quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Homofobia ou Preconceito Sexual? (3)

A hostilidade dirigida contra as pessoas homossexuais e bissexuais de ambos os sexos tem sido rotulada como homoerotofobia (Churchill, 1968), heterosexismo (Morin & Garfinkle, 1978), homosexofobia (Levin & Klassen 1974), homosexismo (Lehne, 1976), homonegativismo (Hudson & Ricketts, 1980), anti-homossexualismo (Hacker, 1971) e anti-homossexualidade (Klassen, Williams & Levitt, 1989). No entanto, o termo mais utilizado para referir a hostilidade antigay é homofobia (Smith, 1971; Weinberg, 1972). O termo heterosexismo foi forjado na mesma altura, como termo análogo ao sexismo e ao racismo, para descrever um sistema ideológico que classifica a homossexualidade como inferior à heterossexualidade: homofobia é geralmente usada para descrever as atitudes e os comportamentos individuais antigay, enquanto heterosexismo se refere ao nível societal das ideologias e dos padrões institucionalizados de opressão das pessoas não-heterossexuais. O termo homofobia reflecte, pelo menos, três suposições: o preconceito antigay é basicamente uma resposta de medo (1), esta resposta é irracional e disfuncional para os indivíduos que manifestam ansiedade diante da homossexualidade (2), e constitui mais uma perturbação individual do que um reflexo de valores culturais (3). A teoria do preconceito sexual de Herek (1986, 2004) considera que estas suposições não são apoiadas empiricamente e, por isso, operou uma substituição de paradigmas: em vez de uma abordagem psicopatológica da hostilidade antigay, advoga uma abordagem sociológica e cultural que abdica do conceito de homofobia, substituindo-o pelo conceito de preconceito sexual extraído da psicologia social.
A mudança de problemáticas teóricas operada por Herek tem um mérito inegável: a recuperação da noção elaborada por Cory (1951) de que os indivíduos homossexuais constituem uma espécie de grupo minoritário, comparável às minorias raciais, étnicas e religiosas (Kameny, 1971). Apesar dos homens gay e das lésbicas diferirem das outras minorias em alguns aspectos importantes (Paul, 1982), em especial no facto de não constituírem uma população "estranha" à população heterossexual maioritária, com a qual estão ligados por laços genéticos, étnicos e culturais, podem ser vistos como um grupo minoritário, porque manifestam, pelo menos, quatro características pelas quais as minorias são definidas (Seeman, 1981; Tajfel, 1981): Em primeiro lugar, os indivíduos homossexuais constituem um segmento subordinado dentro de uma sociedade mais vasta, da qual fazem parte integrante. Em segundo lugar, eles manifestam características que são muito pouco estimadas e valorizadas pelos segmentos dominantes da sociedade. Em terceiro lugar, eles estão conscientes de formarem juntos uma comunidade à margem da sociedade em virtude de partilharem essas características socialmente estigmatizadas. Finalmente, eles recebem tratamento social diferencial por causa dessas características pouco apreciadas pela sociedade e este tratamento vai desde a discriminação até à violência e a vitimização. Geralmente, este tratamento desigual dado às pessoas homossexuais e bissexuais não é claramente justificado pela maioria heterosexista, a não ser com recurso a crenças vagas, estereotipadas e falsas de que os indivíduos homossexuais e bissexuais possuem diversos traços indesejáveis, tais como serem mentalmente doentes, imaturos, pueris ou mesmo perigosos para a segurança das crianças, crenças estas fundamentadas pelos cristãos conservadores e reaccionários mediante o apelo à moralidade religiosa.
