terça-feira, 31 de março de 2009

Prós e Contras: Uma questão de segurança!

O debate de Prós e Contras de hoje (30 de Março de 2009) foi dedicado à criminalidade, conflitualidade e segurança interna, girando muito em torno do Relatório de Segurança Interna realizado pela equipa do Coordenador-Geral do Sistema de Segurança Interna, Mário Mendes: o indicador mais alarmante deste Relatório é o de que os números relativos à criminalidade geral, violenta e grave, dispararam em Portugal no ano de 2008, embora se tenha verificado um "abaixamento (ou descida) do número de crimes graves nos três primeiros meses do presente ano". Mário Mendes considera que o combate contra a criminalidade não é tanto um "problema de números", mas sobretudo uma questão de saber reforçar e optimizar os recursos humanos, mediante a reformulação de modelos. É preciso saber se esta criminalidade verificada no ano anterior é um fenómeno estrutural ou um fenómeno conjuntural: a criminalidade em Portugal parece estar associada aos fluxos migratórios legais e ilegais, susceptíveis de fomentar movimentos de criminalidade, tais como exploração de pessoas e tráfico de seres humanos.
Os opositores das políticas governamentais de segurança interna, Fernando Negrão (PSD) e Helena Pinto (BE), além de não concordarem com a criação da figura do Coordenador-Geral sob comando directo do Primeiro-Ministro, dirigiram as suas críticas às diversas políticas implementadas pelo Ministro da Administração Interna, Rui Pereira. A reorganização das forças policiais não foi feita a tempo de prevenir a criminalidade observada no ano anterior (Helena Pinto) e o governo falhou por não ter recrutado novos efectivos para fazerem o devido patrulhamento (Fernando Negrão), como se o problema da criminalidade pudesse ser resolvido com maior número de polícias. O deputado do PSD considera que a situação é mais grave do que aquela relatada pelo Relatório, porque muitos alvos dos crimes não apresentam queixa por não acreditarem no sistema de segurança interna. A situação de grave crise económica potencia o crime, nomeadamente os assaltos às casas e o crime organizado, e parece que nada está a ser feito para prevenir essa criminalidade resultante do desemprego e da pobreza. Fernando Negrão mencionou dois factos insólitos divulgados recentemente pela comunicação social: as patrulhas de professores para evitar a prática banal de crimes nas escolas e os professores que entram nas escolas protegidos por agentes de segurança. Segundo um membro de um dos nove sindicatos da polícia (sic), estes factos revelam que, daqui a uns dez anos, a criminalidade irá aumentar drasticamente. Embora não tenha sido processada neste Relatório, a criminalidade juvenil banaliza-se nas escolas e nos espaços públicos e ameaça colonizar o futuro com actos de criminalidade excessivamente violenta. Retomando a ideia do número excessivo de agentes privados de segurança quando comparado com o número de agentes públicos de segurança, Helena Pinto não resistiu a referir uma assimetria de poder no acesso à segurança: Os ricos têm acesso à segurança privada, enquanto os mais pobres não são protegidos pelas forças públicas de segurança. Além disso, referiu a ausência de uma política europeia de combate ao crime e considerou o Código do Processo Penal (as leis penais) como uma "trapalhada do governo" (15 dias), alertando para o número excessivo de armas que circulam pelo país e o acesso dos jovens de 16 anos às armas. No entanto, para a deputada, as leis defendidas por Rui Pereira não interessam: o que interessa são os meios disponibilizados às forças policiais que a Helena Pinto não soube explicitar. Dada a precariedade destas críticas da oposição, foi fácil para Rui Pereira rebatê-las uma a uma, com enorme mestria e conhecimento.
O Ministro começou por frisar o carácter positivo da reorganização das polícias e da sua coordenação mais eficaz, sem prejuízo das respectivas hierarquias policiais, focando três aspectos fundamentais da sua actuação: a segurança constitui um direito fundamental, tal como a liberdade, que o governo pretende garantir a todos os cidadãos portugueses (1); negou a existência de um número mais elevado de forças privadas do que de forças públicas, embora possam haver diferenças de habilidades profissionais que estão a ser combatidas através do recrutamento de novos efectivos, da dignificação da carreira e da definição das suas competências (2); e referiu que o governo segue uma política equilibrada de imigração, mediante a criação do passaporte electrónico, do controle dos fluxos e das redes criminais e da intervenção rápida, com o objectivo de tornar as fronteiras mais seguras sem impedir a livre circulação das pessoas (3). As forças policiais portuguesas são respeitadoras dos direitos humanos, aliás uma "disciplina" administrada nas academias da polícia, e a Inspecção Geral da Administração Interna zela e garante os direitos fundamentais dos polícias e dos cidadãos. As leis penais acusadas de serem uma trapalhada reforçam substancialmente a defesa das vitimas mais vulneráveis, nomeadamente as vítimas de violência doméstica; as ofensas corporais cometidas contra as autoridades foram criminalizadas e penalizadas; a polícia de proximidade já é uma realidade em expansão; estão a ser realizados investimentos nas forças policiais, em especial na aquisição de equipamentos mais adequados para combater as novas criminalidades; as esquadras da polícia não foram fechadas, como sucedera no tempo de António Costa; a lei das armas foi uma boa medida tomada pelo governo, dado agravar as penas e facilitar a prisão preventiva; e as acções mediáticas de prevenção são decididas pelo Director Nacional da PSP e não pelo Ministro, conforme corroborou o próprio Oliveira Pereira, alegando serem sinais públicos de uma polícia pró-activa.
Deste modo, os argumentos avançados pela oposição foram completamente desmentidos, mas coube ao General Garcia Leandro fazer a apologia da acção governativa: A segurança não deve ser debatida na praça pública, dado ser fundamentalmente da responsabilidade do Primeiro-Ministro. O General acusou todos os governos anteriores de não terem tido coragem para reformar as forças de segurança durante vários anos, o que fez Portugal ficar sem capacidade para fazer face à enorme violência e insegurança que se vivem no momento presente. Embora tenha dito ser inteiramente imparcial e neutral, Garcia Leandro rejeitou categoricamente as críticas dirigidas por António Costa ao actual ministro, mostrando simpatia e concordância com as medidas estruturais adoptadas e lembrando que a sua implementação vai demorar mais tempo do que aquele desejado pelo governo. Contra o repúdio das acções de prevenção manifestado por Helena Pinto, Garcia Leandro recordou que as operações levadas a cabo pela polícia são meramente preventivas e dissuasoras pelo facto de serem televisibilizadas pelos meios de comunicação. Mas não concordou com a sugestão feita por Rodrigo Santiago: a mudança de cultura da polícia e a doação de mais poder aos cidadãos, nomeadamente pela escolha de chefias exteriores às polícias, no que foi acompanhado pelos sindicalistas. Na peugada de Fernando Negrão, defendeu a necessidade de devolver mais autoridade às forças de segurança, que o Ministro interpretou como um reforço conjunto da autoridade dos cidadãos e das polícias.
Dado pertencer ao Bloco de Esquerda, seria de esperar que Helena Pinto falasse mais das condições sociais da criminalidade, mas quase nada disse a esse respeito, concentrando o seu ataque à suposta identificação feita por Mário Mendes entre imigração e criminalidade cometida por estrangeiros. Nada disse sobre a criminalidade de colarinho-branco, uma das responsáveis pela actual crise financeira, para atenuar a penalização das criminalidades resultantes do desemprego e da miséria produzida por um sistema de exploração do homem pelo homem. O colapso da distinção entre criminalidades ricas e criminalidades pobres é claramente favorável à concepção dominante de segurança: a criminalidade é vista como atentado contra a propriedade alheia e a segurança, como protecção da propriedade dos ricos. Os pobres são irremediavelmente os criminosos: uma noção absolutamente inumana. Neste aspecto, o discurso de Mário Mendes foi mais sociológico e humanista do que o discurso da deputada, porque, partindo do facto de uma sociedade livre e global ser uma sociedade de risco, soube mostrar que a consciência de risco está associada a determinados medos exibidos pelos portugueses, em função de determinadas conjunturas. Ora, este sentimento de medo e de receio é mais evidente em Portugal do que nos outros países europeus, quase todos eles, com excepção da Irlanda, com níveis menos elevados de medo, apesar do nível de criminalidade em Portugal ser mais baixo, ainda que a sua carga de violência possa ser preocupante. Em Portugal, as desigualdades sociais agravam-se cada vez mais, devido à má-governação das classes dirigentes, e a frustração resultante da exclusão social pode ajudar a compreender essa carga de violência. A sociologia da criminalidade é, de resto, incapaz de compreender a sua complexidade e a sua dinâmica psicobiológica e de ajudar na busca de formas eficazes de combate à criminalidade violenta: desprezar os factores étnicos no estudo da criminalidade é o mesmo que lançar areia para os olhos dos cidadãos, impedindo-os de detectar sinais de alarme e de combater ou evitar o crime. Nesta matéria, a política do segredo não é amiga da segurança e da liberdade dos cidadãos.
Embora os sindicalistas tenham afirmado a existência de uma sólida cultura policial, Fernando Negrão e Rodrigo Santiago têm razão quando defenderam a necessidade de melhorar a cultura e a formação dos polícias. A fragilidade da formação cultural, "científica" e comunicacional das polícias portuguesas fica demasiado patente nos casos mediáticos, mas também aqui esse facto revela o fracasso total da educação em Portugal e a dificuldade exibida pelos portugueses para interpretar inteligentemente uma situação sem falar demasiado, levando em conta apenas sinais sociais: a inteligência social dos portugueses é péssima e a sua inteligência emocional é descontrolada, talvez devido a um fenómeno de regressão cognitiva estrutural que alimenta a criminalidade grave e violenta. Numa sociedade corrupta como a nossa, na qual as classes dirigentes medíocres se perpetuam ao longo de gerações no poder, mediante um sistema fraudulento de cunhas, de hereditariedade familiar e de abusos de poder, bloqueando completamente a igualdade de oportunidades e a justiça social, a violência extrema pode ser usada pelos eternos deserdados para regenerar o próprio tecido social: a segurança deve ser entendida como um sistema de protecção do mérito contra a perpetuação dos abusos de poder e da mediocridade das pseudo-elites nacionais. O facto dos seus membros contratarem forças de segurança privada para os proteger nos seus condomínios fechados das ameaças revela a sua má-consciência e a sua responsabilidade pela miséria presente.
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 28 de março de 2009

James Burnham ou a Revolução Silenciosa dos Executivos

Em 1941, James Burnham publicou uma obra monumental que fez tremer o universo político e ideológico, The Managerial Revolution, onde rompe com a escatologia marxista ou mesmo liberal, transferindo a força científica e revolucionária dos teóricos do proletariado para os técnicos e dirigentes económicos. Burnham foi talvez um dos primeiros teóricos a constatar que os executivos de colarinho-branco concentram nas suas mãos o poder de decisão nas empresas capitalistas e assumem cada vez mais um papel de relevo na sociedade, gerindo e organizando o trabalho produtivo. O poder político, nomeadamente o poder dos parlamentos, é cada vez mais restringido pelo poder crescente e ubíquo dos organizadores. A URSS foi, segundo Burnham, "a primeira grande nação a enveredar pelo caminho organizativo e, a partir de 1939, é aquela que mais nele se adiantou. Apesar da sua concepção e da sua fraqueza material, foi daí que veio o seu dinamismo social e o seu ardor político. A Alemanha e o Japão, ainda no estado nuclear de desenvolvimento da revolução gerencial, estavam muito atrasados para poder prevalecer". Com base no modelo soviético de organização, Burnham previu o advento de uma sociedade dominada pelos técnicos, onde os empresários e os accionistas deixam de gerir as suas próprias empresas e bancos, legando o seu poder de decisão aos técnicos especializados na administração das coisas: "Os grandes capitalistas não se limitaram a abster-se de dirigir a produção propriamente dita; renunciaram a toda a espécie de actividade económica. Passam o seu tempo em iates, nas praias e a viajar de um para outro dos seus numerosos domínios". A tecnocratização da vida social alargou-se de tal modo que até mesmo os políticos se assemelham aos executivos das grandes empresas monopolistas, dirigindo os povos segundo métodos análogos aos utilizados pelos executivos para dirigir a produção: partilham a mesma mentalidade e utilizam do mesmo modo as possibilidades da técnica. Burnham apresentou os executivos de colarinho-branco como uma nova classe social, a nova classe média, distinta da burguesia e do proletariado, cujo objectivo é conquistar o poder político e usá-lo para satisfazer os seus próprios interesses privados.
