é tão superior ao de uma mulher como a alma é ao corpo. Um homem não pode assumir o papel sexual de uma mulher, porque a mulher é inferior ao homem: a homofobia caminha de mãos dadas com a misoginia. Agostinho, Jerónimo, Tertuliano, Enódio, Metódio, Ambrósio e Arnóbio consideravam que o sexo era impuro, repugnante, vergonhoso, imundo e degradante. O aporcalhamento da vida sexual, a homofobia, a misoginia e a condenação do prazer são traços estruturais marcantes que acompanham a ideologia oficial da Igreja Católica na sua tarefa missionária ao longo da história.
Henri Junod tomou conhecimento da homossexualidade da tribo do sul de África por intermédio de um colega missionário que, em Janeiro de 1905, passou perto de um dormitório de Joanesburgo. Um grande grupo de indígenas cantava, dirigindo-se para uma caserna, onde se realizava uma grande festa com dança. Surpreendido pela presença de mulheres nesse grupo, o missionário branco perguntou ao seu evangelista indígena como era possível haver tantas mulheres naquele lugar. O evangelista indígena respondeu-lhe que não eram mulheres: "São tincontchana, rapazes que ataram ao peito falsos seios de mulheres, cortados em madeira, e que vão à dança ocupar o lugar das mulheres". Quando regressarem aos dormitórios, os seus maridos devem pagar-lhes 10 xelins para que eles tirem os seus falsos seios e se submetam aos seus desejos masculinos. Junod chamou esse evangelista para o interrogar sobre tudo o que se passava no interior dos dormitórios. Esta prática homossexual - buncontchana - era uma instituição regular nas casernas dos menores indígenas: "O ncontchana é o rapaz que um outro homem emprega para satisfazer a sua paixão, e o homem é mesmo chamado o nuna dele, o marido. Quando um bando de novos trabalhadores chega a uma caserna, os polícias indígenas, que têm o seu quarto de dormir à entrada do pátio, vêm humutcha (fazer propostas) aos mais novos, não só aos rapazinhos (pois há lá alguns) mas também aos rapazes de vinte anos e mais. Se estes rapazes consentem em se tornarem os seus bancontchana, são tratados com mais indulgência que os outros. Os seus maridos dão-lhes 10 xelins para se casarem com eles (buta) e escolhem-lhes ocupações fáceis, como por exemplo varrer os dormitórios, enquanto os outros vão para o penoso trabalho subterrâneo (das minas). Os que foram escolhidos à chegada pelos polícias recebem provavelmente semelhantes propostas dos seus companheiros mais velhos, que os ajudam depois no trabalho das minas. Mas o marido não deve só ficar noivo desta mulher (nsáti), deve também lobolá-la, celebrando por vezes festas em que põem no chão até 25 libras, matam uma cabra e fazem um contrato pelo qual o ncontchana fica ligado ao seu patrão para todo o tempo que fique nas minas. O irmão mais novo do rapaz recebe o dinheiro nesta desprezível paródia do casamento banto". Alguns maridos pagam ao seu ncontchana de 1 a 10 libras por mês. Quando o contrato celebrado é quebrado, o marido reclama o dinheiro que entregou ao rapaz, mas, se este recusar restituí-lo, o queixoso pode recorrer à arbitragem do director da caserna que geralmente deixa o rapaz seguir a sua vida.
Junod foi um profundo conhecedor da vida social dos bantos e, neste caso da homossexualidade, estava na posse de todas as informações para fazer uma análise objectiva das suas práticas homossexuais regulares, mas a sua mente foi completamente obliterada pela homofobia mórbida. Diante da evidência empírica que lhe é exposta pelo evangelista indígena, a mente homofóbica de Junod deixa-se dominar por uma única preocupação missionária: "extirpar verdadeiramente este flagelo" que não só "destrói subitamente a sua força física", como também "corrompe as origens da (sua) energia moral", pondo "em perigo os próprios fundamentos da vida social banta". Porém, a tarefa missionária de extirpar o vício homossexual esbarra com o facto da "imensa maioria dos próprios indigenas" negar qualquer importância a esta prática homossexual, falando dela "sorrindo": "Os indunas e os polícias indígenas praticam a este respeito a conspiração do silêncio e, sendo os primeiros a exercer a prática indigna, são os maiores culpados". O sorriso dos Machanganas e a sua conspiração do silêncio significam que a prática de actos homossexuais não é estranha ou exterior à cultura banta, até porque "existe - como lembra o próprio Junod - uma canção tonga que diz: Acorda, ncontchana, os galos cantam, não te deixes surpreender pelo nascer do sol". Os Tongas conheciam e praticavam regularmente as relações homossexuais, mas Junod procura iludir esse facto atribuindo a "causa do mal" ao "paganismo grego" e à civilização dos brancos. A concepção da homossexualidade de Junod vacila entre duas noções diferentes: a de homossexualidade situacional e a de pederastia. A noção de homossexualidade situacional insinua-se quando Junod acusa os colonizadores de privarem os indígenas das suas mulheres ou mesmo de prostitutas, condenando-os a viver em condições de vida absolutamente "anormais" nesses enormes aglomerações que eram os dormitórios: a exibição de comportamentos homossexuais é explicada pela privação de mulheres. No entanto, se a homossexualidade tonga fosse meramente situacional, a estrutura normativa que regulava as relações homossexuais entre homens mais velhos e rapazes seria desnecessária. Junod tem consciência disso, porque logo a seguir responsabiliza o paganismo grego por esta "imoralidade". Sem conhecer os gregos, os tongas ritualizaram a pederastia que a mente doentia dos padres da Igreja identificou com a pedofilia, com o objectivo de combater a pederastia grega - um ritual de iniciação indo-europeu (Bernard Sergent, K.J. Dover) - elogiada por um poeta grego anónimo: "Todos os animais irracionais copulam apenas com as fêmeas, mas nós, animais racionais, /Somos superiores nesse aspecto a todos os outros animais: /Descobrimos o sexo entre homens. Os homens sob a influência das mulheres /Não passam de estúpidos animais". Em vez de escutar a sabedoria do poeta grego, o missionário Junod prefere acompanhar a velha estratégia anti-pagã dos padres da Igreja, animalizando a homossexualidade e identificando a pederastia com a pedofilia, o tal vício imoral supostamente introduzido pela cultura dos colonizadores brancos entre os indígenas. As relações homossexuais dos tongas são vistas como abuso sexual de rapazes adolescentes, que, segundo Junod, deve ser criminalizado. Na sociedade homofóbica, o homem que abusa de um rapaz menor é geralmente chamado pedófilo homossexual, enquanto o homem que abusa de uma rapariga é chamado pedófilo sem qualquer referência à sua heterossexualidade: o objectivo desta classificação é associar a pedofilia e a homossexualidade masculina. Mas as informações recolhidas no terreno desmentem esta classificação cristã: os rapazes adolescentes que se casavam com homens adultos nas casernas de Joanesburgo não eram coagidos a ter relações homossexuais com eles, desempenhando o papel de receptores anais. Sem o exercício de coerção sexual por parte do adulto, não há escravatura sexual ou abuso sexual: o sexo era consentido. A psicologia evolutiva demonstrou recentemente que, durante um certo período da adolescência, os rapazes envolvem-se em relações homossexuais, preferindo parceiros sexuais do mesmo sexo mais velhos, e que estas práticas não danificam o desenvolvimento psicossexual destes jovens. Além disso, os dados recolhidos por Junod obrigaram-no a reconhecer que nem todas as relações homossexuais tongas eram pederastas, porque muitas desses contactos homossexuais envolviam relações entre adultos e "rapazes de vinte anos e mais", relações entre jovens com idades próximas, e relações entre adultos, como sucedia nas prisões sul-africanas.
As duas noções de homossexualidade usadas por Junod desmentem as suas teses ideológicas e, ao mesmo tempo, ajudam a clarificar a homofobia que lhes é subjacente. A noção de homossexualidade situacional mostra que o homem heterossexual é potencialmente um omnívoro sexual e que a homossexualidade não é um "vício adquirido" susceptível de "contagiar" os outros através da prática. (:::) A vida sexual dos Tanalas de Madagáscar está liberta da homofobia: a homossexualidade masculina e o travestismo eram aceites (R. Linton). Muitos dos travestis eram homossexuais que podiam desempenhar o papel de esposa secundária. Outros não se casavam e alguns não eram realmente homossexuais activos. O travestismo funcionava como um refúgio habitual para o homem impotente, garantindo-lhe uma condição pessoal definida na comunidade tanala. Quer fossem jovens ou velhos, os travestis - recrutados geralmente do grupo dos filhos mais novos - podiam fazer tudo aquilo que as mulheres faziam e faziam-no muito melhor. Apesar de serem homossexuais, os bailarinos profissionais oscilavam entre práticas homossexuais e práticas heterossexuais. (:::) A homofobia é inimiga do comportamento homossocial e, neste aspecto, pode ser vista como uma estratégia feminina de controlar o comportamento sexual masculino. Ao criar distância e conflitos entre os homens, a homofobia funciona a favor do controlo feminino da sexualidade, deixando os homens vulneráveis diante das mulheres e contribuindo para o seu efeminamento: "Os homens sob a influência das mulheres não passam de estúpidos animais". O cristianismo é, no fundo, uma religião feita por homens-mulheres para mulheres-homens.
Anexo. Na caixa de comentários, o Raul descreveu uma situação que abona a favor da hipótese defendida neste post: "Em Moçambique, quando o tema homossexualidade vem a debate, logo surgem vozes de gente tida como esclarecida, dizendo tratar-se de uma prática introduzida pela cultura do colonizador, europeia. Porém, posso testemunhar a seguinte prática, entre recrutas, praças de 2ª, ou seja, indivíduos que não sabiam ler nem escrever, na Escola Militar de Boane: sempre que havia nova incorporação, alguns praças de 2ª, que já tinham feito a recruta (veteranos), recebiam os novos praças (caloiros) e procuravam escolher de entre estes o que passaria a ser sua “mulher”, com quem passavam a manter relacionamento sexual. Finda a recruta, as “mulheres” voltavam à sua condição de Homens e escolhiam “mulher” entre os novos praças. Tratava-se de uma prática aceite com naturalidade entre este grupo de indivíduos, maioritariamente, originários do Sul de Moçambique. Isto passou-se nos anos sessenta."