A emergência de comunidades gay visíveis é, em grande parte, resultado das lutas políticas e legais contra o preconceito e a discriminação. O reconhecimento de ser membro de uma comunidade gay e o sentimento de pertença adquirido durante o processo de coming out foi definido por Kitzinger (1989) como um acto político, dado ser motivado pelo desejo de mudar as atitudes e as políticas antigay (De Cecco, 1984). A minoria homossexual pode assim ser vista como uma minoria política: a equação "homossexual é igual a segredo" foi substituída pela equação "homossexual é igual a publicidade ou visibilidade pública". Sair do armário é o primeiro passo para qualquer indivíduo homossexual participar na comunidade gay e engajar-se no movimento de libertação gay (Grierson & Smith, 2005). Dar esse passo implica deixar de se ver a si próprio através dos olhos preconceituosos da sociedade homófoba e passar a orgulhar-se de si mesmo e da sua orientação sexual. O orgulho de si mesmo possibilita falar abertamente com a família e com os colegas de trabalho ou de escola sem sentir a vergonha e a humilhação impostas aos jovens gays. Os Dias Gays e a Semana do Orgulho Gay, iniciada em 1970 nos USA, são cristalizações desta nova perspectiva semiótica da transformação cultural do homem gay que está por detrás da cultura clone.
Recapitulando o que já tinha dito anteriormente, a teoria do preconceito sexual articula fundamentalmente três conceitos: estigma sexual, heterosexismo e preconceito sexual. O estigma sexual é usado para referir o conhecimento partilhado negativo da sociedade heterosexista a respeito de todos os comportamentos não-heterossexuais. O heterosexismo é usado para designar a ideologia cultural que perpetua o estigma sexual e o preconceito sexual é usado para referir as atitudes negativas ligadas à orientação sexual. Estes são os três conceitos fundamentais que Herek elaborou para explicar a hostilidade antigay institucional e individual.
2.1. Estigma Sexual. Independentemente das suas atitudes, os membros das sociedades ocidentais partilham o conhecimento de que os desejos e os comportamentos homossexuais, bem como as respectivas identidades, são maus, imaturos, doentes e inferiores à heterossexualidade. Herek (2004) utiliza o termo estigma sexual para designar esse conhecimento partilhado pelo olhar negativo e reprovador da sociedade para tudo o que seja comportamento, identidade, relação ou comunidade não-heterossexuais. O estigma expressa e perpetua um conjunto de relações hierárquicas no seio da sociedade e, deste modo, produz uma assimetria de poder entre os heterossexuais e os não-heterossexuais: a homossexualidade é sistematicamente desvalorizada, inferiorizada, estigmatizada, negada, difamada e considerada como uma manifestação doentia, imoral, criminosa e pecaminosa, quando comparada com a heterossexualidade normalizada.
2.2. Heterosexismo. Herek (2004) utiliza o termo heterosexismo para referir a ideologia cultural que perpetua o estigma sexual pela negação e pela difamação de todas as formas de comportamento, identidade, relação ou comunidade não-heterossexuais. O heterosexismo é inerente a todas as instituições, tais como a linguagem e as leis, através das quais expressa e perpetua um conjunto de relações hierárquicas, desiguais e assimétricas. Nesta hierarquia de poder e de status, tudo o que diz respeito à homossexualidade é desvalorizado e considerado inferior àquilo que diz respeito à heterossexualidade: as pessoas homossexuais e bissexuais, as relações do mesmo sexo e as comunidades das minorias sexuais são eclipsadas e tornadas invisíveis e, quando são conhecidas, são difamadas e insultadas, como se fossem doentes, imorais ou criminosas.
A dicotomia entre heterossexualidade e homossexualidade está no cerne do heterosexismo e as teorias queer e as teorias pós-modernas usam o termo heteronormatividade ou heterossexualidade normativa para a designar (Seidman, 1997; Warner, 1993), mas sem conseguir ultrapassar a perspectiva da norma social e, deste modo, reclamar a tolerância pelas minorias eróticas: embora possibilite identificar o "heterossexual" e o "anti-homossexual", a desconstrução da dicotomia acaba por ser pouco favorável à aceitação da própria minoria homossexual. A ligação estrutural do heterosexismo com as ideologias anti-homossexuais e a opressão ligada ao género e à orientação sexual foi realizada fundamentalmente pelas feministas lésbicas: o heterosexismo é inerente ao sistema social patriarcal que oprime as mulheres, impondo-lhes a heterossexualidade compulsória (Rich, 1980). A sua eliminação exige uma reestruturação radical da cultura dos papéis de género ou de duplo-padrão e das relações assimétricas de poder (Kitzinger, 1987). Os activistas gays não adoptaram esta abordagem, até porque eram homens, preferindo destacar a homofobia como um tipo de atitude negativa em relação aos outros. No entanto, o heterosexismo oprime e vitimiza os próprios homossexuais masculinos, socializando-os numa cultura dos papéis de género que os obriga a moldar o seu comportamento pelo do pai e a seguir a estrutura social heterosexista que os vê como "machos fracassados". A interiorização deste sistema ideológico fá-los abandonar a ideia de ter um companheiro de vida e a "optar" por ligações sexuais casuais e clandestinas com estranhos, quando não os leva à auto-rejeição, à vergonha e à culpa. O heterosexismo desumaniza a sexualidade humana e sobretudo as pessoas homossexuais e bissexuais de ambos os sexos, uniformiza as sexualidades de género, como se houvesse uma única maneira de ser homem ou de ser mulher, e subordina as mulheres ao domínio masculino, privando-as dos prazeres sexuais e fazendo delas meras parideiras e cuidadoras de crianças.