Na perspectiva de Burnham, os executivos iriam, no futuro, substituir os grandes proprietários como classe dominante. O capitalismo como economia de empresa em que o empresário tinha um papel dinamizador, inovador e activo na produção de riqueza pertencia já ao passado, e o socialismo como uma sociedade sem classes sociais e sem poder era um mito. Depois de 1929-1932 e da Segunda Guerra Mundial, as actividades empresariais começaram a ser garantidas pelo Estado: a política e a economia interferem uma na outra, favorecendo o surgimento das classes dirigentes que vivem da remuneração elevada do seu trabalho executado na administração pública e na administração das grandes empresas económicas. Para Burnham, não é o proletariado, mas sim a nova classe média e o seu princípio organizador assente no conhecimento que protagonizam a nova revolução. Wright Mills criticou esta perspectiva da separação entre o executivo e o proprietário, frisando que o primeiro não expropriou o segundo e que o poder da empresa sobre os trabalhadores e o mercado não diminuiu: "Os poderes ligados à propriedade são despersonalizados, indirectos e ocultos, mas não foram minimizados ou reduzidos". Por isso, não podemos falar de uma revolução dos executivos de colarinho-branco, porque a legitimidade da instituição da propriedade privada não foi comprometida pela ascensão desta nova classe média: a burocracia de empresas comerciais e industriais e dos bancos continua sob as ordens dos proprietários. O accionista não pode exercer um controle directo da sua propriedade e, por isso, delega esse controle aos executivos, cujo poder não depende da sua propriedade pessoal. A relação funcional entre a propriedade e o controle não foi rompida. De facto, o capitalismo não foi substituído pelo managerial system, mas sofreu uma substancial transformação organizativa, a qual está na origem da actual crise financeira e económica.
O capitalismo é um sistema social sujeito a crises periódicas e, se não fosse de algum modo a intervenção do Estado, já tinha colapsado. O conhecimento é usado como uma espécie de privilégio das classes dirigentes que lhes permite gerir tudo em nome do interesse geral. Aparentemente, o seu lema diz que o poder é conhecimento e que a riqueza é conhecimento. Mas, quando observadas de perto, as novas classes dirigentes não têm ideologia e não sentem necessidade de a ter, porque o seu domínio é conseguido sem ideias e a sua manipulação não precisa de qualquer tipo de justificação: a imoralidade absoluta reside precisamente nesta indiferença dos homens poderosos associada à irresponsabilidade organizada. A política é fatalmente substituída pela administração. A ascensão maligna do perito implica necessariamente a abdicação do debate racional e o colapso da oposição: a argumentação racional é sistematicamente substituída pelas relações públicas. Os novos dirigentes políticos substituiram o pensamento pelo lugar-comum e os dogmas economicistas que legitimam as suas acções são de tal modo aceites que invalidam qualquer oposição: não existem alternativas fora da cartilha economicista predominante. A democracia é substituída pela cleptocracia: os líderes políticos já não são homens de pensamento e o público já não está informado. Seduzidos pelo fetiche do êxito, os actuais políticos são homens intelectualmente medíocres, cuja posições não resultam de virtudes morais e cujo êxito não depende de qualquer habilidade meritória. Embora façam constantemente apelos ao conhecimento e às qualificações, os políticos têm poder, mas carecem de conhecimento e de experiência: a sua sensibilidade é restringida às ideias resumidas e vulgarizadas, pré-digeridas e tendenciosas. Actualmente, os homens políticos são uma espécie de lugares-tenentes técnicos que governam através de telefonemas, e-mails, memorandos, enfim, resumos estatísticos manipulados. São criaturas de tal modo irracionais e vulgares que despertam a desconfiança do público.
O salazarismo poderia ter sido pensado como uma manifestação do managerial system preconizado por Burnham, mas, dado o seu carácter retrógrado e anti-capitalista, não se encaixa no modelo de uma sociedade programada. Portugal entra plenamente na era do capitalismo organizado depois do 25 de Abril de 1974, em especial após a entrada na União Europeia e as reformas implementadas pelos governos de maioria absoluta do PSD. A liberalização promovida pelo PSD contribuiu decisivamente para o fortalecimento da nova classe média portuguesa, mais precisamente para a ascensão das novas classes dirigentes e a generalização da imoralidade que favorece a corrupção: a imoralidade instalada e institucionalizada permitiu usar os cargos políticos para proveito pessoal, o que quer dizer que a corrupção política constitui apenas um aspecto da imoralidade absoluta. A corrupção é apenas parte de um esforço de enriquecer e de ficar mais rico. Isto significa que, apesar da ausência de uma ordem moral, o dinheiro foi o único valor soberano que não foi eclipsado: o dinheiro é o único critério de êxito. Ter dinheiro permite comprar coisas e pessoas. Geralmente, os homens corruptos são afáveis, bons ouvintes e muito sorridentes, fingem preocupar-se com os outros e procuram transmitir a imagem de que subiram na vida por mérito próprio, como se tivessem feito por conta própria e à custa de trabalho árduo. Porém, esta auto-imagem é absolutamente falsa: eles são carreiristas escolhidos entre pessoas que frequentam o mesmo círculo. Aliás, eles filiam-se nos partidos políticos ou ligam-se a determinados círculos sociais e pseudoculturais com o objectivo premeditado de obter êxito, porque, numa sociedade de sucesso movida pela imoralidade do triunfo, o que é realmente relevante não é "o que se sabe", mas "quem se conhece". O cinismo é a única atitude que se coaduna com este estado de consciência: os elos entre o mérito e a mobilidade social, entre a virtude e o êxito, foram quebrados, predominando o embrutecimento generalizado.
Quando utilizada pelos homens do poder, a noção de economia do conhecimento é um oxímoro: os homens embrutecidos não têm projectos de vida e são incapazes de protagonizar qualquer tipo de transcendência privada e pública. No entanto, eles pensam que possuem a receita tecnológica para resolver todos os problemas: a mentalidade de engenheiro manipula toda a realidade de modo a adaptá-la e a submetê-la aos imperativos de uma economia do lucro crescente colocada ao serviço dos interesses pessoais dos membros das classes dirigentes nacionais e das suas famílias. Esta mentalidade foi aplicada à educação e à comunicação social, com resultados absolutamente regressivos. Ambas funcionam como ideologia de adaptação a um estilo de vida consumista e medíocre que, em vez de estimular o pleno desenvolvimento das capacidades cognitivas e o espírito crítico, fomenta a apologia da ordem social estabelecida. A profissionalização e a burocratização da escola estimularam a mediocridade intelectual e a abertura de novos canais privados de televisão fez emergir as chamadas celebridades como figuras bombásticas que monopolizam o cenário da visibilidade pública. A frivolidade destes ídolos ocos seduz o público desinformado, dependente, apático e impotente: o seu poder é o da distracção e a distracção funciona neste universo de ignorância activa como uma forma de desviar a atenção, obscurecendo-a, dos homens do poder e das suas acções ilícitas. Ao contrário do que se pensa, massificação e liberalização não são processos contrários, mas sim momentos de uma mesma estratégia económica: a colonização económica da sociedade, da cultura e do mundo da vida. A esfera pública portuguesa tornou-se frívola e sombria, totalmente superficial, substancialmente oca e absolutamente estupidificante e avessa à cultura superior. A fórmula que lhe dá unidade não está destinada ao pleno desenvolvimento do ser humano: a esfera pública portuguesa é um pseudomundo, inventado e mantido por celebridades medíocres cujas expressões fazem lembrar os automatismos exibidos pelos animais, bobos e palhaços dos circos.
À luz dos acontecimentos despoletados pela crise financeira no sector bancário privado português, podemos definir a essência da liberalização cavaquista como uma espécie de processo de acumulação corrupta de capital, no decorrer do qual os negócios penetraram em todos os sectores da vida social, degradando a política, o partido no poder, neste caso, o próprio PSD, a educação e o ensino, a saúde, a cultura e a comunicação social. Usando uma figura retórica, podemos afirmar que, no Terreiro do Paço, os políticos concederam favores financeiros aos homens da economia dispostos a aceitá-los e os homens da economia encontraram nos políticos a disposição de oferecer favores políticos em troca de favores financeiros: a vai-vem entre a política, as grandes empresas e o sector financeiro solidificou-se ao abrigo da ideologia do crescimento económico e os cargos públicos começaram a ser descaradamente usados para proveito pessoal. Em Portugal, o poder está nas mãos de um triunvirato que liga entre si três áreas do conhecimento técnico: a Economia, a Engenharia e o Direito. Este triunvirato gere a "coisa pública" de modo a facilitar o seu próprio enriquecimento privado, não só mediante a remuneração elevada e os benefícios sociais auto-atribuídos, mas também e sobretudo através da aquisição burlesca de propriedade. Os economistas estabelecem o modelo geral da governação e de desenvolvimento, que os engenheiros aplicam tecnologicamente a todos os sectores da vida social e que os juristas normalizam mediante manipulações das leis e o seu uso pessoal. Os conhecimentos destes peritos tornados políticos acomodam-se inconscientemente ou premeditadamente aos imperativos da organização tecnológica do mundo moderno, de modo que a criminalidade de colarinho-branco, se for bem organizada, em bases comerciais e jurídicas, compensa: o sentimento de "quanto maior o ladrão, menor a probabilidade de ser preso", invade toda a sociedade. Neste clima de desconfiança pública e de descrédito da política, muito sensível ao agravamento das desigualdades sociais, das assimetrias de poder e dos conflitos sociais, o medo dos portugueses justifica-se. Tal como o resto da Europa, Portugal está realmente sem líderes políticos. O futuro dos portugueses está de tal modo comprometido que nem sequer o seu passado está a salvo da destruição do esquecimento e da alienação bolsista.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 24 de março de 2009

Prós e Contras: A Goleada da Crise

Neste Portugal histérico e doente, o futebol português tem um único emblema de qualidade, de competência e de verdade desportiva, o Futebol Clube do Porto, cujo curriculum na Taça dos Campeões é comparável ao do Manchester. Os outros dois chamados grandes clubes portugueses, o Benfica e o Sporting, não fazem jogo limpo: praticam sistematicamente anti-jogo e jogo manhoso e agressivo, sobretudo quando disputam com o FCPorto, e, no caso do Benfica, tentam pressionar e intimidar os árbitros e recorrem à secretária nacional e internacional, de modo a obter o que não conseguem conquistar no campo. Os arqui-rivais do FCPorto habituaram-se a viver da corrupção e da mentira fabricada e difundida pelos mass media lisboetas. Quando jogam nas Taças europeias perdem consecutivamente e, em vez de pararem para pensar nas suas pesadas derrotas internacionais que aporcalham o futebol português, regressam aos seus esquemas nacionais corrompidos: jogo sujo, anti-jogo, jogo manhoso, jogo agressivo, intimidação dos árbitros, difusão de falsa propaganda, movimentações criminosas de bastidores, tráfego de influência, fabricação sistemática de mentiras, má gestão desportiva, erros graves de gestão, troca de favores, conspirações legiformes, enfim muita histeria de vencidos e fracassados na vida. A diferença entre o FCPorto e os clubes lisboetas é a diferença entre a cultura do mérito e a cultura da manha e da corrupção: os jogadores do Porto rendem milhões, porque não são formados na manha, precisamente a manha que leva os jogadores dos clubes rivais a ser humilhados nos jogos europeus. Justificar a manha dos jogadores é contribuir activamente para a produção de homens fracassados.
