quinta-feira, 30 de abril de 2009

Vergonha e Moral

No post anterior, quando procurei apreender um traço dos indivíduos que são acusados publicamente de serem "corruptos" ou "abusadores" pelos meios de comunicação social, afirmei que "a mediocridade satisfeita perdeu a vergonha", para mostrar que eles agem, pelo menos, na aparência, como se não tivessem vergonha de ser alvo da crítica, da censura e do repúdio dos outros. A conduta de certas figuras públicas é censurada pelos outros e, no entanto, as pessoas visadas agem como se fossem imunes à censura e à indignação do público. Com esta reacção de indiferença moral, colocam-se à margem do cosmos moral, rejeitando a reciprocidade das exigências morais. E, como parecem não-querer assumir na sua identidade o ser-assim, como membro da sociedade ou parceiro cooperativo, não sentem vergonha quando ferem as normas da sociedade, embora se mostrem indignados quando os outros as quebram. Em termos de psicopatologia, o facto de não se envergonharem, mesmo quando são alvo de acusações injustas e invejosas, como sucede frequentemente em Portugal, revela uma "lack of moral sense" (D.W. Winnicott), isto é, um defeito da consciência moral. Nos tempos sombrios que correm, a saúde mental daqueles que assumem cargos de enorme responsabilidade política ou pública deve preocupar todos os membros da sociedade. A comunidade não pode nem deve ser condescendente com os indivíduos que não sejam aptos para assumir saudavelmente responsabilidade política: quem não quer entender-se como membro do cosmos moral carece de consciência moral e, por isso, não merece a confiança dos que querem participar, activa e responsavelmente, mediante exigências recíprocas em função do seu conceito de ser-bom, nesse mesmo cosmos.
Uma pessoa sente vergonha em determinadas circunstâncias, tais como a posse de qualidades estigmatizadas pelas quais sente vergonha, a má realização de capacidades e habilidades que são importantes para si e o sentir-se desprezível pelo facto de considerar o seu comportamento como moralmente mau ou então como meramente desprezível. O sentimento de culpa permite distinguir a vergonha moral da vergonha no seu sentido mais abrangente. A admiração como ser humano constitui o correlato positivo da vergonha, a qual só adquire o seu sentido moral quando se liga ao sentimento de culpa. A vergonha está relacionada com o "não-ser bom", enquanto o sentimento de culpa se relaciona com a violação do "tem de ser". A auto-estima de um indivíduo resulta da consciência que tem de ser bom nas capacidades e habilidades que considera serem de tal modo importantes para si que fazem parte da sua identidade: o seu sentimento de auto-estima depende do facto de "ser bom" nas suas capacidades e habilidades. Porém, quando sente que desempenhou mal tais capacidades e habilidades, reage com vergonha, quer esteja na presença efectiva de outros considerados competentes, quer esteja sozinho diante de um público possível. Mas, quando sente que agiu em conformidade com as exigências morais da sua comunidade, é alvo de admiração e de respeito daqueles que estão mais próximos de si. A sua auto-estima eleva-se e o sentimento de culpa não assombra a sua consciência moral.
Se definirmos, em termos muito sumários, a moral como um cosmos de exigências recíprocas em torno da noção de ser-bom, isto é, como um "sistema de normas que existe numa sociedade devido à pressão social" (E. Tugendhart), o indivíduo deve agir de modo a não ferir a noção de ser-bom partilhada pela comunidade a que quer pertencer: deve querer o que "tem de ser", porque só assim pode ser membro de um cosmos moral. Ao ser sensível à censura e à indignação dos outros, sente vergonha sempre que fere os padrões de valor da sua comunidade e a sua auto-estima é baixa. Ora, quando perde a vergonha, um indivíduo deixa de ser capaz de sentir culpa por ter agido de modo não-congruente com aquilo a que a sua comunidade espera dele, isto é, que seja um homem-bom. Ser desvergonhado significa, em última instância, ser imoral, no sentido de não ser sensível à indignação dos outros, de não sentir culpa por violar as normas morais e de ser destituído de consciência moral. De certo modo, o indivíduo sem vergonha aproxima-se muito do "homem amoral" de Bernard Williams: um parasita do sistema moral, cuja satisfação só pode existir porque as outras pessoas agem de modo diferente, dado estarem empenhadas e envolvidas no cosmos moral da sua comunidade.
Na Antiguidade Clássica, a ética que definia a conduta própria do homem enquanto cidadão era uma parte e um aspecto da filosofia política. A filosofia das coisas humanas foi abordada em dois tratados de Aristóteles: a "Ética a Nicómaco" que se ocupa dos cidadãos, e a "Política" que trata das instituições cívicas: a ética precede a política, porque a vida boa do cidadão é a razão de ser da polis. Aristóteles chamava bom (no sentido moral) àquele cidadão que, sendo membro da comunidade, se comporta como parceiro cooperativo: uma acção só é boa quando é a acção de um homem bom, o que significa que o bom está ligado fundamentalmente a pessoas e ao seu carácter. Aristóteles definiu a vergonha "como um certo desgosto ou perturbação de espírito relativamente a vícios, presentes, passados ou futuros, susceptíveis de comportar uma perda de reputação", e a desvergonha, como um "certo desprezo ou insensibilidade perante estes mesmos vícios". Os vícios de carácter visados são aqueles que "parecem desonrosos, quer para nós, quer para as pessoas por quem nos interessamos": os actos que nos envergonham, ou os seus sinais, afectam a perda de reputação, não por causa das suas consequências, mas por causa da perda em si mesma. Tememos perder a admiração das pessoas que nos admiram, das pessoas que admiramos e das pessoas por quem queremos ser admirados, e é diante delas que sentimos vergonha. G. Taylor definiu a vergonha como o sentimento de perda de auto-estima aos olhos dos outros e, como tal, refere-se à consciência que um indivíduo tem de "não-ser bom", não apenas nas capacidades e habilidades, mas também na capacidade de ser um bom agente cooperativo. A vergonha moral, a única que interessava Aristóteles, é precisamente a reacção emocional que toma conta do homem quando fracassa moralmente como agente cooperativo. O homem pertence a uma comunidade de pessoas que, mediante a sanção interna da indignação e da vergonha, exigem umas às outras que as normas constitutivas da sua identidade não sejam quebradas. Os membros de uma comunidade devem querer ser-assim e ser-bons. O ter-de-ser-assim é precedido por um eu-quero ser membro de um cosmos moral e agir de acordo com as suas exigências morais recíprocas. Porém, quando age contra essas exigências, é alvo de uma sanção que interiorizou na vergonha e da indignação dos outros. Deste modo, forma-se a consciência moral: a vergonha e a culpa resultam da interiorização de sanções externas. Quando um indivíduo viola normas morais, expõe-se ao desdém dos outros e, dado ter interiorizado a sanção, ao desdém de si mesmo. O princípio do respeito recíproco defendido por Tugendhart afirma que todos os indivíduos pertencentes a uma comunidade revelam interesse em ter respeito por si próprios e em serem respeitados pelos outros enquanto pessoas. Nesta perspectiva, as normas morais só são boas para mim se forem também boas para os outros: a comunidade a que pertencemos não é uma comunidade constituída por normas ao serviço da utilidade recíproca (Mackie), mas a comunidade constituída por normas, cujo sentido expressa o respeito recíproco. O auto-respeito exige o respeito recíproco: só nos podemos afirmar se formos estimados por outros que se comportam de modo a merecerem respeito e a poderem também ser estimados por nós. O indivíduo que se comporta de forma amoral é ameaçado no seu auto-respeito, isto é, na sua auto-estima. Tugendhart defende, portanto, uma moral do respeito recíproco que converge no princípio universalista do igual respeito por cada um.
J Francisco Saraiva de Sousa