2.3. Preconceito Sexual. Herek (2004) usa o termo preconceito sexual para designar as atitudes negativas dos heterossexuais em relação ao comportamento homossexual, às pessoas que se envolvem em comportamentos homossexuais ou que se identificam como gays, lésbicas ou bissexuais, e às comunidades formadas por pessoas que sentem atracção sexual pelo mesmo sexo ou por ambos os sexos. A definição de preconceito sexual inclui três ideias principais: o preconceito é uma atitude ou uma predisposição psicológica para responder com uma avaliação positiva ou negativa a determinados alvos (1), dirigida contra um determinado grupo social (2), cujos membros são avaliados em função da sua integração no grupo e não pelas suas qualidades individuais, e, quando envolve hostilidade ou aversão, constitui uma atitude negativa (3). A hostilidade heterossexual contra os homossexuais e bissexuais é o resultado do preconceito sexual e não da homofobia. Ou, dito de modo mais amplo, a hostilidade antigay começa por ser classificada ao nível cultural como estigma sexual difundido pela ideologia heterosexista e incorporado pelos indivíduos durante o seu longo processo de socialização (Goffman, 1963), e depois ao nível individual como atitude, definida como uma avaliação das pessoas, dos temas ou dos objectos, realizada individualmente ou em grupo em função de dimensões tais como bom-mau ou favorável-desfavorável. O preconceito sexual é precisamente a atitude negativa ou hostil exibida pelos heterossexuais contra o grupo homossexual e/ou os seus membros, e o oposto do preconceito pode ser chamado tolerância ou aceitação.
Segundo Herek, os activistas antigay são hostis em relação às pessoas e às comunidades homossexuais e condenam o comportamento homossexual como pecaminoso, antinatural e doente, não por alegarem ter medo da homossexualidade, mas simplesmente por preconceito ou por antagonismo dirigido a um grupo minoritário. No fundo, Herek limita-se a dizer que os heterossexuais são hostis à homossexualidade por preconceito sexual. A hostilidade não é provocada pela violação das normas de género, como sugeriram Kite & Whitley (1998), mas por uma atitude negativa dirigida contra a homossexualidade como um todo e a tudo aquilo que a manifeste ou revele. A não-conformidade de género é, ela própria, alvo do preconceito, como o demonstra a violência contra os indivíduos transgéneros e os rapazes que são rotulados de "sissies" pelos seus pares e companheiros de brincadeira. As atitudes negativas reflectem, portanto, conflitos intergrupais, lealdades pessoais e ideologias religiosas e políticas e não tanto ideologias de género, como demonstra o facto da identidade do homem gay clone envolver hiperconformidade aos papéis de género instituídos (Levine, 1998), ou mesmo a coincidência da emergência da comunidade gay como grupo minoritário com o despertar da hostilidade cristã contra a homossexualidade (Christian Right): as atitudes negativas cristãs dirigidas contra os homossexuais são similares às suas atitudes dirigidas no passado recente contra os grupos étnicos e raciais. O preconceito sexual é, na sua essência, um preconceito social ou, dito de outra forma mais teórica, a teoria do preconceito sexual é uma teoria social dos conflitos intergrupais. A opressão sexual das minorias eróticas é, nas suas dimensões mais profundas, opressão social e histórica. (CONTINUA com o título "Homofobia ou Preconceito Sexual 4".)