O jogo final da Taça da Liga revela precisamente a face da chamada corrupção no futebol português: uma face absolutamente encarnada que vence uma taça, não por mérito desportivo, mas por ter beneficiado de um erro crasso de arbitragem. Filipe Soares Franco (Presidente do Sporting) acordou do seu longo sono encarnado e, reagindo à conferência de imprensa do Benfica, afirmou que este clube "não tem moral para falar do Sporting" e muito menos da "verdade desportiva": um "clube arauto da verdade desportiva, cujo presidente comentou a escolha do árbitro do jogo e pediu controle anti-doping", não tem autoridade moral. Soares Franco deixou finalmente de acreditar na luta levada a cabo pela direcção do Benfica em prole da "verdade desportiva", porque sentiu ontem na carne a natureza dessa luta: garantir por meios ilegítimos alguma falsa vitória. O Sporting foi mais uma vez enganado pelo Benfica e, se não estiver atento, deixa escapar o segundo lugar para os encarnados. Em face desse "desrespeito pelo Sporting" devido à "incompetência" de Vítor Pereira (entre outros nomeados), o Sporting tirou o aval à Liga, abandonando a direcção da Liga e acusando de modo dúbio o seu presidente, Hermínio Loureiro, de não ter sabido convocar assembleias gerais. Apesar de ter recebido hoje um telefonema de Hermínio Loureiro, como tinha dito no programa "O Dia Seguinte" (SICNotícias), Soares Franco exige a abertura de um inquérito público para apurar responsabilidades. António Oliveira (Presidente do Estrela da Amadora) recordou que o seu clube tinha sido afastado de Taças anteriores por causa de erros de arbitragem que favoreciam o Benfica. O problema estrutural do futebol chama-se Benfica, o clube que imaginou um passado de glória e que apregoa ser o maior clube nacional, quando na verdade o seu curriculum não abona a favor desses delírios de grandeza. Graças às vitórias europeias do FCPorto, teve a oportunidade de participar na Taça UEFA e, no entanto, acabou por ser derrotado e humilhado, sem conseguir manter por mérito próprio a sua presença. Este é o clube glorioso dos jogos sujos de bastidores e de secretaria: reivindica em nome de falsas glórias passadas aquilo que não consegue conquistar por mérito próprio. Enquanto este mito paranóico não for desmistificado e banido, o futebol nacional continua a transportar a marca do Salazarismo e da inverdade desportiva: o Benfica é uma mentira monstruosa. Apesar de ter sido vítima da conspiração encarnada, o Boavista vai realizar um jogo com o Benfica patrocinado pela PT (salvo erro): a sua situação de desespero financeiro pode justificar a busca de novas fontes de financiamento, mas a participação encarnada não é inocente, até porque, como Álvaro Braga Júnior (Presidente do Boavista) devia saber, o Benfica na sua luta escura pela inverdade desportiva ajudou a despromoção do seu clube, de modo a destruir a solidariedade das pessoas do Norte.
Prós e Contras (23 de Março de 2009) foi dedicado aos efeitos da crise financeira e económica sobre o futebol nacional, mas acabou por ser dominado pelo final da Taça da Liga, tal como sucedeu ontem e voltou a suceder hoje em quase todos os canais de televisão, apesar do FCPorto ter jogado ontem e ter visto um golo anulado por erro de arbitragem. Soares Franco tem toda a razão quando acusa o jornalismo desportivo de estar a desprestigiar o futebol português, ou, para sermos mais rigorosos, o FCPorto, fabricando uma teia de mentiras e de calúnias e montando durante anos consecutivos uma cabala movida contra o FCPorto, Pinto da Costa e o Norte. De facto, a incompetência da maior parte dos jornalistas e comentadores desportivos alinhados na cor encarnada está a criar um péssimo ambiente em torno do futebol, muitas vezes incentivando a violência entre os adeptos dos clubes. José Manuel Delgado (A Bola) reagiu, considerando "a posição do Sporting exagerada" e defendendo a penalização do tráfego de influências, aquilo que muitos jornalistas desportivos fazem diariamente, em nome da defesa da verdade desportiva (qual?) e da utilização das novas tecnologias no futebol (Rui Santos), como se fossem treinadores, árbitros e gestores desportivos. O resultado destes abusos jornalísticos é a corrupção instalada em Lisboa, isto é, a tentativa louca de reduzir o futebol nacional a dois clubes que se confrontam no Estádio do Jamor, a sala de visitas da capital. (O benfiquista da SIC afirmou que o FCPorto não pode jogar no Jamor, porque este pertence ao Benfica e ao Sporting, os únicos clubes que podem legitimamente disputar a Taça de Portugal, dado o FCPorto ser estrangeiro!) Fátima Campos Ferreira tematizou esta interferência nefasta e criminosa do jornalismo da inverdade desportiva nestes termos: os jornalistas desportivos estão para os clubes de futebol (isto é, para o FCPorto e outros do Norte) como os especuladores financeiros estão para a crise financeira. Ambos os grupos criaram bolhas: os primeiros, a bolha da corrupção desportiva encarnada, e os segundos, a bolha financeira.
No entanto, nem todos os jornalistas são fabricadores natos de mentiras: António Tadeia (O Jogo) acusou a Federação Portuguesa de Futebol e a Liga de não terem realizado um diagnóstico da crise do futebol nacional e daí provavelmente a declinação dos convites para participar neste debate. Na sua perspectiva, existem duas crises, uma que já vem de trás e outra que decorre da actual crise financeira e económica, destacando três aspectos: o mercado português é muito pequeno e, por isso, as receitas são escassas (1); não existe um mercado interno capaz de transaccionar jogadores entre os clubes (2); e o modelo de negócio deve ser melhorado a diversos níveis (3). Para Domingos Soares de Oliveira (SAD do Benfica), a actual crise impede o acesso ao crédito bancário, obrigando os clubes a vender os seus activos, embora os do seu clube não lhe pertençam totalmente. A frustração de não ter garantido a presença na Liga dos Campeões e na Taça UEFA, privou o seu clube destas verbas, o que agrava a sua precária situação financeira, embora permaneça optimista. O problema estruturante dos encarnados leva-os a recorrer à secretaria. Soares Franco defendeu que a situação do Sporting não é tão preocupante quanto dizem. Porém, a verdade é que o FCPorto é o único dos chamados grandes que está em melhor situação financeira. Alguns emblemas desportivos estão à beira da falência, porque viveram e vivem acima das suas possibilidades: Estrela da Amadora, União de Leiria e Setúbal, entre outros, deixaram de pagar aos seus jogadores. Joaquim Evangelista (Sindicado dos Jogadores) denunciou a concorrência desleal imposta pelos grandes, obrigando os jogadores dos clubes em situação precária a competir num plano desigual. A Liga mais não é do que uma espécie de patronato controlado pelos três grandes clubes nacionais. O futebol é extremamente fechado e os grandes não são dados ao associativismo, preferindo resolver os seus próprios interesses em detrimento do todo. Vasco Pinto Leite (União de Leiria) defendeu a abaixamento dos ordenados para fazer face à crise e António Oliveira criticou a protecção dos clubes grandes em detrimento dos clubes mais pequenos. Álvaro Braga Júnior reforçou a ideia de que os clubes não devem ter tratamento de excepção, mas sim tratamento excepcional devido à crise. Enfim, muita treta...
O futebol português vive diversas crises, cuja inteligibilidade reside na conspiração liderada e orquestrada pelo Benfica que procura usar a Liga para garantir falsas vitórias. Este é o problema estrutural do futebol português: habituado a vencer na secretaria, o Benfica e os seus mass media procuram implementar reformas desportivas que lhe garantam a acumulação de falsas taças que exibem no seu museu da incompetência e da inverdade desportiva. O Benfica é a vergonha nacional: não é um clube grande no mérito, mas na derrota e na frustração. A prova da sua inverdade desportiva reside nas suas derrotas europeias. Sem a ajudinha dos esquemas corruptos nacionais, os arqui-inimigos do FCPorto perdem sistematicamente e, se o futebol português dependesse deles, não teria qualquer prestígio internacional. Eles personificam a corrupção nacional sediada em Lisboa: a sua verdade desportiva é sinónimo de mentira desportiva. A sua luta não é a luta pela transparência, mas a luta pela manutenção do status quo que lhes permitiu, durante os tempos sombrios do fascismo, vencer sem mérito. E não adianta recorrer à figura de José Mourinho, porque este foi peremptório quando disse que a melhor equipa que treinou foi a do FCPorto: nenhum campeão nato deseja ser envolvido nas mentiras dos corruptos e dos fracassados. Os arqui-rivais do FCPorto produzem fracassos em série, treinadores, gestores e jogadores, acreditando nas suas próprias mentiras. Perderam o juízo e o seu lugar natural é num hospício de alienados mentais.
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 20 de março de 2009

Paradoxo Darwiniano: a Homossexualidade (3)

As teorias expostas para solucionar o paradoxo darwiniano assentam na ideia de que os parentes dos homossexuais se encontram de alguma forma numa situação de vantagem reprodutiva e, em consequência disso, transferem os seus genes e compensam o custo de aptidão do fenótipo homossexual. O interesse da biologia evolutiva pela homossexualidade deve-se ao facto de se ter verificado que os homens e as mulheres homossexuais têm menos filhos do que as suas contra-partes heterossexuais, pelo menos nas sociedades ocidentais modernas (Bell et al., 1981) e, sobretudo, ao facto de existir evidência empírica de que a homossexualidade é influenciada por genes polimórficos, isto é, por factores genéticos que influenciam a homossexualidade ou bissexualidade masculinas (GFMH). Os estudos de gémeos indicaram que factores genéticos e ambientais contribuem para a expressão do fenótipo homossexual (Pillard & Bailey, 1998; Bailey et al., 1999; Dawood et al., 2000). Além disso, os estudos de famílias mostraram que a homossexualidade masculina é frequentemente herdada por via materna (Pillard et al., 1981, 1982; Pattatucci, 1998; Camperio-Ciani et al., 2004). A herança materna sugere a existência de efeitos polimórficos maternais herdáveis, tais como o efeito da ordem de nascimento (Blanchard & Bogaert, 1996; Blanchard & Klassen, 1997; Blanchard, 2004) ou o imprinting genómico maternal, ou de genes polimórficos ligados ao cromossoma X que influenciam a homossexualidade masculina. Não se trata aqui de um mero traço mendeliano, mas de loci de caracteres quantitativos (QTL): a homossexualidade é um traço complexo, quantitativo, determinado por vários genes que actuam de modo interactivo e aditivo, como factores probabilísticos de risco, embora cada um dos genes se transmita segundo as leis de Mendel. Hamer et al. (1993), Turner (1995) e Hu et al. (1995) localizaram um locus de caracteres quantitativos para a homossexualidade masculina no cromossoma X, mais precisamente na região Xq28, situada na extremidade do braço longo do cromossoma X. Entre as mães e as irmãs dos homens homossexuais, as mulheres com a versão gay do Xq28 distinguiram-se das outras mulheres por terem iniciado a puberdade em média seis meses antes das outras mães, como se o gene gay aumentasse o período reprodutivo da mulher, dando-lhe tempo para ter mais filhos (Hamer & Copeland, 1994). Embora estes resultados não tenham sido replicados noutros estudos (Bailey et al, 1999; Rice et al., 1999), um estudo de genome-wide QTL screen (Mustanski et al., 2005) apoia esta ligação ao X, indicando três genes autossómicos que podem influenciar a orientação sexual masculina. Saifi & Chandra (1999) demonstraram que o cromossoma X tem uma grande abundância de genes relacionados com a reprodução e a diferenciação sexual, os quais afectam o desenvolvimento e a função dos receptores dos esteróides gonadais no cérebro.