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Casais do mesmo sexo

«A relação entre os cônjuges é uma relação de igualdade da posse, tanto das pessoas que se possuem reciprocamente, como também dos bens patrimoniais, tendo porém os cônjuges relativamente a estes a possibilidade de renunciar ao uso de uma parte deles, se bem que somente mediante um contrato especial». (Immanuel Kant)
Os portugueses estão completamente viciados na emissão patética e doentia de opinião, revestida de papéis de embrulho caseiro pseudo-científico, sobre matérias que desconhecem. Opinam sem conhecimento de causa e, por isso, são naturalmente inclinados a debater os assuntos no plano dos valores, embora sejam incapazes de definir os valores e delimitar as suas problemáticas teóricas no caso de serem interpelados a esse propósito. Um exemplo típico desta ignorância activa (Lacan), agravada por um diagnóstico de homofobia assumida, é este texto de um indivíduo envolvido numa luta consigo mesmo e com os seus impulsos (homo)sexuais reprimidos. Para se defender do diagnóstico que assumiu noutra ocasião, o homófobo redefine a homofobia nestes termos dignos de uma "mente pequena" (Lily Allen: "Fuck You"): "A homofobia é a opinião moral segundo a qual a conduta [comportamento] homossexual não é consentânea com a lei natural, e portanto, para além de ser errada na medida em que se afasta da norma natural, não pode fundamentar o direito positivo naquilo em que esse comportamento possa ter influência. A homofobia não pode ser comparada ao preconceito étnico, racial ou religioso, que negam ― a priori e independentemente dos comportamentos do ser humano ― o valor e os direitos morais intrínsecos de outras pessoas." Mediante a criação de confusões conceptuais e a-críticas, o homófobo pretende negar aos outros homens homossexuais aquilo que nega a si mesmo: o valor e os direitos morais da sua própria homossexualidade e, por extensão movida pelo ódio, das pessoas homossexuais. A "lei natural" não o protegeu dos seus impulsos homossexuais condenados pela moral que incorporou durante o seu processo de socialização castradora: o homófobo nasceu naturalmente homossexual, a moral que incorporou ensinou-lhe que esse desejo erótico se afasta da "norma natural", e, em vez de questionar a falsidade dessa moral que pretende falar em nome de um princípio extraterrestre que transcende a própria natureza, fazendo-se passar por um princípio transcendental e a-histórico, rejeita a sua homossexualidade e, não satisfeito com a sua auto-castração e fustigado pelo sofrimento resultante do seu luto pela homossexualidade, entrega-se a uma cruzada imbuída de ódio patológico contra a homossexualidade e a humanidade dos indivíduos homossexuais. O "paneleiro envergonhado" torna-se homicida: recusa conceder aos homossexuais o estatuto de seres humanos, de modo a incentivar os crimes de ódio e a matança de homossexuais, mas, nesta recusa da humanidade do Outro, o homófobo veda a si próprio o status de ser humano. Os seus textos contra a homossexualidade, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e a adopção de crianças por parte de casais homossexuais, funcionam na sua pequena economia mental como actos de suicídio: a sua homofobia transformou-se em necrofilia.
O que as ciências naturais dizem a respeito dos casais do mesmo sexo? Com ou sem o reconhecimento legal, os homossexuais de ambos os sexos envolvem-se em relações estáveis. As sociedades que reprovam e proíbem a homossexualidade estão decididamente a favor da natalidade e tendem a condenar todas as formas de sexualidade que não levam à geração de filhos e à formação de famílias, enquanto as sociedades humanas que são marcadamente antinatalistas tendem a aceitar a homossexualidade e outras formas não-reprodutivas de sexo, incorporando a homossexualidade masculina no seu sistema de desenvolvimento da personalidade masculina (Werner, 1979; Ember, 1982; Herdt, 1984). O berdache ou homem efeminado dos índios crow concedia os seus favores sexuais aos grandes guerreiros da tribo sem diminuir o seu status; pelo contrário, ser satisfeito sexualmente por um berdache era prova de virilidade. Entre os azande do Sudão, os homens pertencentes ao grupo de idade dos guerreiros solteiros, que viviam separados das mulheres durante anos, tinham relações homossexuais com os rapazes pertencentes ao grupo de idade dos guerreiros-aprendizes. Estas experiências com os rapazes-esposas permitiam aos guerreiros ascender ao status de idade seguinte, casando-se e gerando filhos. Muitas sociedades da Nova-Guiné e da Melanésia ritualizaram alguma forma de homossexualidade masculina e a sua justificação ideológica contrasta com as noções ocidentais de sexualidade: a homossexualidade não era tratada como uma preferência pessoal, mas como uma obrigação social. Os homens não eram classificados como homossexuais, heterossexuais ou bissexuais, porque todos eram obrigados a ser bissexuais por dever sagrado e por necessidade prática. Entre os etoro da Papúa-Nova Guiné, a concepção da homossexualidade gira em torno da crença de que o sémen constitui não só a fonte donde procedem as crianças, mas também a vida do homem. Tal como os hindus, os etoro acreditavam que cada homem possui reservas limitadas de sémen e, quando estas acabam, morre. Para prevenir um descréscimo populacional excessivo, o coito com as esposas era necessário, mas a relação sexual entre marido e mulher constituía tabu durante duzentos dias por ano. As mulheres que desejavam quebrar esse tabu eram vistas pelos maridos como bruxas. Além disso, as reservas de sémen não são algo que nasce com o homem; elas só podem ser obtidas de outro homem: os rapazes adquirem as suas reservas de sémen através da prática de sexo oral com homens mais velhos. Os jovens não podem ter relações sexuais entre si e os rapazes mais ardentes ou excessivamente sexuais são vistos como bruxos e condenados por roubar as reservas de sémen dos seus companheiros. O facto de crescerem mais rapidamente do que os outros rapazes normais permite identificá-los como ladrões de sémen. A homossexualidade ritualizada destas sociedades amantes da guerra (Herdt, 1984) está fortemente associada a um elevado nível de antagonismo sexual entre homens e mulheres, ao temor do sangue menstrual, aos rituais masculinos de virilidade e às casas dos homens: a guerra está intimamente associada com a competição por recursos escassos e/ou esgotados e as ratios de sexo revelam um desiquilíbrio a favor dos homens (Herdt, 1984).
Infelizmente não temos estimativas seguras do número de casais homossexuais existentes em Portugal. Na amostra nacional de Laumann et al. (1,994), 4.9% dos homens (1,511) e 4.1% das mulheres (1,921) tiveram relações sexuais com pessoas do mesmo sexo desde os 18 anos de idade, 6.2% dos homens e 4.4% das mulheres sentiram atracção sexual por pessoas do mesmo sexo, e 2.8% dos homens e 1.4% das mulheres identificaram-se como sendo homossexuais. Dos 5.5 milhões de casais que viviam juntos sem serem casados recenseados em 2000, aproximadamente 1 em cada 9 eram casais do mesmo sexo: 301,026 desses casais eram casais homossexuais masculinos, e 293,365 eram casais homossexuais femininos (Simons & O'Connell, 2003). Crianças com idades inferiores a 18 anos residiam com 22% dos casais de homens e com 33% dos casais de mulheres. Apesar da escassez de dados relativos ao número de casais do mesmo sexo, existem estudos que nos permitem compreender alguns tópicos relevantes para os casais homossexuais quando comparados com os casais heterossexuais.
Trabalho doméstico. Cada um dos membros deve contribuir para o bem-estar do casal. Quando vivem juntos, os membros do casal confrontam-se com a questão: Quem faz o quê em casa?. Engels sublinhou que a primeira divisão do trabalho é aquela que existe entre os sexos: "O homem vai à guerra, incumbe-se da caça e da pesca, procura as matérias-primas para a alimentação, produz os instrumentos necessários para a consecução dos seus fins. A mulher cuida da casa, prepara a comida e confecciona as roupas: cozinha, fia e cose. Cada um manda no seu domínio: o homem na floresta, a mulher em casa". Desde os tempos mais remotos o sexo biológico tem sido o factor principal que determina quais os papéis que devem ser assumidos por cada um dos membros do casal heterossexual. Na maioria dos casais heterossexuais, as mulheres assumem a maior parte das tarefas caseiras, mesmo quando trabalham fora de casa (Artis & Pavalko, 2003). A divisão do trabalho nos casais homossexuais realiza-se de modo diferente desta que se verifica nos casais heterossexuais: os papéis atribuídos na relação não dependem do sexo biológico (Carrington, 1999). Nos casais do mesmo sexo, destacam-se três aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, os membros destes casais não atribuem papéis para a divisão do trabalho caseiro, tais como um parceiro é o "marido" e o outro é a "esposa". Em segundo lugar, a maior parte dos casais do mesmo sexo divide o trabalho doméstico de um modo perfeitamente igual. E, em terceiro lugar, quando os casais se tornam mais estáveis, os membros tendem a especializar as tarefas caseiras que preferem realizar.
Conflito. O conflito é inevitável em todos os tipos de relações. Nos casais heterossexuais, o conflito ocorre por causa das diferenças sistemáticas que se revelam no modo como os homens e as mulheres percebem e compreendem os seus mundos. Porém, se essa fosse a única causa responsável pelo conflito, seria de esperar que os casais do mesmo sexo fossem avessos ao conflito, mas não é isso que os estudos mostram. Embora os parceiros homossexuais encarem as discussões de modo mais positivo do que os parceiros heterossexuais, procurando manter um tom positivo durante essas discussões, os conflitos atravessam as relações homossexuais e, em muitos casos, conduzem à violência doméstica (Pitt & Dolan-Soto, 2001; Pitt, 2000). O estudo de Gottman et al. (2003) mostrou que os parceiros de casais do mesmo sexo resolvem os conflitos de maneira mais positiva do que os cônjuges de casais heterossexuais. Esta capacidade de resolução positiva dos conflitos deve-se ao facto dos parceiros homossexuais realizarem avaliações igualitárias e de haver poucas diferenças de poder e de status entre eles. Kurdek (2004) descobriu que não existem diferenças significativas entre casais do mesmo sexo e do sexo oposto. Os casais avaliados identificaram as mesmas áreas como fontes da maior parte dos conflitos: finanças, afectos, sexo, ser abertamente crítico, estilo de conduzir e tarefas caseiras.
Apoio social percebido. O apoio social e psicológico prestado pelos membros da rede social de um casal afecta a saúde e a qualidade da sua própria relação (Huston, 2000). Um traço típico dos casais do mesmo sexo é a sua invisibilidade social: os homossexuais sabem que as suas relações, a sua qualidade e a sua duração, dependem de negociações permanentes entre os membros de cada um dos casais. Ao contrário dos cônjuges dos casais heterossexuais que contam com o apoio firme das respectivas famílias, os membros dos casais do mesmo sexo estão entregues a si próprios e aos amigos. Os estudos mostraram que os parceiros dos casais gay e lésbicos são menos propensos a nomear os membros da família como provedores de apoio e mais propensos a nomear os amigos como provedores de apoio (Kurdek, 2004). Os casais do mesmo sexo não só não contam com o apoio da família, como também carecem de outros apoios e suportes institucionais. Esta ausência total de apoios familiar, social, legal, económico, político e religioso é compensada pelo recurso aos amigos e aos membros da comunidade gay.