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Homofobia ou Preconceito Sexual? (2)

Nos últimos 30 anos, a hostilidade antigay mudou consideravelmente, graças à eficácia política do conceito de homofobia que, ao ser incorporado e usado como slogan político pelo movimento de libertação gay, obrigou a sociedade e os governos a tomar consciência da opressão das minorias sexuais. Diversos movimentos reformistas da sociedade civil, entre os quais o movimento de libertação gay em parceria com organizações políticas liberais, manifestam-se para conseguir alargar as liberdades civis básicas aos homens gay e às lésbicas e, em face destas pressões, os governos foram obrigados a abolir muitas leis discriminatórias, em especial as leis da sodomia, e a elaborar novas leis que garantam as liberdades reivindicadas. Em Portugal, por iniciativa de um governo socialista, foi aprovada, em Março de 2001, a lei que garante alguns direitos a duas pessoas do mesmo sexo (ou de sexo oposto) que vivam juntas há mais de dois anos. A este reconhecimento legal das uniões de facto segue-se, na próxima legislatura socialista, o reconhecimento legal dos casamentos homossexuais e provavelmente da adopção de crianças por parte de pessoas e casais homossexuais. Apesar das vitórias já alcançadas, muitas pessoas inumanas e intolerantes continuam a condenar moralmente a homossexualidade e a bissexualidade e a rejeitar os membros destas minorias eróticas, ao abrigo de velhas máscaras ideológicas de cunho cristão.
Nos USA, os movimentos cristãos antigay aperceberam-se da forte carga negativa e crítica do conceito de homofobia e, para levar a cabo a sua tarefa de bloquear os direitos cívicos dos homens e das mulheres homossexuais, entre os quais a não discriminação no trabalho, os direitos parentais e o reconhecimento legal dos casais do mesmo sexo, mudaram de estratégia: os activistas cristãos e conservadores antigay começaram a afirmar que não eram homófobos, mas que tinham direito a expressar as suas crenças religiosas e a lutar pelo respeito dos seus direitos. A mudança de estratégia reside no facto da condenação cristã da homossexualidade ser justificada, não pelo medo individual, mas pelos valores religiosos e pela identificação com as organizações antigay conservadoras e reaccionárias: a hostilidade cristã antigay pretende fundamentar-se em convicções religiosas e políticas que não aplica à pedofilia verificada nos circuitos intra-eclesiais. Embora esta justificação ideológica de cariz religioso não seja suficiente ou mesmo relevante para invalidar o conceito de homofobia, ela tem o mérito não pretendido de reconhecer que os indivíduos homossexuais de ambos os sexos constituem uma minoria quase-étnica que luta pelo reconhecimento dos seus direitos cívicos, tal como o fizeram os movimentos negros contra o racismo e os movimentos feministas contra a discriminação das mulheres. A luta travada pelos heterossexuais homófobos contra as pessoas homossexuais procura atribuir-lhes um status de grupo à margem da sociedade, esquecendo que os homossexuais já se libertaram, em grande medida, da invisibilidade da vida clandestina e que os argumentos fundados numa suposta "legitimidade religiosa" são pouco convincentes numa sociedade secular, na qual os grupos religiosos são tão "minoritários" em termos de legitimidade quanto as minorias eróticas. Na esfera pública, os conflitos intrapsíquicos cedem lugar aos conflitos intragrupais, colocando na ordem do dia o paradigma reformista e liberal dos direitos cívicos. Doravante, os indivíduos homossexuais não querem mais regressar ao armário. O futuro pertence às forças que lutam pela sua descolonização, isto é, pela sua libertação das trevas obscurantistas e inquisitoriais dos grupos religiosos.