Foram propostos três mecanismos ou modelos principais para explicar a vantagem reprodutiva dos parentes dos homossexuais, isto é, para explicar como a variedade nos genes que controlam a homossexualidade foi seleccionada e conservada na população: a superdominância ou, como Dobzhansky lhe prefere chamar, a heterose, a selecção sexualmente antagonista e o altruísmo familiar. Estes modelos baseiam-se na análise genética das populações, nomeadamente nas equações genéticas estabelecidas por J.B.S. Haldane. Gavrilets & Rice (2006) descreveram a evolução da frequência de dois alelos de um único locus (locus bialélico) numa vasta população, na qual cada um dos alelos (gay e heterossexual) pode produzir efeitos sexualmente específicos sobre a aptidão: a análise de custos e benefícios de aptidão permite explicar como o alelo gay entrou numa população de alelos heterossexuais e foi posteriormente conservada. No caso do modelo da superdominância, o alelo gay que entrou numa população pode ser conservado num equilíbrio polimórfico, sobretudo se for um gene autossómico, enquanto, no caso do modelo da selecção sexualmente antagonista, o alelo gay que entrou numa população está ligado ao cromossoma X, implicando a propagação da bissexualidade nas populações humanas (Savolainen & Lehmann, 2007). Usando a estatística bayesiana, Camperio-Ciani et al. (2008) elaboraram modelos genéticos de dois-locus (dialélico), um dos quais se localiza no cromossoma X: a expressão do gene é sexualmente antagonista, no sentido de incrementar a aptidão das fêmeas e diminuir a aptidão dos machos. Estes modelos baseiam-se no polimorfismo genético estável e nas assimetrias familiares, tais como as assimetrias de preferência sexual e as assimetrias na fecundidade. Estes últimos modelos matemáticos descartam as hipóteses da superdominância e dos efeitos maternais sobre as crias masculinas, destacando o papel desempenhado pelos caracteres sexualmente antagonistas na evolução humana (Curtsinger et al., 1994; Hedrick, 1999; Arnqvist & Rowe, 2005).
Modelo da Superdominância. No caso da superdominância, um alelo gay manifesta-se em comportamento homossexual num indivíduo que recebeu este alelo de ambos os pais (homozigose). Este alelo garante uma vantagem ao indivíduo que recebeu somente um alelo de um dos pais. Esta situação é similar ao caso da célula falciforme da anemia em África, uma doença geneticamente herdada controlada por um alelo deficiente. Os indivíduos homozigotos que possuem cópias deste alelo drepanocítico nos dois cromossomas homólogos, sofrem diversas perturbações, enquanto os indivíduos heterozigotos que possuem apenas uma cópia do gene são resistentes à malária e, por causa dessa resistência, este alelo foi conservado nas populações humanas expostas à malária, não só no continente africano mas também nalgumas regiões da bacia mediterrânica. Esta comparação entre a origem genética do comportamento sexual e a origem genética da anemia das células falciformes não significa que o comportamento homossexual ou bissexual seja uma doença: a anemia funciona aqui como exemplo de um princípio genético que pode ajudar a compreender a herança do comportamento homossexual. De acordo com este princípio aplicado à homossexualidade, os indivíduos dotados do alelo gay têm elevado sucesso em atrair e seduzir as mulheres e/ou o seu esperma pode ser dotado de vantagem competitiva.
Este modelo foi estudado na genética evolutiva por MacIntyre & Estep (1993): os homens ambissexuais (4 e 5 na escala de Kinsey) que transportam os genes homossexuais na condição heterozigótica têm maior sucesso reprodutivo do que os homens heterossexuais, não só porque são bem-sucedidos na conquista de parceiros sexuais de ambos os sexos (Bell et al., 1981), competindo directamente com as mulheres na procura de contactos sexuais com machos jovens atractivos, mas também porque possuem atributos físicos e psicológicos, tais como pénis de grandes dimensões, grande atractividade, sensibilidade e virilidade, elevado grau de promiscuidade sexual e habilidade acrescida para agradar as suas parceiras sexuais femininas, que encantam as mulheres. Deste modo, por intermédio do sucesso reprodutivo dos homens bissexuais, o alelo gay invadiu a população, onde tem sido conservado num equilíbrio polimórfico. Este equilíbrio pode ser mais facilmente alcançado se o alelo gay for autossómico (Gavrilets & Rice, 2006).
A homofobia pode resultar evolutivamente do maior sucesso reprodutivo exibido pelos homens bissexuais: as suas vantagens reprodutivas são encaradas como uma ameaça pelos homens heterossexuais que os rodeiam. Embora possam ter o mesmo número de filhos que os homens heterossexuais, os homens bissexuais têm esses filhos em idade menos avançada. O facto de serem infiéis constitui outra vantagem exibida pelos bissexuais em relação aos heterossexuais exclusivos. A hostilidade antigay pode ter sido desencadeada evolutivamente pelo facto do homófobo heterossexual invejar o sucesso reprodutivo e a eficácia sócio-sexual dos homens bissexuais. Os homens heterossexuais com fracos recursos espermáticos perseguem e hostilizam a família dos homens homossexuais exclusivos, porque os seus membros masculinos são dotados de recursos espermáticos competitivos, e os membros femininos, de elevada beleza e fertilidade. O facto do homem bissexual ter tido na adolescência muitos parceiros do mesmo sexo permite-lhe lidar mais tarde com diversos tipos de mulheres ou mesmo enganar os homens heterossexuais exclusivos quando conseguem seduzir as suas mulheres. O risco de ser descoberto é maior quando é infiel à sua mulher com outras mulheres, porque as infidelidades do mesmo sexo são menos detectáveis. Em Portugal, as mulheres só se apercebem disso quando o marido é predominantemente passivo: o sangue que descobriram numa peça de roupa íntima do marido pode indicar as suas infidelidades do mesmo sexo. A confirmação tende a ser em muitos casos obtida através da contratação dos serviços de detectives privados.
Modelo do Antagonismo Sexual. No caso da selecção sexualmente antagonista, um alelo gay implica um custo quando expresso nos machos (feminização e perda de aptidão directa), mas este custo é compensado por uma vantagem de aptidão quando é expresso nas fêmeas. De acordo com este modelo, os genes responsáveis pela homossexualidade são vantajosos para os indivíduos heterossexuais que os possuem. Este modelo foi estudado na genética evolutiva por Getz (1993): No passado ancestral, as mulheres escolheram os homens que possuiam traços femininos e, portanto, mais alelos de feminização, donde resultou a ocorrência de homossexualidade exclusiva masculina. Getz (1993) modelizou os efeitos da invasão, do polimorfismo e da fixação dos genes que influenciam diferencialmente as expressões reprodutivas entre os sexos, de modo a explicar a existência da homossexualidade nas populações humanas pelo efeito destes alelos sobre o sucesso reprodutivo e a viabilidade das crias dos parentes dos indivíduos homossexuais. A importância deste mecanismo foi confirmada por estudos que mostraram que os parentes femininos maternais dos homossexuais (Camperio-Ciani et al., 2004) ou os parentes de ambas as linhagens maternal e paternal dos homens homossexuais (King et al., 2005) têm uma fecundidade elevada. De facto, os homens homossexuais, comparados aos homens heterossexuais, tendem a ser provenientes de famílias numerosas e extensas. Este facto foi interpretado como indicador de elevada fecundidade dos parentes dos homens homossexuais. A noção de que a expressão do gene é sexualmente antagonista, aumentando a aptidão das mulheres em detrimento da aptidão dos homens, foi recentemente confirmada por outro estudo (Camperio-Ciani et al., 2008). A ubiquidade deste tipo de selecção está bem documentada nos estudos empíricos de insectos (Pischedda & Chippindale, 2006; Arnqvist et al., 2000; Arnqvist & Rowe, 2002), aves (Pischedda & Chippindale, 2006; Reeve & Pfenning, 2003) e mamíferos (Foerster et al., 2007), podendo levar a população à divergência e possivelmente à especiação (Rice, 2000, 1996; Rice & Holland, 1997; Parker & Partridge, 1998; Martin & Hosken, 2003).
O estudo de gémeos realizado por Zietsch et al. (2008) mostrou que a identidade de género sexualmente atípica de homens e de mulheres está associada com a não-heterossexualidade e, no caso dos heterossexuais, com um elevado número de parceiros do sexo oposto. Estes caracteres são geneticamente influenciados e a relação da identidade de género com a não-heterossexualidade e o número de parceiros do sexo oposto é, em parte, devida a genes comuns. Os indivíduos heterossexuais com um gémeo não-heterossexual tendem a ter mais parceiros do sexo oposto do que os pares de gémeos em que ambos são heterossexuais. Este estudo ajuda a explicar o mecanismo de pleiotropia antagonista mediante o qual a variação genética subjacente à homossexualidade foi conservada ao longo da evolução humana. Além de aumentarem o risco de homossexualidade exclusiva, diminuindo drasticamente a aptidão darwinista, estes genes parecem incrementar a identidade de género sexualmente atípica, a qual pode aumentar significativamente o sucesso reprodutivo dos parentes dos indivíduos homossexuais. Isto significa que os genes que influenciam a homossexualidade ou a bissexualidade foram mantidos e conservados na população, porque aumentam o número de parceiros sexuais nos familiares dos homossexuais.
Modelo do Altruísmo Familiar. No caso do altruísmo familiar, os homossexuais podem ajudar os membros da sua própria família, aumentando a aptidão dos seus parentes e, deste modo, a probabilidade de um alelo gay ser transmitido à geração seguinte. Ao fornecerem recursos e prestarem cuidados às crianças dos seus familiares próximos, os homossexuais contribuem indirectamente para o aumento da aptidão reprodutiva dos membros da sua família e da sua aptidão inclusiva, mesmo que não tenham as suas próprias crianças. Embora seja teoricamente possível e fascinante, este modelo não foi confirmado pelos estudos empíricos (Muscarella, 2000; Bobrow & Bailey, 2001): os homens homossexuais preferem viver nos grandes centros urbanos longe das suas famílias de origem e, por isso, não auxiliam os seus irmãos a cuidar dos filhos. (FIM da série dedicada ao paradoxo darwiniano.)
(Veja este post do Vitor Pimenta que aborda as ilações morais e políticas fundadas nos estudos genéticos revistos brevemente neste post.)
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 18 de março de 2009

Egas Moniz: 60 Anos do Nobel

«Nos bailes públicos é que o uranista mais se denuncia. Ama a dança extraordinariamente e, se a ocasião é propícia para o disfarce, como pela época do carnaval, aparece vestido de mulher. Espartilha-se, cria formas provocadoras à custa de balões de borracha, pinta-se e adorna-se com brincos e sapatos decotadíssimos.
«Tem requebros de prostituta, denguices de mulher venal, com rodopios de saias e exposição de pernas.