Satisfação. Os estudos indicam que os casais do mesmo sexo estão - em média - satisfeitos com as suas relações e este nível de satisfação é pelo menos igual aquele relatado pelos cônjuges de casais heterossexuais (Blumstein & Schwartz, 1983; Kurdek, 2001). Porém, os estudos longitudinais de casais do mesmo sexo e do sexo oposto revelaram que, em cada um dos tipos de casais, a qualidade da relação relatada é relativamente mais elevada no início da relação, diminuindo com o passar do tempo (Kurdek, 1998). O decréscimo da satisfação com a relação implica, nestes estudos, o declínio da frequência do sexo marital ou conjugal atribuído à perda da novidade (Call et al., 1995; James, 1981): o honeymoon effect significa que a frequência de sexo marital descresce porque a satisfação com o sexo conjugal declina com a duração da relação conjugal. No entanto, o estudo de Chien Lin (2003) desmente este efeito: a qualidade do sexo conjugal não decresce com a duração da relação, estando dependente de muitos outros factores, nomeadamente a diminuição da utilidade marginal e o investimento de capital humano no casamento. O casamento é visto como um investimento de capital humano numa relação a longo prazo (Becker, 1991; England & Farkas, 1986) e, como investem mais na relação, as mulheres casadas revelam estar menos satisfeitas com o sexo conjugal do que os homens casados (Edwards & Booth, 1994; Laumann et al., 1994). Segundo Laumann et al. (1994), o novo script sexual dá ênfase ao direito recíproco ao orgasmo e à igualdade entre homens e mulheres ao longo do processo sexual, o que produz uma expectativa sexual mais elevada nas mulheres do que nos homens. As mulheres imitam o comportamento sexual masculino e a sua exigência de orgasmos leva-as a inventar uma fisiologia feminina fictícia: as frustrações da vida diária devem ser compensadas por experiências sexuais. Se o orgasmo não estiver associado a esta atenção sexual recíproca e mútua imposta pelo novo script sexual, as mulheres tendem a encarar o seu investimento de capital humano na relação como um desperdício e a revelar insatisfação com o sexo marital.
Estabilidade. Embora sejam sexualmente mais promíscuos do que os heterossexuais (Laumann et al., 1994), os indivíduos homossexuais podem estabelecer e estabelecem efectivamente relações estáveis de longa duração: entre 8% e 21% dos casais lésbicos e entre 18% e 28% dos casais gay viveram juntos 10 ou mais anos (Kurdek, 2004). Em Portugal, a maior parte dos indivíduos homossexuais de ambos os sexos tende a formar relações, umas de curto prazo e outras de longo prazo. A duração das relações estáveis a longo prazo pode ser superior a 20 anos. No entanto, apesar desta tendência para a formação de casais estáveis, a sua dissolução é mais elevada entre os casais homossexuais do que entre os casais heterossexuais. Os casais gay e lésbicos dissolvem as suas relações mais facilmente do que os casais heterossexuais (Blumstein & Schwartz, 1983; Kurdek, 2004) e a dissolução das uniões estáveis é significativamente mais elevada nos casais lésbicos do que nos casais gay (Andersson et al., 2004), um padrão observado na Noruega e na Suécia que também caracteriza as dissoluções dos casais homossexuais portugueses. Porém, a comparação dos casais gay, lésbicos e heterossexuais que vivem em regime de coabitação mostra que a taxa de dissolução é similar nos três tipos de casais, porque na situação de coabitação não existem barreiras institucionais - sociais, religiosas e legais - que impeçam a dissolução das uniões. Além disso, a maioria dos casais do mesmo sexo não tem filhos, outro factor que facilita a dissolução (Simons & O'Connell, 2003). Todos estes estudos mostraram que os casais homossexuais não são menos estáveis do que os casais heterossexuais, embora as suas relações sejam negociadas e geridas sem o apoio de benefícios institucionais (Bryant & Demian, 1994; Bradford, Ryan & Rothblum, 1994; Falkner & Garber, 2002; Morris, Balsam & Rothblum, 2002).
Qualidade da relação. Huston (2000) inventou um procedimento que permite avaliar e prever a qualidade das relações, destacando quatro tipos de variáveis: os traços da personalidade, o nível de confiança, os estilos de comunicação e de resolução de conflitos e o nível de apoio social percebido. As ligações entre estes quatro tipos de variáveis e a qualidade da relação não diferem nos casais homossexuais e nos casais heterossexuais: ambos os tipos de casais funcionam de um modo muito similar e, apesar dos casais do mesmo sexo não contarem com o apoio institucional, são influenciados pelo mesmo conjunto de factores (Kurdek, 2004). Em 2004, a American Psychological Association declarou guerra contra a homofobia e a discriminação, defendendo que os casais do mesmo sexo devem ter acesso legal ao casamento civil e gozar dos mesmos benefícios, direitos e privilégios desfrutados pelos casais heterossexuais: o reconhecimento legal dos casais do mesmo sexo pode contribuir para o fortalecimento da estabilidade destas relações. Além disso, o casamento tem benefícios fisiológicos para os adultos, mas as relações perturbadas têm consequências negativas na saúde dos membros, elevando a sua actividade cardiovascular, alterando os níveis das hormonas ligadas ao stress (stress crónico) e desregulando a função imunitária (Robles & Kiecolt-Glaser, 2003). O casamento promove a saúde e o bem-estar e, no caso da mortalidade, protege mais os homens do que as mulheres. Negar o acesso legal dos indivíduos homossexuais ao casamento civil é contribuir activamente para o aumento da doença e da mortalidade.
Adopção e famílias homoparentais
. As famílias com filhos de pais gay ou mães lésbicas já existem na sociedade portuguesa, embora não se conheça o seu número. A maioria das crianças de lares homoparentais é fruto de relações heterossexuais anteriores, mas, com as novas técnicas de reprodução assistida e a possibilidade da adopção de crianças, o número de casais homossexuais que decidem ser pais conjuntamente - ou individualmente - começa a aumentar, sendo necessário conhecer melhor as famílias homoparentais e as famílias monoparentais. Largas centenas de estudos científicos demonstraram que as crianças adoptadas ou criadas por pais do mesmo sexo apresentam funcionamento emocional, cognitivo, social e sexual tão bom quanto as crianças criadas por pais heterossexuais (Perrin, 2002; Lambert, 2005; Navarro et al., 2004). A American Academy of Pediatrics reconheceu esse facto científico: os casais homossexuais são tão bons quanto os casais heterossexuais a amar as suas crianças e, por isso, podem adoptar e cuidar de crianças (Pawelski et al., 2006), porque o desenvolvimento saudável das crianças é mais influenciado pela qualidade e pela natureza das relações e das interacções dentro da família do que pela forma estrutural familiar. A parentalidade é um processo complexo que implica algo mais do que um pai e uma mãe: o papel de pai ou de mãe é proporcionar à criança um meio seguro e estável, garantir as suas necessidades nutricionais, oferecer amor e apoio e favorecer interacções de natureza positiva. A qualidade da parentalidade não depende do tipo de estrutura familiar onde a criança vive, mas sim dos comportamentos, interacções e ensinamentos dos pais. Os estudos (Patterson, 1997; Golombock et al., 1983; Green et al., 1986; Bailey et al., 1995; Golombock & Tasker, 1996) mostraram que os pais heterossexuais e os pais homossexuais criam os seus filhos de modo muito similar, o que levou a American Psychological Association (1976), a American Psychiatric Association (2000), a American Academy of Pediatrics (2002), e a American Psychoanalytic Association (2002), a apoiarem a adopção de crianças pelos indivíduos homossexuais, destacando a competência parental dos pais gay e das mães lésbicas.
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Cultura de Esquerda na Blogosfera

«Há já muito tempo que o mundo sonha com algo que só pode possuir na realidade se se tornar consciente disso». (Karl Marx)
«A utilização de elementos do sonho no despertar é o exemplo de manual do pensamento dialéctico. (O socialismo democrático) é alimentado mais pela imagem de antepassados escravizados do que pela imagem de netos livres». (Walter Benjamin)
«O novo radicalismo - encarnado na luta contra a homofobia, a misoginia e a xenofobia, as bandeiras programáticas dos Partidos da Direita Portuguesa - milita contra a organização burocrática comunista, altamente centralizada, e contra a organização (burocrática neoliberal, pseudo-democrática e corrupta). Há um forte elemento de espontaneidade, mesmo de anarquismo, nessa revolta, expressão da nova sensibilidade, sensibilidade contra o domínio, intuição e consciência de que a alegria da liberdade e a necessidade de ser livre devem preceder a libertação». (Herbert Marcuse)
O pós-modernismo apropriado pela Direita reaccionária e conservadora constitui, nos tempos obscuros e corruptos que vivemos, o maior adversário da teoria crítica que visa orientar a praxis de transformação radical do mundo e, enquanto inimigo, pode ser visto como a face visível da ideologia neoliberal: a sua noção de posthistoire (Gehlen) ou do fim da história (Fukuyama) e a sua crítica da metafísica transfigurada em apologia da aparência representam a vitória do fetichismo comercial, a ideologia degenerada do consumo conspícuo, que abdica do próprio conceito de emancipação e de formação cultural. O resultado trágico das políticas neoliberais e fundamentalistas de mercado impulsionadas por Ronald Reagan e Margaret Thatcher é não só a crise financeira e económica que vivemos, mas também, como mostrou Marcuse, o fortalecimento musculado da cultura afirmativa: a cultura que capitula diante do falso triunfo do capitalismo global e do seu pensamento único, desvalorizando sistematicamente as possibilidades existentes de intervenção política crítica e paralisando a oposição de esquerda genuína. Em virtude da indigência cognitiva e da atrofia dos órgãos mentais do homem metabolicamente reduzido, profundamente desmemorizado, e do agravamento mundial da miséria, da pobreza, da exclusão social, das assimetrias sociais e de poder, da criminalidade de colarinho-branco e da corrupção generalizada, a cultura de esquerda não pode desistir da tarefa de descobrir a esperança por detrás do desespero, distanciando-se para o efeito do estado de espírito desiludido e deprimido da pós-modernidade e criando as condições necessárias para a emergência de uma cultura da esperança militante que envolva os jovens numa enorme onda de massa cinzenta intergeracional. A Internet e, em especial, a blogosfera, possibilitam a emergência de um novo espaço público virtual liberto das tutelas medíocres dos media tradicionais e dos poderes económicos que os controlam. A política de informatização de José Sócrates - um computador em cada uma das casas portuguesas -, tão criticada pelos bloguistas reaccionários e intelectualmente obscurantistas e míopes, abriu esse espaço potencial de democracia participativa a todos os portugueses. Porém, o desfasamento que se observa entre o uso real dos computadores e as expectativas aponta para uma crise estrutural da educação e da cultura em Portugal, agravada pelas más políticas da educação implementadas depois do 25 de Abril de 1974: as tecnologias não fazem milagres e as novas tecnologias da informação e da comunicação não resolvem o défice cognitivo e a atrofia dos órgãos mentais dos portugueses. A blogosfera portuguesa é profundamente medíocre e os blogues políticos de esquerda ou de direita não escapam a esta norma. Os blogues semi-institucionais de esquerda, tais como Arrastão, Ladrões de Bicicletas e SIMplex, e de direita - Blasfémias, por exemplo - revelam falta de cultura política: a troca de insultos e a crítica subjectiva ou meramente opinativa substituem o pensamento político genuíno e a crítica construtiva. A cultura afirmativa é cultura de direita, mas em Portugal - talvez devido ao salazarismo - toda a cultura - seja de direita, seja de esquerda - é afirmativa de um modo sui generis: o regime de escassez predominante fomenta uma maldade radical que faz com que os portugueses rejeitem a mudança a favor de um sistema medíocre de conquista de emprego garantido, independentemente das competências. Além de ser medíocre, este sistema gera todos os tipos de corrupção que bloqueiam a sociedade, a cultura, a economia, o Estado, o sistema de ensino, os meios de comunicação social e o futuro nacional. Os portugueses vendem facilmente o seu silêncio comprometedor e cúmplice e o seu corpo em troca de um emprego ou de um cargo para o qual não foram cognitivamente talhados: a ocupação ilegítima de cargos não produz mais-valias; pelo contrário, reproduz a mediocridade estabelecida, cujo ciclo fechado vai do jornalismo à política e da política ao jornalismo. Os jornais e os semanários alimentam essa mediocridade: a cultura das pseudo-elites nacionais e das classes dirigentes é uma cultura de jornal e de TV.