Para fazer face a esta reacção conservadora, tanto o movimento de libertação gay como o feminismo lésbico tiveram de mudar de perspectiva teórica e política: a fronteira entre heterossexualidade e homossexualidade começou a ser vista como uma construção cultural, portanto, como uma fronteira arbitrária e artificial, e o objectivo político almejado é destrui-la. O confronto com a homofobia ou com o heterosexismo exige, portanto, uma mudança operada ao nível da consciência individual e colectiva acerca da sexualidade e do género. Para as feministas lésbicas, "ser lésbica" não é apenas uma matéria de atracção erótica e sexual, mas algo mais profundo que envolve a rejeição da heterossexualidade compulsória inscrita na sociedade reinante, a qual faz parte integrante do sistema patriarcal que subjuga e oprime as mulheres. Todas as mulheres podem ser lésbicas, independentemente dos seus sentimentos sexuais (Rich, 1980; Epstein, 1999; Seidman, 1993). Kitzinger (1987, 1996) rejeita explicitamente a noção de homofobia, alegando que ela reduz a opressão social a uma construção psicológica. Neste aspecto, bem como noutros, o feminismo lésbico distingue-se do movimento de libertação gay. Para os activistas gay, a heterossexualidade exclusiva significa medo das pessoas do mesmo sexo. Este medo é anti-homossexual e conduz necessariamente a frustrações que se exteriorizam em actos de hostilidade individual e institucional dirigida contra os indivíduos homossexuais. Assim, a homofobia dos heterossexuais mais não é do que a rejeição dos seus próprios desejos homo-eróticos, embora possa "ser curada" pela aceitação dos aspectos reprimidos da sua própria sexualidade e da identidade de género (Altman, 1971). A libertação gay combina estruturas de trabalho psicológicas e políticas, enquanto o feminismo lésbico adopta uma abordagem fundamentalmente política. Contra o construtivismo social que lhes é subjacente, levado ao extremo pela Queer Theory que nega a diferença biológica, os dois discursos de género, o gay masculino e o lésbico feminino, reflectem diferenças sexuais e de género essenciais, em especial a maior plasticidade das sexualidades de género feminino e, por contraste, a maior rigidez das sexualidades de género masculino (Diamond, 2004, 2000; Baumeister, 2000; Lippa, 2006). Estas são diferenças biológicas incontornáveis, determinadas geneticamente e submetidas a controle neuro-hormonal (Gooren, 2006; De Sousa, 2006; Wilson & Davies, 2007; Morris, Jordan & Breedlove, 2004; Hines, 2006; Goodfellow & Darling, 1988).
O facto das lésbicas serem menos hostilizadas pelos homens heterossexuais possibilita-lhes abdicar sem grande prejuízo da noção de homofobia, mas o mesmo já não pode ser dito dos homens gay, o alvo por excelência da hostilidade heterosexista: a associação entre homofobia e androcentrismo é demasiado evidente e, por isso, os activistas gay têm pouco espaço de manobra para abdicar dessa construção psicológica. O feminismo lésbico enveredou pela via do sociologismo, sendo muito influenciado pelo preconceito anti-psicologista da esquerda europeia. A atitude da libertação gay é mais prudente e, de certo modo, filia-se na tradição da filosofia política de H. Marcuse: "Hoje, a luta pela vida, a luta por Eros, é a luta política". A teoria psicológica de Freud, incluindo o seu biologismo, é, na sua essência, "teoria social numa dimensão profunda": a subjugação das minorias eróticas é, portanto, um fenómeno histórico que não pode ser cabalmente compreendido sem o recurso a construções psicológicas, porque a subjugação efectiva dos instintos aos controles repressivos não é imposta pela natureza, mas pelo próprio homem, mais precisamente pela sociedade homófoba. A dialéctica da sociedade e do indivíduo nunca pode ser satisfatoriamente resolvida pelo desenvolvimento de um dos elementos em detrimento do outro: os conceitos psicológicos estão saturados de conteúdo sociológico e os conceitos sociológicos são mediados por conceitos psicológicos. Esta combinação dos conceitos psicológicos e sociológicos é fundamental para o sucesso da libertação sexual: "A tradição clássica associa Orfeu à introdução da homossexualidade. Tal como Narciso, ele rejeita o Eros normal, não por um ideal ascético, mas por um Eros mais pleno. Tal como Narciso, ele protesta contra a ordem repressiva da sexualidade procriadora. O Eros órfico e narcisista é, fundamentalmente, a negação desta ordem: a Grande Recusa. No mundo simbolizado pelo héroi cultural Prometeu, eles são a negação de toda a ordem; mas, nesta negação, Orfeu e Narciso revelam uma nova realidade, com uma ordem própria, governada por princípios diferentes. O Eros órfico transforma o ser: domina a crueldade e a morte através da libertação. A sua linguagem é a canção e o seu trabalho é o jogo. A vida de Narciso é a da beleza e a sua existência é a contemplação. Estas imagens referem-se à dimensão estética, assinalando-a como aquela dimensão em que o princípio de realidade das imagens de liberdade deve ser procurado e validado" (Marcuse).