«Segreda convites, mostra-se lânguido, submisso, capaz de ter um grande amor. Uns andam mascarados e desejam ir ao engano, como mulheres, por braço de algum ébrio dissoluto. Outros, de cara descoberta, pretendem insinuar-se directamente, na nudez da sua situação deprimente». (Egas Moniz)
Egas Moniz (1874-1955) recebeu o Prémio Nobel da Fisiologia e Medicina em 1949, juntamente com Walter Rudolf Hess (1881-1973), por ter desenvolvido a angiografia cerebral (técnica radiológica de visualização dos vasos sanguíneos através da injecção de um produto de contraste, neste caso, de visualização radiográfica das artérias e das veias encefálicas) e a sua técnica de lobotomia frontal ou de leucotomia pré-frontal como uma terapêutica para determinadas perturbações emocionais. Os neurocientistas contemporâneos não perdoam a Egas Moniz o facto de ter concebido a destruição de uma grande porção do encéfalo como forma de tratamento e, por isso, contam nos seus manuais de neurociências que o médico português acabou estranhamente paralisado por um tiro disparado na espinha por um dos seus pacientes lobotomizados. Justiça poética foi feita contra aquele que, sem suporte teórico substancial, acreditava que podia corrigir o excesso de emoção através deste procedimento cirúrgico radical, com efeitos posteriores indesejáveis.
1. Lobotomia Frontal. No entanto, Egas Moniz aplicou e melhorou os procedimentos usados pela comunidade científica do seu tempo: Klüver & Bucy tinham mostrado que lesões no encéfalo alteravam o comportamento emocional e, na década de 30 do século XX, John Fulton e Carlyle Jacobsen relataram que lesões do lobo frontal produziam efeitos calmantes em chimpanzés. Nos macacos rhesus, a remoção bilateral dos lobos temporais (lobotomia temporal), incluindo as estruturas subcorticais (amígdala e hipocampo), tem efeitos dramáticos sobre os comportamentos dos animais, nomeadamente sobre as suas respostas a situações capazes de desencadear medo. Heinrich Klüver & Paul Bucy classificaram estas anomalias comportamentais em cinco categorias: cegueira psíquica (dificuldade em reconhecer objectos comuns ou compreender o seu significado), tendências orais (colocar os objectos na boca e tentar comê-los), hipermetamorfose (compulsão irresistível para examinar todas as coisas, tocando-as e colocando-as na boca), alterações de comportamento sexual (aumento acentuado de interesse em sexo) e mudanças emocionais (diminuição do medo). O conjunto destes sintomas é conhecido como síndrome de Klüver-Bucy. Confiante no princípio de que, se o sistema límbico controla a emoção, conforme foi proposto por James Papez (década de 1930) e divulgado mais tarde por Paul MacLean (década de 1950), então as pessoas com problemas emocionais podem ser ajudadas, Egas Moniz desenvolveu o procedimento cirúrgico da psicocirurgia, aplicando-o em 1935 e 1936 aos seres humanos: «Certos doentes psiquiátricos, particularmente os que têm sintomas obsessivos, têm a sua vida mental circunscrita a um circulo limitado de pensamentos e assim, pela interrupção cirúrgica desses circuitos, os sintomas podem ser aliviados» (Egas Moniz, 1948). Milhares de cirurgias foram realizadas em todo o mundo nos anos 40 e 50 do século XX, utilizando diversos procedimentos cirúrgicos de lobotomia frontal. Custódio Rodrigues (1992) avaliou positivamente o contributo de Egas Moniz para a ciência psicológica, destacando a demonstração de que a função cerebral não é executada em globo: diferentes áreas cerebrais executam funções diferentes, de modo que o cérebro pode ser definido como uma federação orgânica (Charcot).
A crítica da lobotomia frontal como terapêutica ensombrou outra obra revolucionária de Egas Moniz: "A Vida Sexual: Fisiologia e Patologia" (4ª. Edição de 1918), cujo Prólogo confronta o neurologista português com a psicanálise de Freud. Esta obra é, a diversos títulos, brilhante, erudita e bastante avançada para o seu tempo, pelo menos em relação à mediocridade nacional: Egas Moniz revela um espírito científico ímpar alicerçado na assimilação atenta e crítica das grandes lições dos pioneiros da sexologia, tais como Krafft-Ebing, Moll e Freud. A teoria da sexualidade de Egas Moniz exposta nesta obra brilhante merece ser revisitada, sobretudo a secção da Patologia da Vida Sexual, onde Egas Moniz analisa as homossexualidades masculina e feminina.
2. Homossexualidade Masculina. A partir de um caso exemplar, A.A., Egas Moniz elabora uma teoria da homossexualidade masculina como inversão perversa ("psicopatia sexual"), relatando de modo frio e analítico traços comportamentais e anatómicos exibidos pelos homens homossexuais. Embora tenha vislumbrado a problemática das diferenças sexuais e das diferenças de género, Egas Moniz foi excessivamente "redutor" ao generalizar a partir de casos clínicos. Os seus "uranistas" correspondem, em termos comportamentais, ao tipo hiperefeminado de homens homossexuais, nomeadamente ao subtipo "maricas" ou "agitado" da minha tipologia das homossexualidades masculinas (De Sousa, 2006). Egas Moniz reconheceu que «as relações sexuaes uranistas são o mais próximo possível das relações heterossexuais entre pervertidos», porque, entre outros traços partilhados, «os beijos uranistas são por vezes acompanhados, como nos heterossexuais, do contactus linguarum». Além disso, os uranistas fazem outras "coisas terríveis", tais como «semen alterius ejaculatum in os proprium devorare» ou, mais raramente, «ejaculavit semen in os alterius, vul ut hic semen devoret», «oscula applicare ad anum alterius», e, enfim, «alter immitit urinam in os proprium», já para não falar da necrofilia, da prostituição masculina, da pederastia ou dos efeitos anatómicos resultantes da prática do coito anal. Os homens homossexuais examinados por Egas Moniz eram "cidadãos urbanos" de "todas as profissões" (alfaiates, cabeleireiros, floristas, actores, cozinheiros e escritores) e membros "cultos" das "classes elevadas" de Lisboa e de outros "grandes centros" urbanos nacionais. Os homens homossexuais são vistos como "invertidos e efeminados", "impotentes para as mulheres", "mentirosos e insensatos", com "voz efeminada" e "letra esguia e muito bem cuidada", "ciumentos e insaciáveis", "epilados" e "dissolutos", entre tantas outras "maiores minudências" relatadas com pormenor e abundante recurso ao latim, para não chocar a moral e os bons costumes lisboetas, cujas "misérias do amor" "mórbido uranista" incluíam a «immissio membri in os», «a masturbação mútua, a masturbação anal, o coito anal, inter femora e ainda in axillam». Egas Moniz possuía todos os traços comportamentais e anatómicos para avançar com uma tipologia diferencial das homossexualidades masculinas, nomeadamente a dicotomia masculino/feminino, as actividades e preferências sexuais, a promiscuidade sexual, as ocupações profissionais atípicas, as infâncias sexualmente atípicas, as parafilias associadas e a atipicidade sexual, mas, em vez disso, reduz toda a homossexualidade masculina ao tipo efeminado, ao qual atribuiu alguns traços específicos dos transexuais, tais como usar roupas de mulher ou ser mentiroso.
Uma observação pertinente de Egas Moniz permite-nos constatar que alguns dos seus pacientes eram "travestis" ou, como se diz hoje nos meios gay, "transexuais" e "transformistas", que usavam "vestuários femininos" e traziam «os órgãos genitais ligados ao corpo por um aparelho especial de tal modo, que se lhe não reconheciam à primeira vista»: «O uranista é monoândrico ou poliândrico, exactamente como o homem normal é monógamo ou polígamo. Geralmente tem um escolhido uranista, mas alguns há que chegam a preferir as relações com indivíduos normais que gostam de mulheres. A estes deu Ulrichs a designação de dionistas. Geralmente escolhem indivíduos em que as qualidades viris se salientam». A atracção por homens heterossexuais é um traço típico dos homens travestis ou transexuais que se prostituem nas ruas das grandes cidades portuguesas: Lisboa e Porto. Nestes pacientes dionistas, uma alma feminina existe dentro de uma forma masculina, e, tal como os homossexuais efeminados, desvalorizam a sua própria masculinidade, manifestando disforia de género, e sobrevalorizam todos os traços masculinos e hipermasculinos, em especial as grandes dimensões do pénis, exibidos pelos homens heterossexuais. Se tivesse sido menos preconceituoso, Egas Moniz teria observado a existência de diferenças intra-homossexuais, isto é, de traços comportamentais distintivos que permitem diferenciar entre si os homens que preferem fazer sexo com outros homens, até porque reconhece que «o amor homossexual é inteiramente comparável ao heterossexual», tanto em termos afectivos como em termos comportamentais: «Em todos os invertidos sexuais que se juntam em ménage masculino os papéis distribuem-se da mesma forma que no casamento real. Um desempenha o papel obediente e subordinado da mulher, outro dirige, manda e governa com a característica virilidade dum heterossexual». A ideologia machista latina tende a atribuir a designação de maricas ou paneleiro ao parceiro passivo, vendo no parceiro activo uma espécie de "super-macho". O primeiro é homossexual, enquanto o segundo é heterossexual. Nesta perspectiva latina, os homens homossexuais dependem, em termos de satisfação sexual, dos favores sexuais prestados pelos homens heterossexuais. A comunidade homossexual não é, em termos sexuais, autónoma e independente. Resta saber se o preconceito sexual de Egas Moniz não o moveu a realizar uma lobotomia frontal a algum destes pacientes homossexuais para o tornar mais calmo e menos histriónico, porque os uranistas tendem, segundo diz, a manifestar um tal "furor uterino" ("neurastenia") que esgotava em poucos dias a energia sexual dos seus "amantes". Ora, tanto os amantes passivos como os amantes activos são homens homossexuais que se completam sexualmente, e, se os primeiros exibem o tal "furor uterino", os segundos podem exibir um "furor peniano devasso": a promiscuidade sexual predomina entre os homens homossexuais, mesmo entre aqueles que são casados com mulheres numa operação comercial.
Para Egas Moniz, as homossexualidades masculina e feminina eram psicopatologias do comportamento sexual, com graves efeitos na saúde e no bem-estar dos pacientes: «Os hermafroditas psico-sexuais são igualmente doentes, embora não tão adiantados como os uranistas e as lésbicas. De tempos em tempos igualam-se completamente pelas tendências e pelos desejos.» Após ter feito a «resenha de anatomia patológica da pederastia», onde incluiu «o aumento das nádegas», «a deformação infundibuliforme do ânus», «o relaxamento do esfíncter», «a incontinência fecal», «ulcerações profundas e até fístulas anais» e «doenças venéreas», Egas Moniz dirige a sua atenção para as lésbicas, para ver «se estas invertidas apresentam sinais dos seus hábitos homossexuais». Da prática repetida do «safismo», isto é, da «masturbação bucal com sucção dos clítoris», resulta «a deformação vulvar» caracterizada pelo «alongamento do clítoris, pelo aspecto rugoso e pela flacidez do prepúcio que, em parte, aparece destacado da glande», a qual, «parcialmente descoberta, é volumosa e turgescente». Além deste alongamento do clítoris, «a prática repetida da masturbação sáfica» pode desencadear «mordeduras do clítoris» e o uso da boca provoca «a inflamação aguda ou crónica da abóbada palatina, amígdalas e da úvula, o mau cheiro da bôca, a dor de língua, a palidez dos lábios e da face, o emmagrecimento geral e as perturbações nutritivas». Esta busca frenética de sinais físicos e corporais que denunciem as práticas homossexuais constitui efectivamente a medicalização do preconceito e da discriminação sexuais: o "olhar clínico" (Michel Foucault) é colocado ao serviço do heterosexismo, de modo a exercer o seu poder disciplinar. O tratamento aconselhado para as "inversões sexuais" mais não é do que uma espécie de "punição", a medicalização da punição.