O conceito de cultura tem sido usado em diversos sentidos que focam um ou outro destes aspectos: o estado mental desenvolvido - pessoa culta, por exemplo (1), os processos de desenvolvimento - interesses culturais, actividades culturais, por exemplo (2), e os meios desses processos - as artes, o trabalho intelectual do homem, por exemplo (3). A sua história e os seus usos foram estudados por Kroeber & Kluckhohn e por Williams. Podemos distinguir quatro concepções básicas da cultura: a clássica, a descritiva, a simbólica e a estrutural. Nos séculos XVIII e XIX, o termo cultura era utilizado para designar um processo de desenvolvimento intelectual ou espiritual que diferia de algum modo do processo de civilização. As línguas europeias incorporaram o termo cultura no início dos tempos modernos, usando-o para referir o cultivo ou o cuidado de alguma coisa agrícola, mas a partir do século XVI este sentido foi alargado ao processo de desenvolvimento humano. Na concepção clássica, a cultura designa literalmente o cultivo activo da mente humana e, nos finais do século XVIII, a configuração ou a generalização do espírito que informa e configura o modo de vida global de determinado povo. Diderot, Schiller, Goethe e Hegel explicitaram a concepção clássica da cultura (Bildung) e o último descreveu a sua fenomenologia completa. O termo cultura foi usado durante muito tempo no singular, mas Herder começou a utilizá-lo no plural, preferindo destacar as características particulares dos diferentes grupos humanos, nações e períodos históricos. Com o surgimento da antropologia no fim do século XIX, a concepção clássica deu origem a diversas concepções antropológicas da cultura. A concepção descritiva da cultura refere-se a um conjunto variado de valores, crenças, costumes, convenções, hábitos e práticas características de uma determinada sociedade ou de um período histórico (Gustav Klemm, E.B. Tylor), enquanto a concepção simbólica destaca o carácter simbólico dos fenómenos culturais, fazendo do seu estudo uma interpretação dos símbolos e da acção simbólica (Clifford Geertz). A concepção estrutural da cultura modifica a concepção simbólica, levando em conta os contextos e os processos socialmente estruturados, bem como os problemas do poder e do conflito: os fenómenos culturais são formas simbólicas inseridas em contextos sociais estruturados. A análise cultural é pensada como o estudo dessas formas simbólicas inseridas em contextos e processos historicamente específicos e socialmente estruturados, dentro dos quais e por meio dos quais são produzidas, transmitidas, recebidas e apropriadas. Evitando clarificar todas as noções teóricas envolvidas, a cultura pode ser definida como um sistema de significações mediante o qual uma determinada ordem social ou sociedade é produzida, comunicada, reproduzida, vivida e estudada. Com esta formulação abreviada leva-se em consideração tanto o espírito formador - o elemento idealista da cultura - como a ordem social - o elemento materialista da cultura, fazendo convergir o sentido sócio-antropológico e o sentido especializado. A crítica ideológica explicitou e desenvolveu este conceito na análise da comunicação de massas, cultura popular ou sistema de indústria cultural, cujo efeito global "impede a formação de indivíduos autónomos e independentes, capazes de avaliar com consciência e de tomar decisões" (Adorno). Quando substitui o sistema da indústria cultural pelas indústrias do imaginário no plural, Patrice Flichy não compreende de todo como funciona a ideologia dominante. É certo que existe uma diversidade de indústrias culturais, públicas e privadas, mas esta diversidade está sempre-já unificada pelo funcionamento da ideologia dominante. O conceito de hegemonia elaborado por Gramsci permitiu a Althusser compreender como este concerto dos aparelhos ideológicos de Estado é dominado por uma partitura única que contribui para a reprodução da sociedade capitalista: a partitura da ideologia da classe dominante e das suas elites governantes.
Walter Benjamin efectuou uma crítica da modernidade do ponto de vista da teoria da experiência que não implica um niilismo antropológico, como sucede com certo tipo de pós-modernismo: "Onde nos apercebemos de uma cadeia de acontecimentos, (o Anjo da História) vê uma única catástrofe que continua a amontoar destroços sobre destroços e os arremessa para diante dos seus pés". A tempestade responsável por esta catástrofe é o progresso entendido na sua dimensão meramente quantitativa. Abandonado a si mesmo e às "leis" da economia capitalista de mercado, o curso "imanente" da história nunca produzirá a redenção: "a História é talvez a mais cruel de todas as deusas; ela conduz o seu carro triunfal sobre montes de cadáveres, não só na guerra mas também nos períodos de desenvolvimento económico pacífico" (Engels). O filósofo crítico deve "destruir o contínuo da História", de modo a activar e actualizar os seus potenciais redentores ocultos, que Benjamin associa ao tempo do agora (Jetztzeit). A reinstauração da inocência do devir mediante a negação da nossa responsabilidade perante Deus defendida por Nietzsche é uma ideologia e uma quimera: o devir não foi, não é e não será inocente. O Anjo da História olha para o passado e vê uma única catástrofe que continua a amontoar destroços sobre destroços: a história passada não realizou a ânsia de justiça plena dos homens, o presente é um calvário e, nesta lógica imanente do desenvolvimento histórico, o futuro ameaça não ser sorridente. O devir não é inocente: o contínuo homogéneo da história confirma o triunfo dos vencedores. Para Benjamin, bem como para o último Engels, a consciência instalada no movimento das coisas, dos indivíduos e das ideias dominantes contribui para que esse movimento prossiga a sua marcha triunfal nesse contínuo homogéneo que é a história dos vencedores. Escapar à tirania deste movimento que promove a eterna repetição do mesmo (Auguste Blanqui) e que consagra o sempre igual constitui a tarefa fundamental da concepção dialéctica da história, que deve operar uma actualização do passado e arrancar a tradição ao conformismo que procura dominá-la. O marxismo de Benjamin não rejeita a tecnologia tout court, mas recusa a concepção presente no pensamento de Marx de que a tecnologia constitui um suporte neutro capaz de propulsar a passagem do reino da necessidade para o reino da liberdade. O desenvolvimento tecnológico per si não conduz a sociedade e a humanidade à redenção. Dado o mundo social ser construído pela acção negadora dos homens, a própria dialéctica é uma relação sujeito-objecto: as contradições que estão nas próprias coisas precisam ser animadas pela subjectividade para pôr em marcha o processo da mudança social qualitativa. Se os homens não tomarem consciência da inadequação entre o conteúdo subjectivo guardado nas promessas não-cumpridas do passado e a totalidade da história dos vencedores, então essa inadequação essencial - geradora do sofrimento - prolonga-se indefinidamente no tempo. Declínio (Verfall) e salvação (Erlösung) constituem efectivamente conceitos nucleares da filosofia dialéctica da história de Benjamin, mas é preciso olhar a sua dialéctica intrínseca nestes termos: a modernidade destruiu a experiência e, portanto, a tradição e a narrativa, e compete à teoria crítica operar a recuperação dialéctica da história cultural até alcançar o ponto em que "todo o passado tenha sido trazido para o presente numa apocatástase" (Origines), isto é, numa recuperação messiânica de tudo e de todos - a restituição integral da História (Ernst Bloch).
A crítica da modernidade e, em especial, da sua noção quantitativa do progresso - a dominação técnica da natureza, permitiu a Benjamin denunciar o compromisso histórico e político das próprias forças políticas de esquerda com a visão iluminista do progresso. A partilha desta mesma visão do progresso impediu a social-democracia e o comunismo de trabalhar a sua própria diferença política qualitativa em confronto com as forças políticas conservadoras e neoliberais que procuravam combater. A social-democracia e o comunismo foram de tal modo seduzidos pela lógica do progresso que descuraram o valor daqueles elementos não-contemporâneos, isto é, o valor da tradição, cuja promessa revolucionária estava a ser controlada, integrada e neutralizada pelas forças da reacção política. Estes elementos pertencentes aos valores da tradição, à Gemeinschaft, ao mito, à sexualidade, à questão da mulher, à família, à vida doméstica, à questão homossexual, ao ambiente, enfim à religiosidade, foram bruscamente marginalizados e neutralizados pela corrida à modernidade entendida como dominação técnica da natureza, donde resultou a transfiguração do mundo num lugar desencantado, empobrecido, inóspito e completamente destituído de significado. A agenda política da esquerda coincidia - e ainda coincide - em tudo com a agenda política da direita, até mesmo na proclamação da exploração da natureza como um objectivo válido e desejável, traindo a visão não-instrumental de uma reconciliação entre a humanidade e a natureza proposta por Fourier e tematizada pelo Jovem-Marx. No tempo de Benjamin, apesar da confiança cega depositada no progresso, as esquerdas ainda sonhavam com a realização reformista ou revolucionária de um mundo melhor, mas no nosso tempo indigente esse sonho diurno de uma sociedade livre e justa foi abandonado. Nas últimas três ou quatro décadas, as esquerdas foram completamente neutralizadas pelo teologia do mercado (Marx): o capitalismo deixou de ser questionado e a ciência económica burguesa legitimou uma espécie de fatalismo economicista que subjuga tudo e todos às supostas leis naturais e imutáveis da economia de mercado. O pensamento único ou, como lhe chamou Marcuse, o pensamento unidimensional, que deriva da aceitação da economia de mercado como único modelo económico viável é o próprio neoliberalismo. Ao aceitar esta cartilha económica neoliberal, as esquerdas romperam com a sua própria tradição cultural e, portanto, com a sua matriz histórica identitária. Este esquecimento da sua tradição e da sua experiência histórica produziu uma descaracterização ideológica dos partidos políticos e subverteu completamente o cenário político. Sem ideologias políticas claramente definidas e delimitadas umas das outras e sem o confronto ideológico, os partidos políticos não só perdem identidade ideológica e política, como também se tornam meras máquinas de conquista do poder político, usadas e abusadas por políticos auto-intitulados profissionais em benefício próprio. O neoliberalismo e o capitalismo global agravaram drasticamente as assimetrias de poder, as desigualdades sociais e a exclusão social em todo o mundo, promoveram a corrupção em larga escala, descredibilizaram a actividade política, afastaram os cidadãos da vida política e produziram a actual crise financeira e económica. O neoliberalismo - o pensamento único, o populismo político demagógico das direitas e a sua linguagem do politicamente correcto - é uma ideologia de classe, completamente avessa à história e à historicidade, que usa a ciência económica burguesa para legitimar a sua dominação e a sua hegemonia de classe. George Soros acusa os economistas de terem eliminado a reflexividade da chamada ciência económica: a actual crise financeira e económica está a mostrar que "foi um erro basear a economia na física newtoniana". Os mercados financeiros não se corrigem a si próprios e não tendem para um equilíbrio: o estalar da superbolha desmente não só o fundamentalismo de mercado, como também a teoria económica dominante e as suas curvas de procura e de oferta que supostamente geriam as decisões dos participantes. A crítica de Soros é pertinente, mas escamoteia o facto de que a teoria económica foi elaborada reflexivamente para defender os interesses de classe dos grupos financeiros, empresariais e administrativos: a sua função manipulativa consiste precisamente em adaptar a realidade aos seus modelos, em vez de ajustar os modelos teóricos à realidade. A teoria económica dominante é pura ideologia ao abrigo da qual tem emergido uma classe de gestores profundamente corrupta que sacritica o futuro da humanidade, do planeta e da cultura ocidental para satisfazer os seus próprios interesses imediatos. A crise financeira e económica não tem nada de surpreendente: a lógica do capitalismo pensa apenas no resultado mais próximo, o mais tangível - o lucro e o enriquecimento fácil, sem levar em conta as consequências longínquas das acções que visam esse resultado próximo.