2 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, peço um pouco de paciência com a edição deste post, porque a ideia inicial estremeceu quando pensei articular a filosofia política, a filosofia moral e a filosofia do direito. Há uma séria contradição entre as três e essa contradição é real, o que quer dizer que só pode ser resolvida no combate moral e político. Apesar disso, vou iludir este problema e concluir o post; pelo menos, denuncia uma situação injusta. Aproximei-me de Aristóteles, tentando escapar ao comunitarismo de MacIntyre. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A minha prática filosófica tem procurado recuperar e actualizar a tradição ocidental, esquecendo praticamente tudo o que foi produzido nas últimas três décadas: apago filosoficamente esse período e reato com tudo o que antecedeu. Politicamente isso significa que pretendo repensar determinados modelos críticos que foram esquecidos pelo neoliberalismo, como se tivessem sido destruídos. No entanto, o que procuro é dotar a nossa tradição de autoridade, sem cancelar a crítica e a crise. Um modelo ético tradicionalista? Talvez, mas não no sentido das éticas tradicionalistas, porque desisto de seduzir o mundo global: recuperar o Ocidente é definir claramente o seu território, lutando contra todos os seus inimigos ou estranhos. Uma espécie de exclusividade tolerante, embora vigilante e actuante! Não tenho medo da guerra; por isso, sou filósofo = ocidental profissional! :)