3. Homossexualidade Feminina. Como seria de esperar, Egas Moniz era mais homofóbico do que lesbofóbico. Usou os termos "tribades" ou “sáficas” para designar as mulheres lésbicas, cujos traços descritos acentuam as suas características masculinas: «As tribades têm propensões para os jogos e divertimentos dos rapazes, estimam vestir-se com fatos de homem, desprezam os brinquedos usuais das meninas, tais como bonecas, etc.». Estas propensões comportamentais manifestam-se muito cedo, logo na infância, e, na idade adulta, estas lésbicas adquirem "hábitos masculinos", atingindo então o "estado de viraginidade" (concentração máxima de traços masculinos): "Fumam", evidenciam "vocações para os trabalhos masculinos", sentem "repugnância pelos trabalhos de costura", e anseiam por "uma troca de órgãos sexuais": «A tribade passa uma vida íntima de torturas por não ter nascido homem: ela e o uranista completar-se-iam operando uma troca de órgãos sexuais. Dentro de uma forma feminina existe uma alma de homem. Sente-se vigorosa para a luta. Atraem-na mais as sciências do que as artes: estima mais o seu cavalo e a espingarda, com que se entrega aos mais violentos géneros de sport, do que o piano e a máquina de costura. E querendo encontrar dentro do seu sexo paradigmas para imitar, ou admira as másculas mulheres da história ou as que, na sua época, se salientaram pela inteligência ou actividade». Tal como já tinha feito com os homens homossexuais, reduzidos ao tipo "efeminado", Egas Moniz descreve de modo redutor apenas um tipo de lésbica, a lésbica "butch", com inclinações "transexuais", embora pareça ter consciência da diferenciação interna existente entre as lésbicas. Este reducionismo revela-se estigmatizante e, o que é mais grave, facilita a estigmatização sexual dos indivíduos homossexuais de ambos os sexos.
Segundo Egas Moniz, o uso do clítoris nas práticas sáficas torna-o mais longo ("alonga"), o que possibilita a prática "sáfica" de fricção dos clítoris (ou, como se diz hoje, de "bate pratos"). A lésbica tende a ser reduzida, sobretudo aquela que é casada com um homem, a "mulier lambens", que sente prazer desempenhando um destes papéis sexuais: "si ipsa lambit genitalia alterius", "lambere genitalia propria", ou felação mútua e simultânea. Egas Moniz encarava a lésbica que suga o clítoris alheio como "activa" e a que o dá para ser sugado ou "mordido" pela outra como "passiva", e com razão, porque, no caso dos uranistas, o que suga é geralmente "passivo": «Na verdade, se há casos, como um citado por Moll, em que uma tribade X só sente prazer si ipsa lambit genitalia alterius, na maior parte dos casos as tribades também se sentem excitadas quando fazem lambere genitalia própria, dando-se por vezes à prática mútua e simultânea.» Aliás, Egas Moniz refere o caso de duas tribades em que uma delas curiosamente «gostava de representar o papel passivo de mulher», embora tivesse «mais tendências masculinas do que a que desempenhava o papel de activo». Egas Moniz apercebe-se da diferenciação interna das lésbicas em dois grupos, em função dos papéis sexuais preferidos: as que apresentam tendências masculinas, as lésbicas do tipo butch, tendem a preferir desempenhar o papel activo, enquanto as “mais femininas”, as lésbicas do tipo femme, são geralmente mais passivas. A tematização desta diferença ter-lhe-ia possibilitado compreender melhor as associações que procurou estabelecer entre o safismo e a duração das "junções sexuais sáficas", o ciúme, a separação, o "sadismo" (associado ao tipo butch), o "masochismo" (associado ao tipo femme), a pedofilia e a "prostituição sáfica".
Na exposição de Egas Moniz, transparece um conceito implícito que podemos explicitar: a "prática repetida de cunnilingus" ocorre entre casais heterossexuais e casais homossexuais: «Entre as tribades há algumas casadas, como aliás sucede, embora mais raramente, entre os uranistas. Algumas dessas são hermafroditas psíquicas, outras são lésbicas que apenas consideram o casamento como uma necessidade social, nunca a manifestação duma necessidade genésica. Para a tribade o casamento é uma verdadeira operação comercial e uma comodidade para a melhor consecução dos seus fins. A mulher depois de casada pode passear mais, ter mais extensas relações e, em suma, livrar-se das críticas dos soalheiros femininos». Para estas tribades, «quer sejam hermafroditas psíquicas, quer absolutamente homossexuais, a cópula não basta para a satisfação das suas necessidades genésicas. É devido a isso que essas mulheres pedem aos homens a que se juntam a prática do cunnilingus». Para alcançar o prazer sexual pleno, o orgasmo clitoriano, a mulher deseja que o marido lhe faça cunnilingus. Ora, como vimos, esta prática sexual "alonga" o clítoris e, portanto, masculiniza a sexualidade e o prazer femininos. Egas Moniz diz que as lésbicas têm "repugnância pela maternidade". Hoje sabemos que esta repugnância maternal se evidencia mais nas lésbicas do tipo butch do que nas lésbicas do tipo femme. Esta hipótese de que uma prática sexual produz como efeito a diminuição do impulso maternal pode ser testada empiricamente. Portugal e a Europa confrontam-se com o problema de baixa natalidade, explicando-a muitas vezes por razões económicas e sociais (desemprego, salários baixos) ou pela entrada das mulheres no mercado de trabalho. Porém, como suspeitava Egas Moniz, uma mera prática sexual também pode estar na origem deste fenómeno. (Veja notícia aqui. E veja este post dedicado ao chamado "gayzismo", onde o escriba critica a minha perspectiva sobre o preconceito sexual e a homofobia.)
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 17 de março de 2009

Prós e Contras: O que é que Angola tem?

Prós e Contras (16 de Março de 2009) não foi um debate de ideias, mas um silêncio em torno do discurso inteligente, firme e autoritário de Aguinaldo Jaime (angolano), reforçado oportunisticamente por outros angolanos e pelos empresários "portugueses em Portugal e angolanos em Angola" (António Mota). O debate resulta da visita recente realizada por José Eduardo dos Santos (Presidente de Angola) a Portugal, mas esta visita é "suspeita": a ideia de cooperação bilateral defendida pelos dois presidentes não resiste à análise crítica. O discurso desenvolvido por Aguinaldo Jaime revela o interesse de Angola, um interesse estratégico "planeado antes da crise financeira". Uma frase ajuda a compreender o carácter desse interesse estratégico angolano que seduziu a gula dos políticos e empresários portugueses: Aguinaldo Jaime mostrou-se satisfeito por participar no programa português que, graças às novas tecnologias da comunicação, é visto em Angola. Os governantes e as elites angolanos estão bem informados sobre a situação portuguesa e, por isso, sabem como lidar com os portugueses, de modo a implementar a sua estratégia. O que é que Angola tem? Angola tem petróleo e é este mesmo petróleo que lhe dá algum poder de negociação e lhe possibilita um forte crescimento económico. Movidos pela gula e pelo facilitismo de momento, os portugueses mostraram a sua incapacidade para defender o interesse nacional e elaborar uma estratégia de futuro: eles vêem em Angola uma saída para os portugueses desempregados e para o enriquecimento fácil. A mente tuga fecha as suas janelas e delira com sonhos vãos destruídos pelo discurso angolano.
A estratégia do governo angolano é obscuramente dupla: o lado visível da estratégia foi revelado pelas palavras pronunciadas por Aguinaldo Jaime, mas o seu lado invisível manifesta-se no chamado "temor da recolonização". A miséria angolana foi atribuída à guerra civil: uma forma elegante de justificar o facto histórico dos africanos não terem descoberto a escrita, dando assim um contributo original para a civilização humana. A reconstrução de Angola requer o "papel activo do Estado" e o estabelecimento de diversos tipos de parcerias controladas pelas elites estatais. "O Estado sozinho não pode fazer tudo": a construção de uma sociedade justa e próspera, isto é, de uma sociedade moderna, depende dos investimentos estrangeiros realizados em parcerias com empresários angolanos, mediante as quais o governo angolano pretende "atacar outros mercados" (uma imagem belicista!), nomeadamente o mercado português. Aguinaldo Jaime manifestou claramente o interesse do governo angolano em investir as suas mais-valias derivadas do sector mineral na banca e no sector financeiro, mais precisamente aprofundar os investimentos angolanos no sector financeiro e no mercado portugueses. Com a morte horrenda e bárbara do líder da UNITA, o governo angolano conseguiu criar "estabilidade política" (eliminação física dos adversários políticos?), de resto necessária à estabilização da economia encarada como propriedade privada da família imperial e seus vassalos à imagem do trono de Nzinga (Roy Glasgow). Apesar de reconhecer o decréscimo das receitas fiscais (quais?), a queda do preço do petróleo ou mesmo dos diamantes e a descida do PIB, movimentos provocados pela crise mundial, Aguinaldo Jaime acredita na estabilidade da economia angolana, uma confiança reforçada pela economista angolana residente em Portugal, Fátima Roque (angolana clara), para a qual os indicadores macro-económicos são sólidos, mesmo na situação do crescimento económico baixar de 5.9 para 3%. A única lição derivada da crise financeira e económica mundial é a de que é necessário "diversificar a economia", mundializando-a, de modo a evitar a "asfixia dos sectores não-minerais". Os angolanos querem promover uma "economia não-mineral". António Costa e Silva (angolano claro) acentuou a necessidade de diversificar a economia, tornando-a menos "dependente do petróleo": a diversificação económica é o único modo de evitar a "doença holandesa". Este rótulo foi desmentido por Aguinaldo Jaime, com a alegação da estratégia angolana ter sido preparada "antes da crise financeira", a qual foi aprovada por Luís Mira Amaral (português?): a noção de doença holandesa só se aplica aos países industrializados e não a Angola que, aquando da Independência, se apropriou violentamente dos bens portugueses, como se a mera apropriação violenta das riquezas alheias fosse suficiente para garantir a sua auto-reprodução e gestão espontâneas, quase milagrosas. Um resquício do pensamento mágico africano!
Este desentendimento conceptual não foi completamente compreensível, até porque António Costa e Silva tinha acusado irracionalmente a "vulgata marxista" pelo "ataque às empresas", defendendo o conceito hilariante de um "Atlântico mais lusófono" como "eixo estratégico de desenvolvimento": o Atlântico da energia envolvendo Angola, Portugal e Brasil, numa "aliança anti-russa", como se a Rússia fosse um país africano e Angola, um país europeu e ocidental. De facto, a passagem de uma "economia dirigida a uma economia de mercado" (Aguinaldo Jaime), sob a presidência de um mesmo homem, é um modo febril e alienado de caracterizar a situação angolana e de justificar a pretensão do seu governo. Os angolanos acabaram por tropeçar nas suas próprias palavras, esquecendo que a crise financeira e económica põe em causa a ideia imperialista e delirante subjacente à estratégia angolana. Contrariando Fátima Campos Ferreira, as suas questões e as respostas, sobretudo no que se refere às "teias de corrupção em Angola", Fátima Roque defendeu uma "economia da corrupção". Se investirem na corrupção em Angola, os empresários portugueses estão a contribuir para o desenvolvimento angolano: investir na corrupção é "um factor positivo". "Invista na corrupção angolana": eis a orientação dada pela teórica da economia da corrupção. Na sua declaração, Obama afirmou peremptoriamente que faria tudo ao seu alcance para impedir o pagamento dos "prémios" auto-atribuídos pelos gestores financeiros a si próprios, sobretudo quando a liquidez das suas instituições está a ser garantida pelos contribuintes americanos. Obama sabe que a corrupção dos colarinhos-brancos da economia e das finanças está na origem desta crise financeira e económica, mas Fátima Roque é serodiamente uma defensora da economia da corrupção. A sua economia emergente assenta no investimento na corrupção: Jorge Armindo reconheceu ter financiado algumas "gasosas".