2. Teoria do Preconceito Sexual. Com este brevíssimo interlúdio, pretendo clarificar duas limitações históricas do conceito de homofobia que a teoria do preconceito recupera para justificar a mudança de problemáticas teóricas: a primeira limitação reside no facto da caracterização da opressão dos indivíduos homossexuais como produto do medo individual ser de pouca utilidade para a luta gay e lésbica pelo reconhecimento legal dos seus direitos, e a segunda limitação liga-se ao facto da comunidade gay e lésbica ter começado a perceber-se a si mesma como uma minoria semelhante às minorias étnicas. Quaisquer uma destas limitações extrateóricas exige uma mudança de paradigmas. A partir do momento em que os movimentos gay e lésbico se unem para lutar pelos seus direitos cívicos, o slogan da homofobia deixa de ter relevância: a emergência de um grupo minoritário homossexual corresponde a par e passo à emergência do paradigma liberal dos direitos cívicos. E este último paradigma implica necessariamente a revisão do conceito de homofobia. Na sua versão clássica, a homofobia foi compreendida como uma rejeição dos seus próprios desejos homo-eróticos, isto é, como um conflito do "mim contra si mesmo". Doravante, a homofobia pode ser compreendida como uma rejeição dos membros de um grupo exógeno ou minoritário: já não se trata de um conflito intrapsíquico, mas de um conflito de "nós contra eles", isto é, dos homossexuais assumidos contra as pessoas homófobas que os hostilizam. Deste modo, o conceito de identidade tornou-se fundamental para a compreensão da comunidade gay: coming out, o processo de aceitação, revelação e afirmação da sua própria identidade como um homem gay ou uma mulher lésbica, adquiriu uma importância política (Grierson & Smith, 2005). Segundo De Cecco (1984), "coming out não é apenas um acto pessoal, mas também e fundamentalmente um acto ideológico e político".
A teoria do preconceito sexual sempre andou no ar, tanto fora como dentro dos meios académicos, e, como vimos, Weinberg vacilou entre dois conceitos de homofobia, a homofobia como fobia e a homofobia como preconceito, mas coube a Gregory M. Herek (1999, 2004) juntar todas as peças e elaborar a teoria do preconceito sexual para explicar a hostilidade exibida pelos heterossexuais em relação às pessoas homossexuais e bissexuais. No entanto, ao realizar essa tarefa, Herek abandona o conceito de homofobia e coloca no seu lugar o conceito de preconceito sexual, alegando que o primeiro, embora possa ter alguma relevância para os activistas gay, se tornou improdutivo para os cientistas que, em face das novas mudanças sociais, devem mudar de vocabulário para compreender os processos psicológicos, sociais e culturais subjacentes à opressão das pessoas homossexuais. Herek destaca três áreas gerais em que a hostilidade ligada à orientação sexual pode ser estudada. Em primeiro lugar, a hostilidade existe na forma de conhecimento partilhado que está incorporado nas ideologias culturais que definem a sexualidade, demarcam os agrupamentos sociais em função das suas sexualidades e atribuem valor a estes grupos e aos seus membros em função de uma escala hierárquica pré-estabelecida. Chama estigma a este primeiro aspecto da hostilidade antigay. Em segundo lugar, estas ideologias culturais são expressas através das estruturas, instituições e relações de poder assimétricas da sociedade global. Chama heterosexismo a este segundo aspecto da hostilidade antigay. Finalmente, em terceiro lugar, os indivíduos interiorizam estas ideologias e, através das suas atitudes e das suas acções, expressam-nas, reforçam-nas e alteram-nas. Chama preconceito sexual a este terceiro aspecto da hostilidade antigay. O preconceito sexual é utilizado para referir as atitudes negativas heterossexuais dirigidas contra (a) o comportamento homossexual, (b) as pessoas com uma orientação homossexual ou bissexual, e (c) as comunidades formadas por pessoas homossexuais e bissexuais de ambos os