Georg Lukács denunciou o irracionalismo difundido pelas filosofias vitalistas que ajudou a preparar o terreno para o triunfo do nazismo e do fascismo na Europa. De Schelling a Nietzsche e de Dilthey a Toynbee, passando pelo sistema de Spengler e pelo existencialismo de Heidegger, todas as formas de vitalismo e de irracionalismo foram objecto da pesquisa crítica aprofundada de Lukács sobre os antecedentes ideológicos do nacional-socialismo. Seguindo um outro caminho, Hannah Arendt condena igualmente as filosofias da vida: "Se o moderno egoísmo (egocêntrico e comodista) fosse, como pretende ser, a implacável busca de prazer, conteria aquilo que, em todos os sistemas verdadeiramente hedonistas, é um elemento indispensável à argumentação: uma justificação radical do suicídio. A ausência deste elemento basta para indicar que, na verdade, estamos a lidar com uma filosofia da vida na sua forma mais vulgar e menos crítica. Em última análise, a vida é o critério supremo ao qual tudo o mais se subordina; e os interesses do indivíduo, bem como os interesses da humanidade, estão sempre equacionados com a vida individual ou a vida da espécie, como se fosse lógico e natural considerar a vida como o maior bem". Benjamin, Adorno e Horkheimer estavam cientes desta ligação orgânica entre a Lebensphilosophie e o totalitarismo fascista, mas isso não os impediu de recorrer aos seus temas para mostrar que a civilização contemporânea sofre de um excesso de "intelecto", isto é, de racionalidade instrumental, sobre a "vida": o entendimento técnico do mundo coloca a humanidade em conflito tanto com a natureza interior como com a natureza exterior, inviabilizando a reconciliação do homem com a natureza. Benjamin tenta realizar uma fusão entre Marx e Ludwig Klages, com o objectivo de recuperar certos temas pertinentes da filosofia da vida para a agenda política de esquerda, evitando o elo existente entre o vitalismo e a ideologia fascista denunciado por Marcuse e Lukács. A teoria ctónica das imagens arcaicas (Urbilder) de Klages constitui uma crítica de direita do domínio do conceito racional sobre a vida que fundamenta a civilização (Zivilisation) burguesa mecanicista e sem alma: as "representações" pertencem ao "intelecto" que se caracteriza por "perspectivas utilitaristas" e por um interesse na "usurpação", enquanto as "imagens" expressam directamente a alma e estão relacionadas com a "inteligência simbólica". Para Benjamin, a remição da teoria de Klages consiste em historicizar a doutrina das imagens: em vez de encarar as imagens como encarnações intemporais, a-históricas e mitológicas da alma, Benjamin satura as imagens com um conteúdo histórico, de modo a revelar a crise cultural não como uma manifestação da eterna luta cosmológica entre razão e vida, mas como uma crise do capitalismo e da sua cultura.
A teoria das imagens dialécticas de Benjamin considera que as imagens são potencialmente superiores às teorias racionais da cognição responsáveis pela marcha triunfal do "desencantamento do mundo" pós-iluminista. O marxismo de Benjamin não é alegre como a gaia ciência de Nietzsche: o marxismo de Benjamin é melancólico sem no entanto ser radicalmente pessimista. A filosofia da história de Max Weber retrata a visão final de uma história universal que conduz inexoravelmente a um mundo desencantado e a uma humanidade em servidão, despojada das suas faculdades mais elevadas: a dignidade do homem está ameaçada pela servidão dos indivíduos em relação às organizações burocráticas anónimas. O sistema económico eficaz é um sistema de dominação do homem sobre o homem. No mundo desencantado, isto é, racionalizado, pela ciência, pela administração burocrática e pela gestão das empresas económicas, o homem encontra-se só e dilacerado diante da escolha do seu próprio destino. Benjamin não adopta o pessimismo weberiano, porque vê no e para além do desencantamento do mundo o ressurgimento de forças mitológicas com roupagem moderna, tais como exposições mundiais, construções de ferro, panoramas, interiores, museus, iluminação, fotografia e galerias, que representam as imagens-desejo quase utópicas ou as imagens de sonho da superestrutura cultural do capitalismo moderno do século XIX. Para Benjamin, a tecnologia é responsável, não pela emancipação, como pensavam os liberais e os marxistas ortodoxos, mas pela emergência da mitologia moderna que, pelo facto de conter um momento utópico, não deve ser vista como algo pura e simplesmente regressivo. A imagem dialéctica desempenha um papel fundamental na redenção desse momento utópico: situar o passado na sua relação com as necessidades revolucionárias do presente histórico e actualizá-lo, de modo a redimir a promessa de felicidade contida na modernidade. Ora, estas imagens do passado primordial contidas nas manifestações fenoménicas da vida cultural do século XIX são precisamente as imagens dialécticas de uma "sociedade sem classes", o "comunismo primitivo" de Bachofen, aplaudido por Engels e Marx, cujos vestígios de memória foram armazenados no inconsciente colectivo (Carl Jung) e, posteriormente, reactivados na fantasmagoria cultural do capitalismo (Buck-Morss).
A crítica da modernidade de Benjamin é levada a cabo a partir de uma teoria da experiência que se inspira em Klages. Com efeito, Benjamin, Klages ou mesmo Ernst Jünger, estavam deveras preocupados com a diminuição do potencial humano para as experiências qualitativas que acompanhou a transição histórica da Gemeinschaf para a Gesellschaft. A modernidade é responsável pela desintegração progressiva da experiência e, nas actuais condições sociais, as imagens arcaicas só são acessíveis nos sonhos despertos, no transe ou nas experiências de choque que confrontam as pessoas com algo que destrói os padrões normais do pensamento racional. Contudo, a direcção imprimida por Benjamin à atrofia da experiência histórica diverge claramente da de Jünger: em vez de defender que a modernidade enfraquecida só pode ser redimida se a sociedade se reorganizar com base num modelo militar, como faz Jünger, Benjamin deposita, como já vimos, a sua esperança numa teoria messiânica da história, através da qual as promessas de uma vida redimida possam ser generalizadas e tornadas profanas, num movimento conjunto em que o corpo e a imagem se interpenetram na tecnologia, de modo a converter a tensão revolucionária em inervação corporal colectiva. O excesso de consciência (Simmel) prejudica os estados de experiência intensos que tendem a dissolver o eu em totalidades experienciais sempre crescentes e, segundo Benjamin, funciona como defesa contra os choques diários susceptíveis de acordar o homem do seu sono metabólico, a versão superactual do sono dogmático exorcizado por Kant. Isto significa que só o trabalho sistemático da memória involuntária, não-consciente, celebrada em Proust, pode recuperar os vestígios da memória do passado primordial que, devido ao esforço institucionalizado da autopreservação em que a sociedade moderna se tornou, se perderam para a lembrança consciente.
A revolta consciente de Marx contra a tradição não impediu Hannah Arendt de o colocar no fim de uma tradição que perdeu a sua autoridade: o ciclo da filosofia política que se inicia em Platão termina gloriosamente em Marx. Embora tenha operado uma profunda transformação da filosofia, exigindo a sua realização histórica mediante a acção transformadora do mundo, Marx reactiva toda a filosofia: a teoria de Marx retem de algum modo a teoria platónica do conhecimento como recordação. A ciência assume a tarefa de descobrir imagens que iluminam o que é falso, distorcido e negado na maneira como as coisas são dadas na realidade estabelecida. A recordação não é lembrança de um passado dourado ou de um paraíso perdido, mas sim a faculdade de síntese produtiva que reúne os fragmentos da humanidade distorcida e da natureza desvirtuada. O material recordado constitui o domínio da imaginação que retém a insolúvel tensão entre o potencial e o real, salvaguardando a transcendência da liberdade para além das formas dadas. A liberdade constitui um conceito regulador da razão que orienta a prática de transformação histórica do mundo de acordo com as próprias possibilidades inerentes às formas dadas e sancionadas pela sociedade estabelecida. A recordação constitui um conceito-chave da teoria de Marx e, dos seus inúmeros seguidores, foi a Benjamin que coube a tarefa de destacar o seu papel revolucionário na destruição do contínuo da história que confirma e consagra a história dos vencedores. Habermas acusou o marxismo de Benjamin de ser conservador, mas este conservadorismo pode ser devolvido e retribuído à sua teoria do agir comunicativo. Tal como Bergson, Benjamin encara a memória como a chave para a sua teoria da experiência e, com a ajuda da teologia negativa, mostra que só através da recordação é possível redimir o "acordo secreto" existente entre "as gerações passadas e a (geração) presente", isto é, entre os mortos e os vivos. O primado da recordação opõe-se ao conceito de progresso que só está superficialmente orientado para o futuro: "O passado carrega consigo um índice temporal que o reenvia para a redenção" e, por isso, através da rememoração (Eingedenken), a filosofia crítica pode reactivar e reactualizar esse "índice temporal de redenção" que se encontra adormecido no passado. Daí que o ideal de uma sociedade plenamente justa e livre deva ser nutrido mais pela "imagem de antepassados escravizados" do que pela "imagem de netos livres". Ora, numa sociedade metabolicamente reduzida como a do nosso tempo que atrofia a memória, através das suas políticas da educação, dos mass media e do marketing político, o despertar da memória e a rememoração são temas que devem ser integrados na agenda política de esquerda, porque o despertar da memória, embora seja impotente para nos libertar dos grilhões do presente, ajuda os oprimidos e vencidos de hoje a resgatar o que aconteceu e o que poderia ter acontecido, o que foi dito e feito, e o que foi desejado e sonhado, dando-lhes ânimo para lutar contra a miséria do presente, na expectativa de um dia alcançarem a vitória contra os opressores e a história dos vencedores
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J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Contra a Homofobia na Blogosfera

A blogosfera portuguesa está povoada de alguns blogues homofóbicos, dos quais destaco dois: um feminino - o blogue de gaja, como lhe chamou Maldonado, desencadeando uma extensa polémica na blogosfera que envolveu, entre outros, a Denise, a Tia Adoptada e o RockyBalbino - que procura visibilidade fácil, e outro masculino - e orgulhosamente homofóbico - que inventou uma quimera - o gayzismo - para poder levar a cabo uma luta política contra a cultura de esquerda identificada como cultura gay e o PS em particular. Os dois blogues seleccionados são de qualidade intelectual desigual e, na questão do feminismo, incongruentes, mas partilham uma mesma ideologia política conservadora e reaccionária. Esta associação entre elevado grau de homofobia, envolvimento religioso intenso e política conservadora não é insólita: o medo e o desconforto que os indivíduos supostamente heterossexuais experienciam na presença de pessoas homossexuais está associado a determinados factores sociais, tais como "ser politicamente conservador", "não conhecer pessoalmente indivíduos homossexuais assumidos" e "ter um intenso envolvimento religioso" (Lingiardi, V., et al., 2005).