Nenhum português teve coragem para desmistificar a argumentação angolana: António Mota (empresário imobiliário) sente-se "português em Portugal e angolano em Angola", Jorge Belmar KK trata dos dentes angolanos numa empresa que diz ser angolana, Gonçalo Rodrigues farta-se de trabalhar na sua empresa angolana, e outro de que já não lembro o nome foi colega da teórica da economia da corrupção. Enfim, um programa de angolanos, como reconheceu Fátima Campos Ferreira. Por isso, conhecendo de antemão as queixas dos portugueses e a sua gula, teve de colocar algumas questões fracturantes aos seus convidados supostamente "tugas". António Mota negou haver euforia a curto prazo e risco a longo prazo, dizendo que "estamos no melhor momento das relações": angolanos e portugueses são "povos irmãos", cujas relações são "relações entre dois iguais". Os portugueses devem apostar em Angola, cujos empresários exibem "vastíssima qualidade". A cooperação estratégica é benéfica para ambos os povos unidos pela língua e pela tradição. Fátima Campos Ferreira confrontou Helder Batalha (Grupo Espírito Santo) com o facto do "governo angolano ditar as parcerias", recebendo a resposta de que é necessária "determinação nas acções" dos empresários que devem "acreditar em Angola": o grupo Espírito Santo sempre investiu em Angola desde os tempos coloniais e, neste momento, ajuda a "promover empresários angolanos" e a criar grupos económicos com parceiros angolanos. Aguinaldo Jaime não gostou do uso do termo "ditar": o Estado angolano está empenhado no crescimento de empresários angolanos e, por isso, encara "com bons olhos as parcerias" luso-angolanas, garantindo incentivos fiscais aos empresários estrangeiros e portugueses. O seu objectivo é "criar quadros angolanos" capazes de assumir os destinos de Angola e de garantir o seu crescimento.
Basílio Horta (português) contrariou a perspectiva de que abrir as portas aos capitais angolanos quando estes fecham o seu mercado aos portugueses acarreta riscos a longo prazo, afirmando que o relacionamento entre os dois povos é prioritário e útil. Como "o futuro de Portugal está fora das nossas mãos", o investimento angolano é bem-vindo: os portugueses não devem temer o deslocamento dos centros de decisão, mesmo que esse deslocamento diga respeito à GALP. Além disso, devemos ter em conta que o mercado angolano é o "quarto mercado das exportações portuguesas", não só de serviços mas também de bens ou mesmo de máquinas. Basílio Horta considera que os portugueses devem investir em três outros sectores angolanos: saúde, educação e novas tecnologias, mediante parcerias com empresários angolanos formados na escola da acumulação violenta do capital. Mira Amaral defendeu o investimento de Angola em Portugal em determinados sectores industriais, tal como as cerâmicas, e depois estas empresas luso-angolanas deveriam criar empresas do mesmo sector em Angola. Esta transferência do poder produtivo de Portugal para Angola agradou a Aguinaldo Jaime e a Isaac Wambembe (UNITA) que defendeu a ideia de uma Angola próspera. Carlos Bayan Ferreira (português?) estabeleceu como prioridade a "formação de quadros angolanos" capazes de participar activamente no desenvolvimento do seu país e de "assumir os seus destinos". A cooperação entre portugueses e angolanos tem, pelo menos, duas vantagens: a língua e uma história comum (Aguinaldo Jaime). Dela depende a criação da cidadania (qual?) e o bem-estar do povo angolano (sic). O "bom entendimento das lideranças" referido por Aguinaldo Jaime parte de um pressuposto falso: o regime português não é presidencial e Cavaco Silva não é Eduardo dos Santos. Os portugueses convertidos em angolanos e intoxicados nas suas hormonas da gula foram incapazes de pensar: os que afirmam com orgulho serem angolanos devem regressar à sua pátria africana e aguardar pela eleição futura de um presidente branco e os que acreditam na irmandade dos dois povos, exemplificada com um jogador do Benfica (corrupção reproduz mais corrupção!), sonhando com um eixo atlântico, devem ser confrontados com a história e a verdade. O governo angolano não deseja cooperação estratégica, até porque recusa vistos aos portugueses e cria dificuldades burocráticas ao investimento português em Angola: a sua estratégia é investir as suas mais-valias oriundas do petróleo em Portugal, de modo a poder ter controle sobre o tecido produtivo, a comunicação social e os centros de decisão nacionais. O temor da recolonização encobre a ambição colonizadora angolana movida pelo rancor da colonização portuguesa. É evidente que os africanos sabem que a China os encara como escravos, visando em última instância a colonização do continente africano: a Europa decadente, defensora das igualdades arbitrárias e dos multiculturalismos irracionais, parece-lhes mais apetecível. A suposta oportunidade dos portugueses é um suicídio! Portugal dispensa empresários que nunca produziram riqueza nacional! Afinal, são todos angolanos e falam a mesma língua, a corrupção incentivada por Fátima Roque!
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 15 de março de 2009

Paradoxo Darwiniano: a Homossexualidade (2)

A teoria neuro-hormonal do desenvolvimento da orientação sexual mostrou que os efeitos hormonais pré-natais sobre a diferenciação do cérebro e do comportamento envolvem padrões complexos de masculinização, desmasculinização, feminilização e desfeminilização, associados com padrões particulares de orientação sexual (Ellis & Ames, 1987; Pillard & Weinrich, 1987). J.R. Feierman (1990) conjecturou que os padrões da diferenciação sexual do cérebro podem estar ligados aos padrões de características preferidas do parceiro baseadas na avaliação de traços do alvo em relação ao sujeito. Assim, por exemplo, Feierman sugeriu que um cérebro masculinizado e desfeminizado provoca atracção sexual por parceiros mais jovens e mais femininos do que o sujeito e, nesta categoria, incluem-se os homens heterossexuais adultos, bem como os pedófilos heterossexuais e homossexuais e os homens atraídos por jovens adolescentes. Por outro lado, Feierman conjecturou que os cérebros masculinizados e feminizados dirigem a sua atracção erótica para parceiros mais jovens e mais masculinos do que o sujeito e os homens homossexuais podem ser incluídos nesta categoria. Existe muita evidência empírica de que os homens homossexuais são especialmente atraídos por homens com aspecto masculino (B. Mealey, 1997; Muscarella, 2001). Contudo, estas sugestões não esgotam todas as «preferências sexuais» dos homens homossexuais e heterossexuais. Feierman (1999) considera que os cérebros dos homens heterossexuais são masculinizados e desfeminizados, dirigindo a atracção para alvos que são mais novos e mais femininos do que eles. Os cérebros dos homens homossexuais são masculinizados e feminizados, dirigindo a atracção para alvos que são mais novos e mais masculinos do que eles. Ora, os nossos dados desmentem a uniformidade deste conceito de homossexualidade masculina: os homens homossexuais variam entre si em diversos traços, exibindo padrões ora mais masculinos, ora mais femininos (De Sousa, 2006). Estes resultados são congruentes com a hipótese neuro-hormonal diferencial da orientação sexual: as diferenças sexuais estão presentes no seio da população homossexual, porquanto os homossexuais variam entre si em traços críticos, com os homossexuais efeminados a exibir um maior número de traços sexuais atípicos (desmaculinização) e os homossexuais masculinizados a exibir traços sexuais típicos (masculinização) e, nalguns aspectos, hipermasculinos (Becker et al., 2005). Os cérebros homossexuais exibem padrões de diferenciação sexual diferentes e talvez distintos, não podendo ser reduzidos a um único «cérebro feminizado». O único traço comum a todos eles reside no facto de sentirem maior atracção sexual por parceiros com «aspecto masculino» e de reagirem com elevada excitação genital a estímulos sexuais masculinos (Chivers, Rieger, Latty & Bailey, 2004; Lippa, 2006; Rieger, Chivers & Bailey, 2005). De facto, os homens homossexuais destacam o papel desempenhado pela atractividade física e sexual na escolha de parceiro (Gonzales & Meyers, 1993; Siever, 1994; Sergios & Cody, 1985-86), preferindo parceiros com «aspecto masculino» (Mealey, 1992), como demonstraram as análises dos anúncios íntimos (Bailey et al., 1997; De Sousa, 2006).
A estrutura neural responsável pela atracção sexual nos homens homossexuais é feminizada e desmasculinizada. Se os grupos heterossexuais fossem diferenciados, é provável que algumas diferenças intra-homossexuais observadas estivessem também presentes entre os heterossexuais, o que poderia clarificar o âmbito da pesquisa neuroendocrinológica e genética da orientação sexual. Mas, independentemente dos resultados dessa pesquisa futura, resulta destas observações o facto de ser necessário falar de masculinidades no plural (Schauer, 2004; Beynon, 2002; Connell, 1995, 2000; Whitehead, 2002), em vez de masculinidade no singular e no sentido heterosexista do termo. Este facto parece ser independente da identidade de género, porquanto, como demonstraram Swaab & Hofman (1995), o tamanho do núcleo do leito da estria terminal é similar entre os homens heterossexuais e homossexuais, tendo nos transexuais um tamanho ligeiramente menor ao das mulheres heterossexuais. A existência de diversos tipos de homossexuais masculinos e femininos, entre os quais se evidenciam claras diferenças sexuais e padrões distintos de comportamento, sugere que a via da orientação sexual está submetida a regulação multi-génica, como seria de esperar de um traço comportamental complexo. Esta ideia coaduna-se com os resultados de Mustanski et al. (2005) e Bocklandt et al. (2006). Dado os homens transexuais serem geralmente provenientes dos grupos dos homossexuais hiperefeminados, em especial dos agitados, podemos supor que genes do cromossoma X tenham uma grande influência sobre o desenvolvimento da orientação sexual deste grupo de homossexuais. Com efeito, estes transexuais exibem um aumento da ratio maternal tio/sobrinho similar à de alguns homens homossexuais (Green & Keverne, 2000; Turner, 1995).
Na tentativa de explanar uma base genética e endócrina para a selecção do comportamento homossexual, Rahman & Wilson (2003) propuseram o seguinte cenário: Durante a evolução humana, a agressão intra-sexual constituía um problema adaptativo, porque provocava a redução da sobrevivência individual e o infanticídio (Diamond, 1992; Wrangham, 1987). Por isso, ocorreram mutações genéticas que garantiram a plasticidade evolucionária da diferenciação sexual neuroendócrina. A plasticidade não é aqui usada para designar um mecanismo neuro-endócrino infinitamente flexível mediante o qual se produz polimorfismo sexual infinito, mas um mecanismo neuro-anatómico, neuroquímico e neuro-endócrino ancestral conservado entre os vertebrados, sobre o qual a selecção age para gerar variação nos fenótipos individuais. Rahman & Wilson baseiam a sua teorização sobre o estudo de M.S. Grober (1997) com um peixe teleóstico, que exibe uma variedade de fenótipos sexuais. Os desvios observados no sexo do peixe, isto é, machos sexualmente activos e fêmeas que se transformam regularmente em machos, com uma morfologia masculina adequada, são acompanhados por mudanças correspondentes no comportamento sexual. O mecanismo neuroendócrino que permite estas alterações é plástico na sua habilidade para mudar a estrutura e a função (Grober et al., 1991), envolvendo mudanças nas hormonas produzidas pelo eixo hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA) e pelo eixo hipotálamo-pituitária-gonadal (HPG). Sinais sociais afectam os substratos neurais, os quais alteram os níveis das hormonais sexuais através de mecanismos de feedback das alças associadas com cada um dos eixos neurais. Grober & Sunobe (1996) demonstraram que a mudança de sexo serial que é mediada socialmente no Trimma okinawae (marina goby) envolve alterações significativas e reversíveis no tamanho da arginina vasotocina produzida pelas células do cérebro anterior. Mudanças nestas hormonas sexuais causam alterações estruturais e funcionais nas estruturas neurais associadas com o comportamento sexual, tais como a área preóptica do hipotálamo e o núcleo supraquiasmático, as mesmas áreas que estão associadas com a orientação sexual nos mamíferos, incluindo os seres humanos (Swaab, 2004; Morris, Jordan & Breedlove, 2004; Gooren, 2006).
Rahman & Wilson (2003) aceitam a ideia de que o comportamento homossexual pode ter sido adaptativo por causa da sua contribuição para a formação de alianças, mas rejeitam o conceito de que os seres humanos são basicamente bissexuais, argumentando a evidência empírica suporta uma orientação sexual masculina bimodal e, possivelmente, uma orientação sexual feminina trimodal. Daí que tenham recusado a tentativa de Kirkpatrick (2000) e de Muscarella (1999, 2000) de conceptualizar uma base neuroendócrina para a selecção do comportamento homossexual. Baseados na pesquisa sobre a mudança de sexo nesse peixe e sobre a teoria de Miller (2000) da selecção de traços femininos nos homens, Rahman & Wilson propõem que as variações nos genótipos produziram machos hominídeos que eram mais femininos nos traços comportamentais e mais bissexuais nas preferências sexuais. Este genótipo produziu machos ancestrais que exibiam tais características. Além de terem contribuído para a afiliação do mesmo sexo e conduzido à formação de alianças, estas características atraiam as fêmeas, porque estavam associadas com a diminuição da agressão e do infanticídio, o melhoramento do comportamento parental e das qualidades parentais, o compromisso e a afiliação com outros machos menos poderosos e o aumento da viabilidade das crias. Durante todo esse período de tempo, as fêmeas escolheram os machos que exibiam traços femininos, o que levou à proliferação dos alelos da feminização. A consequência dessa escolha sexual feminina foi a evolução de alelos associados com o interesse homossexual exclusivo (alelos exclusivamente gay). A contribuição positiva dos traços femininos dos homens para o parentesco e a viabilidade das crias compensaram os seus efeitos reprodutivamente deletérios. A selecção sexualmente antagonista favorece os genes que optimizam os traços de um dos sexos, apesar de diminuírem a aptidão directa quando são expressos pelo outro sexo. O resultado foi a sexualidade bimodal. Deste modo, os alelos para a homossexualidade bimodal foram conservados num polimorfismo balanceado.
No entanto, este argumento parece ser inconsistente, já que supõe que os genótipos particulares presentes entre os hominídeos produziram machos mais femininos nalguns traços comportamentais e bissexuais nas preferências sexuais. Assim, a bissexualidade foi uma estratégia de sobrevivência e de reprodução bem sucedida entre os machos ancestrais e houve selecção para que assim fosse. Daqui decorre que a maioria dos machos humanos deveria ser basicamente bissexual ou, pelo menos, ter o potencial para a bissexualidade sob determinadas condições. Este é, aliás, o argumento de Kirkpatrick (2000) e de Muscarella (1999; 2000). Contudo, Rahman & Wilson recusam o conceito de que os machos humanos são basicamente bissexuais. Como poderia uma população de machos humanos ter evoluído para a actual heterossexualidade quando a selecção era para reter traços bissexuais? Num inquérito realizado nos USA por Laumann et al. (1994), apenas 0.8% dos homens foram categorizados como bissexuais e 96.9% foram categorizados como heterossexuais. Estes dados indicam que apenas uma pequena percentagem de homens está predisposta para uma orientação homossexual exclusiva, devido à variação normal dos genótipos que regulam algumas preferências sexuais, mas não explicam como um genótipo para a preferência sexual teorizado para ser o mais adaptativo possa ter desaparecido durante o curso da evolução humana, levando a genótipos para alternativas menos adaptativas. É possível que, apesar dos estudos contemporâneos mostrarem uma distribuição bimodal da orientação sexual, este fenómeno possa reflectir os efeitos de constrangimentos culturais e não a actual variação genotípica. Assim, por exemplo, embora a psicologia evolutiva afirme que os machos evoluem para ser sexualmente promíscuos (D.M. Buss, 1999), a maioria dos homens americanos casados permanecem fiéis às suas mulheres (Laumann et al., 1994), envolvendo-se em compromissos monogâmicos. Muitos etólogos consideram que esta monogamia pode ser explicada como o resultado de constrangimentos culturais exercidos sobre predisposições evolucionárias. De modo similar, pode ser precipitado assumir que a incidência de um comportamento tão complexo e tão pouco compreendido como a orientação sexual humana reflicta variação genotípica livre de influências sociais e culturais. Neste aspecto, a teoria da selecção de traços bissexuais na evolução humana de Rahman & Wilson assemelha-se às teorias propostas por Kirkpatrick (2000) e Muscarella (1999, 2000), com as quais pretende ter rompido.
As primeiras teorias evolutivas tentaram explicar como o comportamento homossexual era ou uma má adaptação ou um bi-produto biologicamente irrelevante da plasticidade do cérebro humano. Entretanto, como vimos, emergiu uma nova visão da evolução do comportamento homossexual na psicologia evolutiva, a qual defende que algum tipo de comportamento homossexual foi adaptativo no decorrer da evolução humana e, por causa disso, foi seleccionado. Surgiram duas grandes perspectivas sobre este assunto: a primeira destaca que o comportamento homossexual reforça alianças do mesmo sexo, o que contribuiu directamente para a sobrevivência e indirectamente para a reprodução (Kirkpatrick, 2000; Ron et al., 2000; Muscarella, 2000), enquanto a segunda perspectiva defende que o comportamento homossexual foi adaptativo nos meios ancestrais, explicando a sua base neuroendócrina através da feminilização do cérebro masculino, especialmente dos cérebros associados com a orientação homossexual (Miller, 2000; Rahman & Wilson, 2003). Porém, uma tal perspectiva parece ser constrangida pelos estereótipos culturais e científicos comuns, segundo os quais os homens com uma orientação homossexual são, de alguma forma, menos masculinos e mais femininos do que os homens heterossexuais. A investigação neuroendocrinológica mostrou que efeitos hormonais pré-natais organizacionais e possivelmente alguns efeitos pós-natais determinam, em grande medida, o desenvolvimento da orientação sexual (Pillard & Weinrich, 1987). Embora a evidência empírica desses efeitos tenha sido provada (Breedlove, 1992; Gorski, 1986), a pesquisa que procura mostrar diferenças persistentes entre homens heterossexuais e homossexuais tem revelado alguns dados inconsistentes (Meyer-Bahlburg, 1995), talvez por ser constrangida pelo estereótipo cultural de que a orientação homossexual dos homens possa ser completamente igualada à feminilidade: os estudos neuro-endrócrinos mostraram que os homens homossexuais exibem funcionamentos hormonais e neuroendócrinos, bem como estruturas neurais, mais similares aos das mulheres do que aos dos homens heterossexuais. Estes resultados são apoiados pelos estudos de populações clínicas (Cohen-Bendahan, van de Beek & Berenbaum, 2005; Hines, 2006). As inconsistências observadas resultam da não diferenciação interna dos grupos homossexuais. Se os homens homossexuais possuíssem um endofenótipo absolutamente similar, eles estariam dependentes dos homens heterossexuais em termos de satisfação sexual. Ora, uma tal dependência sexual não se verifica: a população homossexual goza de independência sexual.
Como é evidente, um modelo teórico único não pode explicar um fenómeno tão complexo como a orientação sexual humana. Muscarella et al. (2001) apresentaram um modelo integrado, de acordo com o qual algum tipo de comportamento homossexual tinha valor adaptativo sob determinadas condições durante a evolução humana ancestral e esta é a razão pela qual os genes responsáveis por este comportamento permaneceram na população. Factores hormonais e neuroendócrinos estão indubitavelmente envolvidos no comportamento homossexual, dado estarem envolvidos no controle de muitos aspectos do comportamento sexual de diversas espécies animais (Morris, Jordan & Breedlove, 2004). Muscarella et al. (2001) conjecturam que, no passado evolucionário da humanidade, ocorreu selecção dos traços mais femininos e, portanto, bissexuais, nos homens. Ross & Wells (2000) conjecturam que a homosociabilidade foi uma pré-adaptação para a homossexualidade e Kirkpatrick (2000) lançou a hipótese de que a selecção ocorreu através do altruísmo recíproco. As duas últimas abordagens não implicam a selecção de traços femininos para a interpretação da orientação sexual humana. O comportamento homossexual pode representar uma forma de flexibilidade sexual não muito diferente da escalada comportamental de muitos comportamentos de animais de outras espécies (Barash, 1982). Assim, por exemplo, durante a estação de acasalamento, os machos sea lions não se toleram uns aos outros e lutam furiosamente entre si. Depois da estação de acasalamento, eles estendem-se e refastelam-se bastante juntos e de modo afectivo na praia. De modo semelhante, os pares de deambulação de machos adultos são extraordinariamente agressivos, embora participem em comportamentos homossexuais frequentes uns com os outros (Bagemihl, 1999). O comportamento destes animais não é explicado em termos de feminilização excessiva, mas antes como simples escalada comportamental. Em conformidade com estas observações, os machos humanos podem ter evoluído para exibir algum grau de comportamento bissexual sob determinadas condições. A orientação predominantemente homossexual exibida por uma pequena percentagem de homens pode ser devida a uma grande predisposição genética, como resultado da variação genética, em combinação com factores culturais e sociais que possibilitam a sua expressão.
As inconsistências encontradas na pesquisa neuroendócrina podem ser devidas ao facto dessa pesquisa fundar-se num pressuposto falso: o de que a orientação sexual é seguramente dicotómica. Dado as características determinadas geneticamente tenderem a ser contínuas (Lewontin, 1982), a expressão geneticamente mediada do comportamento homossexual poderá, de modo similar, ser igualmente contínua. As medidas da orientação sexual que reflectem uma distribuição bimodal de heterossexualidade /homossexualidade, pelo menos nos países ocidentais, podem não reflectir adequadamente a actual variação genotípica e a sua correspondente variação neuroendócrina. A maior parte dos estudos realizados usam voluntários auto-rotulados como homossexuais, bissexuais ou heterossexuais. E, dado existirem pressões sociais contra o reconhecimento público da orientação homossexual, o grupo homossexual é auto-seleccionado pelas suas psicologia e endocrinologia, que estão na base dos comportamentos exibidos. No entanto, assumindo que o genótipo do comportamento homossexual é contínuo, torna-se necessário dar mais atenção às variações observadas no seio dos grupos heterossexuais, bissexuais e homossexuais de ambos os sexos. A variação observada no comportamento sexual visível pode ser gerada pela correspondente variação genotípica, o que explica a proporção elevada de comportamento homossexual observada em homens auto-identificados como heterossexuais com acesso limitado a parceiros do sexo oposto (Bancroft, 1989). (CONTINUA com o título "Paradoxo Darwiniano: a Homossexualidade 3".)
J Francisco Saraiva de Sousa