O que é verdadeiramente insólito nestes dois blogues não é esta associação que podemos estabelecer entre o grau elevado de homofobia exibida pelos seus autores e o conteúdo ideológico dos seus posts, mas o link que une um "blogue de gaja" e o "blogue de um gajo" que construiu uma genealogia do pensamento filosófico que parte de Hegel - o antepassado dos antepassados - e de Marx e vai até ao desconstrutivismo de Derrida e de Foucault, passando pela misoginia de Nietzsche, responsabilizado pela irrupção dos feminismos, e pela Escola de Frankfurt, de modo a identificar toda essa cultura de esquerda com a cultura gay e o seu suposto sistema - o gayzismo. Para o autor homófobo do blogue de gajo que chama "panascas" a todos os que lutam contra a homofobia, incluindo José Sócrates, o pensamento filosófico contemporâneo é gayzista. A palavra gayzismo reconduz-nos de modo intencionalmente ambíguo a nazismo, isto é, a uma espécie de sistema totalitário que mina a dominação masculina e o heterosexismo que lhe é subjacente. Encarnando a figura do pensamento "politicamente correcto", o gayzismo é encarado pelo autor homófobo assumido como um conjunto de procedimentos e de dispositivos que impõem a todos os membros da sociedade maneiras de sentir, pensar e agir que violentam a suposta natureza das coisas: o gayzismo é, nesta perspectiva homofóbica, violência cometida contra a ordem natural das coisas. O ódio homofóbico dirigido contra Hegel e Marx ganha agora um contorno ideológico claro: o facto de terem mostrado que todas as instituições sociais são cristalizações da acção e do trabalho dos homens de carne e osso implica a noção crítica de que podem ser transformadas. Aquilo que era concebido ideológica e tomisticamente como uma ordem natural regulada por leis imutáveis e naturais foi submetido à crítica da ideologia - o marxismo cultural do escriba homófobo - que visa orientar a praxis de transformação dos oprimidos, humilhados e ofendidos. As instituições estabelecidas provocam mal-estar e esta experiência de mal-estar (Foucault) leva as vítimas a estudá-las e a decifrar os seus fundamentos históricos. Como têm uma história, as instituições são produtos da acção histórica e, por isso, não são imutáveis e naturais, podendo ser transformadas por novas acções políticas de libertação. A acção política de libertação da opressão social, racial e sexual exige um trabalho teórico que pressupõe uma crítica radical das formas de pensamento que suportam subterraneamente as instituições. Marx e Engels elogiaram a burguesia pelo papel revolucionário que desempenhou na demolição da velha ordem social: "O que distingue a época burguesa de todas as precedentes é a alteração incessante da produção, o derrubamento contínuo de todas as instituições sociais, em suma, a permanência da instabilidade e do movimento. Todas as relações sociais imobilizadas na tradição, com o seu cotejo de concepções e de ideias, fixas e veneráveis, se dissolvem; aquelas que as substituem caducam antes mesmo de cristalizarem. Tudo o que tinha solidez e perdurabilidade esvai-se em fumo, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são forçados, finalmente, a encarar com olhos desiludidos as suas condições de existência e as suas relações mútuas". A condenação homofóbica da filosofia contemporânea implica a rejeição de toda a modernidade social e reflexiva e de todos os seus movimentos de libertação: sexo, género, classe e raça constituem as categorias estigmatizadas que o escriba homofóbico articula numa única matriz doutrinal para a qual reserva - devido à sua homofobia assumida - este nome de baptismo brasileiro - gayzismo. A libertação das mulheres, a libertação das minorias eróticas, a libertação das etnias e das raças exploradas, a alteração das subjectividades de sexo, enfim, todos os movimentos sociais que visam derrubar a sociedade patriarcal, abolindo a heterossexualidade compulsiva (Judith Butler), são consideradas manifestações contra-natura, porque rejeitam em bloco o heterosexismo supostamente natural e as suas construções sociais - não naturais - de género e de sexo que determinam as posições sociais daqueles que sempre foram objecto de opressão sexual, racial e social: as mulheres, os homossexuais e as raças "inferiores". O ataque cerrado que o homófobo assumido dirige contra estes três grupos de pessoas revela, no fundo, três aspectos da sua personalidade autoritária (Adorno) que o levam a abraçar o nazismo sob a cobertura de um tomismo perverso: misoginia, homofobia e xenofobia.
A contrapartida ao gayzismo estabelecido é, segundo este autor homófobo, o nazismo. O escriba homófobo socorre-se da autoridade de um homossexual chamado Marco Aurélio para definir o sentido político da sua intervenção na blogosfera: «Ser como o promontório, contra o qual incessantemente as ondas se quebram. Ele ergue-se a prumo, e o furor das vagas vai abrandando em torno». A escolha de Marco Aurélio é infeliz, porque o filósofo viveu aventuras homossexuais escaldantes, mas a ideia do promontório adquire aos olhos do homófobo a significação fálica de resistência contra o gayzismo (derivado da sua homofobia), o feminismo (derivado da sua misoginia) e o multiculturalismo (derivado da sua xenofobia e do seu racismo). Paradoxalmente, o escriba homófobo é muito pouco criativo, usando as armas do chamado marxismo cultural para combater a sua cultura (marxista) da resistência contra o fascismo e o totalitarismo nazi. No entanto, a sua cultura homofóbica da resistência implica um elemento falocrático - o promontório erguido a prumo, a sua fantasia sexual reprimida - de violência retrógrada que não se ultrapassa no sentido do futuro humano: o incitamento à matança dos homossexuais, à misoginia e à xenofobia. A violência retrógrada procura opor resistência ao projecto de construção de um mundo melhor - a utopia concreta (E. Bloch) e não a utopia negativa que atribui erradamente ao marxismo -, bloqueando o futuro liberto da humanidade num mundo global. A experiência do Holocausto e das mortes nos campos de concentração nazis marcou fortemente o marxismo ocidental e a Filosofia: a questão do sentido da vida foi desacreditada pelo horror brutal da morte planeada daqueles que ousaram confrontar e combater o sistema totalitário. Bruno Bettelheim descreveu a experiência dos prisioneiros - condição que define a clandestinidade dos homossexuais numa sociedade heterosexista intolerante - nos campos de concentração de Dachau e de Buchenwald não só em termos de confinamento, mas também e sobretudo em termos de extrema ruptura das formas habituais da vida quotidiana, causada pelas condições brutalizadas de existência, pela ameaça sempre presente ou pela realidade da violência dos guardas prisionais, e pela escassez de alimentos e de outras provisões alimentares para a manutenção da vida. A experiência totalitária dos campos de concentração - retomada pelo escriba homófobo para combater o "politicamente correcto" na sua genealogia da cueca - mostrou como "a psique humana pode ser destruída mesmo sem a destruição física do homem" (Arendt): arrancados brutalmente aos contextos práticos da sua vida quotidiana e à vida familiar, quando ingressavam nos campos de aniquilação, os prisioneiros procuravam de início distanciar-se psicologicamente das pavorosas pressões de uma vida em espaço confinado, tentando conservar os modos de comportamento normais, mas, sob pressão da Gestapo e da violência dos guardas prisionais, acabavam por perder a sua autonomia, adoptando comportamentos infantis, deixando de cuidar da sua própria higiene pessoal e perdendo o sentido de futuro, o senso do tempo e a capacidade de antever. Vivendo numa situação de insegurança ontológica radical, muitos prisioneiros tornaram-se cadáveres ambulantes (Muselmänner), rendendo-se fatalmente a tudo o que o futuro pudesse reservar-lhes. Porém, como mostrou H. Arendt, esta fabricação em série de cadáveres foi precedida pela preparação, histórica e politicamente inteligível, de cadáveres vivos: antes de roubar a própria morte aos prisioneiros, o domínio total - o heterosexismo racista do escriba homófobo - começou por matar a sua pessoa jurídica (morte jurídica), depois a sua pessoa moral (morte moral) e, finalmente, a sua identidade única de pessoa humana (morte psicológica). Este planeamento gradual da morte mostra que o totalitarismo dispensa os homens, tornando-os seres supérfluos e transformando-os em animais. De facto, a natureza humana só pode ser verdadeiramente humana se for dada ao homem a possibilidade de se tornar algo não-natural, o homem humanizado, de resto uma possibilidade que lhe é negada pela actual sociedade hipercapitalista de consumo, bem como pelo escriba homófobo movido pela retaliação e pelo espírito de vingança típico daqueles que negam os seus impulsos sexuais mais genuínos.
Se todas as explicações económicas e psicológicas de uma doutrina são verdadeiras, "já que o pensador pensa sempre a partir daquilo que ele é", como escreveu Merleau-Ponty, então a homofobia assumida pelo autor do blogue de gajo revela a sua insegurança sexual e a sua tentativa desesperada de querer controlar a sexualidade dos outros. De acordo com os estudos empíricos, em vez de assumir o gay que há em si, o homem homófobo procura domesticá-lo, atacando preferencialmente os homens homossexuais que vivem a sua vida em conformidade com a sua orientação sexual genuína. O homem homófobo não tolera a diferença - a dos outros e a que o habita, e, por causa disso, abraça a violência e incentiva a "matança de homossexuais", transferindo para os outros os seus próprios problemas pessoais de identidade sexual e comportando-se como um inquisidor formado na escola de Joseph de Maistre. Deste modo, não só foge de si mesmo e dos seus fantasmas eróticos, como também confunde entre homofilia e homossexualidade, como se verifica na identificação operada maldosamente entre cultura de esquerda e cultura gay. Em vez de cuidar da sua própria vida sexual e de controlar as erecções do seu pénis, o homem homófobo quer controlar a sexualidade dos outros. O pensamento de que os outros possam ter uma vida sexual saudável atormenta-o. Ao contrário dos homossexuais que não atacam os heterossexuais, chamando-lhes heterozistas ou coisas do género, o homem homófobo preocupa-se com a homossexualidade, porque sente uma atracção erótica compulsiva por pessoas do mesmo sexo, atracção que quer negar eliminando os alvos que despertam esse desejo secreto e não-assumido. O seu "pénis" deseja aquilo que o superego lhe nega e, como não consegue reprimir o seu despertar desencadeado pelos estímulos sexuais do mesmo sexo, quer eliminá-los fisicamente - a tal matança de homossexuais. A homofobia é uma doença. Só uma mente mórbida e insana (Williams James) pode confundir entre teoria crítica e supostos regimes "marxistas", tais como Cuba, China e Coreia do Norte, acusando-a de ter conduzido ao "politicamente correcto" - uma invenção americana, e operar uma identificação linear entre cultura de esquerda e cultura gay. A cisão psicológica que o atormenta leva-o a esta situação caricata: projecta para fora o fantasma sexual que ele é e que deseja secretamente consumar. A luta contra uma esquerda que mais não é do que a projecção do seu fantasma sexual não resolvido é, afinal, uma luta que o homófobo trava consigo mesmo. O que leva um indivíduo a insultar os outros que não são como ele - chamando-lhes "panascas" - a não ser um conflito interno? Porque razão a sexualidade dos outros o incomoda tanto a ponto de ser violento física e verbalmente? A homofobia só pode ser entendida como negação da sua própria homossexualidade. As mulheres casadas com homens homofóbicos são forçadas a procurar satisfação sexual fora da relação consagrada por um ritual religioso formal - o casamento na perspectiva estreita do escriba homófobo, porque os maridos agem de modo a controlar a sua sexualidade e a privá-las do prazer sexual. Para o escriba homófobo, as "mulheres corajosas" são aquelas que alinham com a dominação masculina, isto é, heterosexista, que as priva da sua sexualidade e da liberdade sexual. O heterosexismo tem assim uma vertente homofóbica: os castrados mentais querem castrar os outros - mulheres e homens, alegando que a sua sexualidade é contra-natura. (O post termina aqui; o que se segue já tinha sido publicado na série de posts intitulada "Homofobia ou Preconceito Sexual?", de resto criticada pelo autor do blogue "Perspectivas" que já ripostou de modo deselegante e insultuoso a este meu post - veja aqui.)
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Uma perspectiva científica da homofobia. Em 1973, a American Psychiatric Association Board of Directors votou a remoção da homossexualidade do seu Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), declarando que a orientação do mesmo sexo não está inerentemente associada com a psicopatologia. Esta votação foi rectificada, em 1974, pelos membros da Associação, e teve imediatamente fortes repercussões noutros grupos profissionais, tais como a American Psychological Association (APA), e no modo como a medicina e as ciências do comportamento começaram a olhar para a homossexualidade. Contudo, esta mudança radical do discurso sobre a orientação sexual nos USA e no mundo foi claramente preparada por George Weinberg, que elaborou o conceito de homofobia, em 1972, três anos após os tumultos de Stonewall (1969), para forçar a comunidade científica e a sociedade em geral a questionar a legitimidade da hostilidade anti-homossexual e a pensar de modo diferente o "problema da homossexualidade". Mas o termo homofobia já tinha sido forjado antes de 1972 para refutar a concepção predominante de que a homossexualidade era uma patologia. Em 1965, Weinberg usou, talvez pela primeira vez numa reunião social, o termo homofobia para designar uma "fobia" ou "medo dos homossexuais", um "medo de contágio" e um "medo religioso" de tal modo intensos que conduzem os homens a cometer actos de brutalidade contra os homossexuais. E, em 1971, já num artigo, usa o termo homofobia para designar "a aversão (ou temor) de ser alojado (ou de estar em contacto próximo) com os homossexuais e, no caso dos próprios homossexuais, a auto-aversão", isto é, o tédio e o aborrecimento consigo próprio.
Ao descrever as consequências da homofobia, Weinberg destaca a sua ligação estreita com o reforço das normas do género masculino e da masculinidade convencional. O preço mais elevado que se paga pela homofobia é a extensão da inibição a todo o círculo de actos relacionados com a actividade temida: os homens evitam actos que possam manifestar ou insinuar sentimentos homossexuais, privam-se de trocar beijos ou abraços, não expressam o seu afecto recíproco ou o seu mútuo desejo de estar abertamente na companhia uns dos outros, não apreciam e não desfrutam a beleza das formas físicas de outros homens, não se sentam muito próximos uns dos outros enquanto conversam, não olham directa e afectuosamente uns para os outros e os pais evitam beijar ou abraçar carinhosamente os seus filhos do sexo masculino. Enfim, tudo aquilo que as mulheres fazem umas com as outras e com os filhos é evitado pelos homens nas suas relações e interacções uns com os outros e com os próprios filhos. O medo da homossexualidade é-lhes inculcado desde os primeiros anos de vida e o resultado deste processo convencional de socialização de género é a fobia como antagonismo dirigido contra um determinado grupo. A fobia leva-os a menosprezar e a maltratar todos aqueles que fazem parte desse grupo hostilizado: "A fobia em acção é um preconceito, o que significa que podemos compreendê-la melhor se a considerarmos na sua condição de preconceito", cujos motivos encobertos radicam no motivo religioso (judaísmo e cristianismo), no temor secreto de ser homossexual, no desejo reprimido, na ameaça dos valores e na angústia da existência sem uma imortalidade substituta. A repulsa pelos homossexuais é acompanhada pelo desejo de lhes infligir castigos: os heterossexuais atacam os homossexuais, porque estes lhes inspiram um "medo mortal". O que eles condenam é a diferença e, segundo Weinberg, esta atitude de hostilidade exibe todos os atributos básicos de um "preconceito social irracional".
A conceptualização da homofobia de Weinberg vacila entre dois conceitos: o da homofobia como fobia e o da homofobia como preconceito social irracional. Isto significa que as duas teorias elaboradas para explicar a hostilidade dos heterossexuais em relação aos homossexuais coexistem nas suas formulações teóricas. Apesar desta ambiguidade essencial, o termo homofobia foi bem acolhido pelas comunidades científica e académica, pelos activistas gay e pelo público em geral, sendo rapidamente integrado na língua inglesa e nos seus dicionários. O seu sucesso deve-se fundamentalmente ao facto de cristalizar as experiências de rejeição, hostilidade e invisibilidade que os homens e as mulheres homossexuais viveram durante as suas vidas na primeira metade do século XX, mostrando que o problema da homossexualidade não residia nas pessoas homossexuais e na sua orientação sexual, mas sim nos heterossexuais que não toleravam os homossexuais, pelo facto da sua presença questionar os papéis de género socialmente construídos e atribuídos, especialmente o modo como eram definidos e aplicados aos homens.
O modelo da homofobia foi usado para conceptualizar uma diversidade de atitudes negativas ligadas à sexualidade e ao género: lesbofobia (Kitzinger, 1986), bifobia (Ochs & Deihl, 1992), transfobia (Norton, 1997), effeminophobia (Sedgwick, 1993) e heterofobia (Kitzinger & Perkins, 1993) emergiram como categorias da hostilidade dirigida contra as lésbicas, os bissexuais, os transgéneros, os homens efeminados e os heterossexuais, respectivamente. O'Donnell et al. (1987) criaram o termo AIDS-fobia para caracterizar o estigma associado ao HIV. A sissyfobia (Green) é particularmente terrível, porque o alvo da hostilidade são crianças do sexo masculino que exibem desde cedo traços de género atípicos: os meninos efeminados são não só rejeitados pelos pais, como também maltratados e abusados pelos seus pares na escola. A agressão infantil pode ser mais cruel do que a agressão infligida pelos adultos e os seus efeitos sobre o desenvolvimento podem ser irreversíveis. Outro conceito que partilha algumas similaridades com o de homofobia é o de xenofobia, usado para designar a hostilidade cultural e individual dirigida contra os estranhos ou os estrangeiros. A compreensão da construção de todas estas fobias exige, conforme mostrou Erving Goffman no seu excelente estudo sobre o estigma, a sua localização no respectivo contexto histórico. A nossa época pode ser definida como a era dos medos, incluindo o medo do medo ou medofobia. De certo modo, as pessoas começam a estar "cansadas da humanidade", para usar esta expressão de Nietzsche, e esse "cansaço" pode traduzir-se na emergência de novas fobias, entre as quais o medo da humanidade ou dos homens. A actual crise financeira e económica pode gerar uma atmosfera de grande ansiedade, favorável ao aparecimento de fobias insuspeitas.
Etimologicamente, a homofobia é um termo ambíguo, por causa do prefixo homo: na sua significação latina podemos traduzi-lo literalmente por "medo dos homens" ou mesmo "medo da humanidade", e na sua significação grega, por "medo do mesmo ou do similar". Weinberg utiliza o termo homofobia na sua significação grega para referir o "medo dos homossexuais de ambos os sexos". A proposta de Boswell (1980) para substituir o termo homofobia por homosexofobia não clarifica o conceito, porque o prefixo homo é usado como termo derrogatório para designar os indivíduos homossexuais: as pessoas comuns sabem perfeitamente que o homo de homofobia se refere aos indivíduos que sentem atracção erótica por outros indivíduos do mesmo sexo e que a homofobia é "medo dos homos".
1. Homofobia como Medo. O aspecto mais problemático do termo homofobia não reside tanto no prefixo homo, mas sobretudo no sufixo phobia: fobia não é simplesmente sinónimo de medo. De acordo com o DSM-IV-R, uma fobia é "o medo claro e persistente de situações ou objectos circunscritos": a exposição ao estímulo fóbico provoca quase sempre uma resposta ansiosa imediata nas pessoas com esta perturbação. Embora possam reconhecer que o seu medo é excessivo ou irracional, estas pessoas evitam a todo o custo o estímulo fóbico e, quando o enfrentam, fazem-no com muito sofrimento. O diagnóstico é apropriado "somente se o evitamento, medo ou antecipação ansiosa do confronto com o estímulo fóbico interferir significativamente com a rotina diária da pessoa, funcionamento ocupacional, vida social ou se a pessoa estiver claramente perturbada por ter a fobia". As perturbações fóbicas constituem uma das categorias principais das perturbações de ansiedade, sendo a outra categoria a dos estados de ansiedade. Estas duas categorias de perturbações diferem em termos do grau no qual a ansiedade é localizada ou difusa: no caso das fobias, a ansiedade é localizada e associada a um objecto ou situação particulares, enquanto, nos estados de ansiedade, ela é difusa, não está relacionada a algo específico e é experienciada como omnipresente ou livremente flutuante.
Weinberg procurou representar a homofobia como uma espécie de categoria de diagnóstico, idêntica à agorafobia e a outras fobias específicas, até porque diz claramente que só considera saudável um "paciente que tenha superado o seu preconceito contra a homossexualidade", preconceito que, no caso do paciente ser homossexual (homofobia interiorizada), o impede de "expressar livremente os seus próprios desejos". Weinberg trata-a como uma fobia, embora a identifique logo a seguir com o preconceito, de acordo com a psicologia do preconceito de Gordon Allport. Alguns estudos não apoiam a noção de que as atitudes antigay possam ser representadas como uma verdadeira fobia (Bernat et al., 2001; Ernulf & Innala, 1987; Herek, 1994): as respostas emocionais negativas dos heterossexuais em relação à homossexualidade envolvem ira e aversão. Isto significa que há uma descontinuidade emocional entre a homofobia e as verdadeiras fobias: a componente emocional de uma fobia é a ansiedade, enquanto a componente emocional da homofobia parece ser a raiva. Haaga (1991) apontou outras quatro descontinuidades: 1) o indivíduo fóbico sabe que o seu medo é excessivo e irracional, apesar de não conseguir deixar de ficar com medo quando enfrenta o estímulo fóbico, enquanto os homófobos pensam que a sua raiva é justificada; 2) o comportamento disfuncional associado a uma fobia é a aversão, enquanto na homofobia é a agressão; 3) a homofobia está ligada a uma agenda política, enquanto as fobias não o estão; e 4) os indivíduos fóbicos estão, eles próprios, motivados para mudar a sua condição, enquanto os indivíduos com homofobia recebem o ímpeto para mudar de fora, em especial dos alvos das suas atitudes negativas.
No entanto, os adeptos da teoria da homofobia não ficaram desarmados e, em vez de abandonar o conceito, submeteram-no a uma revisão. Hudson & Ricketts (1980) afirmaram que o significado do termo homofobia tinha sido diluído, por causa da sua difusão na literatura, onde inclui qualquer atitude, crença ou acção dirigida contra a homossexualidade, e, a seguir, criticaram os estudos que não fazem a distinção entre as atitudes cognitivas em relação à homossexualidade (homonegativismo) e as respostas afectivas e pessoais provocadas pelos indivíduos homossexuais (homofobia). As definições devem ser claras e operacionais e, para clarificar esta distinção conceptual, Hudson & Ricketts (1980) definiram o homonegativismo como um construção multidimensional que inclui juízos a respeito da moralidade da homossexualidade, decisões sobre relações pessoais ou sociais, e todas as respostas referentes a crenças, preferências, legalidade, desejabilidade social ou respostas cognitivas similares. Por outro lado, definiram a homofobia como uma resposta afectiva ou emocional, incluindo medo, ansiedade, ira, desconforto, e aversão, que um indivíduo experiencia quando interage com indivíduos gay, a qual pode ou não envolver uma componente cognitiva. Assim, por exemplo, a homossexualidade ego-distónica ou acentuada angústia com a sua própria orientação sexual pode constituir um tipo de homonegativismo, mas não implica necessariamente homofobia. Esta clarificação é consistente com a definição de homofobia de Weinberg.
Contra o argumento de que o termo homofobia pode não ser apropriado, por não haver evidência de que os indivíduos homófobos exibam aversão pelos indivíduos homossexuais (Bernstein, 1994; Rowan, 1994), MacDonald (1976) arguiu que o único critério necessário para categorizar uma fobia é que o estímulo fóbico produza ansiedade, a qual depende frequentemente da natureza do estímulo e das circunstâncias ambientais: a homofobia pode assim ser definida como ansiedade ou ansiedade antecipada desencadeada pelos indivíduos homossexuais. Esta definição está, como observaram O'Donahue & Caselles (1993), em conformidade com os critérios de diagnóstico exigidos pelo DSM-IV. O'Donahue & Caselles (1993) desenvolveram um modelo tripartido da homofobia, o qual integra componentes cognitivos, afectivos e comportamentais, que interagem de modo diferencial com variadas situações associadas com a homossexualidade. A ideia da homofobia como um fenómeno de ansiedade foi retomada por diversas explicações psicanalíticas, uma das quais, como veremos mais adiante, destaca a ansiedade provocada pela possibilidade de um indivíduo ser ou vir a ser um homossexual, de resto já prevista pela teoria de Weinberg.
2. Homofobia como Patologia. Weinberg apresenta o seu livro revolucionário como uma análise prévia da "doença chamada homofobia, uma atitude que se observa em muitas pessoas não homossexuais, e talvez na maioria dos homossexuais, nos países em que existe discriminação contra eles". Como psicoterapeuta, o seu objectivo é ajudar essas pessoas não homossexuais a "superar esta atitude" e sobretudo ajudar os homens e as mulheres homossexuais a converter-se em "homossexuais saudáveis", isto é, a aceitar-se a si próprios e a considerar apropriados os seus próprios desejos homossexuais. A linguagem da psicopatologia foi abraçada por diversos clínicos (Kantor, 1998; Jones & Sullivan, 2002), para os quais a homofobia constitui uma categoria clínica válida aplicável a alguns indivíduos. Porém, a noção de que a homofobia é uma patologia pode ser tão infundada quanto a noção de que a homossexualidade era uma doença. Ambas as noções usam a linguagem clínica para patologizar um padrão de pensamento e de comportamento, estigmatizando-o e estabelecendo subrepticiamente uma equivalência identitária entre o "doente" e o "moralmente mau". Quem foi educado na crítica da fabricação social da loucura realizada por Thomas S. Szasz e pelo movimento da antipsiquiatria desconfia destas tentativas infundadas ou precipitadas de tratar certos comportamentos como indicadores de "doença mental", mas a denúncia do abuso da linguagem da doença não impediu que o modelo da homofobia fosse usado para conceptualizar uma diversidade de atitudes negativas ligadas à sexualidade e ao género.
A hostilidade institucional e individual e a discriminação contra os indivíduos homossexuais está factualmente bem documentada (Berrill, 1990; Herek, 1989): Mais de 90% dos homens gay e das lésbicas relataram terem sido alvo de maus tratos e de abuso verbal e mais de um terço relatou ter sido alvo de violência ligada à sua orientação sexual (Fassinger, 1991). Diante desta hostilidade heterossexual contra os homossexuais, nem mesmo Goffman resiste a dizer que "o preconceito contra um grupo estigmatizado pode ser uma forma de doença". A patologia social de E. Lemert (1951) e o estudo clássico de H. Becker (1963) sobre os "outsiders" suportam esta afirmação, bem como a sua extensão às perturbações iatrogénicas causadas pelo trabalho realizado pelos médicos, entre as quais Weinberg incluiu a psicanálise e outras terapias que ajudaram a popularizar a concepção de que a homossexualidade é um fenómeno de saúde mental. Assim, como escreveu Weinberg, "quando uma pessoa não se prejudica a si mesma nem prejudica as outras pessoas, a afirmação de que está psicologicamente doente carece de sentido", mas, quando se prejudica a si e prejudica os outros, como sucede no caso da homofobia, justifica-se a utilização de uma categoria de diagnóstico: a homofobia responsável pela hostilidade constitui, neste sentido, uma categoria de diagnóstico, uma vez que os homófobos não só estreitam o seu círculo de actividades relacionadas com o estímulo fóbico, como também são levados a cometer hate crimes contra os homossexuais, negando assim a diferença. A psicopatologia de Weinberg funda-se na premissa de que, na nossa sociedade global, há espaço para todos aqueles que não lesionem ou danifiquem os direitos dos demais seres humanos.
3. Homofobia e Androcentrismo. A análise da teoria da homofobia tem estado centrada nas supostas limitações da homofobia: duas delas já foram superadas, mas é na terceira limitação que a teoria revela a sua força preditiva. Muitos estudos mostraram que os homens heterossexuais são mais hostis em relação aos homens gay do que as mulheres heterossexuais, e, de modo diferente, são menos hostis em relação às lésbicas do que as mulheres heterossexuais. Isto pode significar que as atitudes heterossexuais em relação às lésbicas têm uma organização psicológica diferente da que têm em relação aos homens gay (Herek, 2002; Herek & Capitanio, 1999). Kitzinger (1987), Pellegrini (1992) e Rich (1980) sugeriram, numa perspectiva feminista lésbica, que a opressão das lésbicas é qualitativamente diferente da opressão dos homens homossexuais. Alguns psicanalistas menos ortodoxos (West, 1977; Kuyper, 1993) defenderam que a homofobia é o resultado de uma homossexualidade reprimida ou de uma homossexualidade latente. Definida como uma excitação homossexual que o indivíduo nega ou da qual não é consciente, a homossexualidade latente permite explicar a doença emocional e as atitudes irracionais exibidas por alguns indivíduos que sentem culpa pelos seus interesses eróticos encobertos e que se esforçam por os negar ou reprimir. Ora, quando colocados numa situação susceptível de excitar os seus próprios pensamentos homossexuais não-desejados, estes indivíduos reagem com pânico e fúria (Slaby, 1994). A ansiedade derivada da homossexualidade não ocorre nos indivíduos que são orientados pelo mesmo sexo, mas envolve frequentemente indivíduos que são ostentivamente heterossexuais e que têm muita dificuldade em integrar os seus sentimentos homossexuais. Portanto, estas teorias psicanalíticas prevêem que os homens homofóbicos exibem mais excitação sexual quando enfrentam estímulos homossexuais do que os homens não homofóbicos.
Adams, Wright & Lohr (1996) testaram esta previsão, realizando um estudo com dois grupos de participantes: homens homofóbicos e homens não-homofóbicos, avaliados e classificados previamente pelo Index of Homophobia (Hudson & Ricketts, 1980). Os participantes foram depois expostos a estímulos eróticos sexualmente explícitos: videotapes de cenas homossexuais, heterossexuais e lésbicas, e a excitação sexual peniana foi monitorizada. Os dois grupos de homens reagiram com aumento da excitação sexual peniana aos filmes heterossexuais e lésbicos: apenas o grupo homofóbico reagiu eroticamente aos filmes homossexuais. Estes resultados sugerem que a homofobia está associada à excitação homossexual. Isto significa que os homens homofóbicos são provavelmente "homossexuais dissimulados" ou em processo de negação da sua própria homossexualidade, o que pode explicar a sua agressividade dirigida mais contra os homens gay do que contra as lésbicas, até porque os homens heterossexuais toleram a homossexualidade feminina e se excitam com ela, como mostra a indústria masculina dos filmes pornográficos. Realizado em função da teoria da homofobia, lida à luz de certas teorias psicanalíticas, este estudo confirma, pelo menos, duas previsões da teoria de Weinberg: o preconceito "é mais frequente entre os homens do que entre as mulheres", no sentido dos homens heterossexuais serem mais hostis em relação aos homens gay e menos hostis em relação às lésbicas do que as mulheres heterossexuais, e isso talvez porque alguns homens ostensivamente heterossexuais tenham "o temor secreto de ser homossexuais", a homossexualidade latente dos freudianos, sentindo-se, por isso, "ameaçados pela presença dos homossexuais que, (além de os excitar sexualmente,) parecem desprezar as normas básicas da masculinidade", embora não sejam necessariamente mais agressivos do que os homens não homofóbicos.
J Francisco Saraiva de Sousa