sexos. Tal como outros tipos de preconceito, o preconceito sexual é dotado de três características principais: é uma atitude (1), dirigida contra um grupo social e os seus membros (2) e, dado envolver hostilidade e aversão, é negativa (3). Por outras palavras, o estigma sexual é usado para referir o conhecimento partilhado negativo da sociedade heterosexista a respeito de todos os comportamentos não-heterossexuais. O heterosexismo é usado para designar a ideologia cultural que perpetua o estigma sexual. E o preconceito sexual é usado para referir as atitudes negativas ligadas à orientação sexual. Estes são os três conceitos fundamentais da teoria do preconceito sexual, a qual rompe com a perspectiva individualista e psicodinâmica da teoria da homofobia, bem como com o seu conceito de homofobia interiorizada, substituindo-a por uma perspectiva oriunda da psicologia social sem cair nas armadilhas relativistas do construtivismo social. (CONTINUA: A análise da teoria do preconceito sexual será realizada no próximo post com o título "Homofobia ou Preconceito Sexual 3?)
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Homofobia ou Preconceito Sexual? (1)

Como vimos nos dois posts anteriores, foram elaboradas duas grandes teorias para explicar a hostilidade heterossexual em relação à homossexualidade: a teoria da homofobia e a teoria do preconceito sexual, as quais reflectem, na sua sequência histórica, uma mudança de paradigmas, do paradigma psicológico ao paradigma social centrado na noção de minoria sexual, e, consequentemente, uma mudança das estratégias políticas, que visam mudar o status das pessoas homossexuais e bissexuais na sociedade. A partir dos anos 70, começaram a emergir novas abordagens dos direitos civis dos indivíduos homossexuais e dos casais do mesmo sexo e uma nova perspectiva dos movimentos de libertação gay: a exigência de alterar radicalmente a estrutura da sociedade heterosexista e eliminar a sua visão estreita da sexualidade e do género.
1. Teoria da Homofobia. Em 1973, a American Psychiatric Association Board of Directors votou a remoção da homossexualidade do seu Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), declarando que a orientação do mesmo sexo não está inerentemente associada com a psicopatologia. Esta votação foi rectificada, em 1974, pelos membros da Associação, e teve imediatamente fortes repercussões noutros grupos profissionais, tais como a American Psychological Association (APA), e no modo como a medicina e as ciências do comportamento começaram a olhar para a homossexualidade. Contudo, esta mudança radical do discurso sobre a orientação sexual nos USA e no mundo foi claramente preparada por George Weinberg, que elaborou o conceito de homofobia, em 1972, três anos após os tumultos de Stonewall (1969), para forçar a comunidade científica e a sociedade em geral a questionar a legitimidade da hostilidade anti-homossexual e a pensar de modo diferente o "problema da homossexualidade". Mas o termo homofobia já tinha sido forjado antes de 1972 para refutar a concepção predominante de que a homossexualidade era uma patologia. Em 1965, Weinberg usou, talvez pela primeira vez numa reunião social, o termo homofobia para designar uma "fobia" ou "medo dos homossexuais", um "medo de contágio" e um "medo religioso" de tal modo intensos que conduzem os homens a cometer actos de brutalidade contra os homossexuais. E, em 1971, já num artigo, usa o termo homofobia para designar "a aversão (ou temor) de ser alojado (ou de estar em contacto próximo) com os homossexuais e, no caso dos próprios homossexuais, a auto-aversão", isto é, tédio e aborrecimento consigo próprio.
Ao descrever as consequências da homofobia, Weinberg destaca a sua ligação estreita com o reforço das normas do género masculino e da masculinidade convencional. O preço mais elevado que se paga pela homofobia é a extensão da inibição a todo o círculo de actos relacionados com a actividade temida: os homens evitam actos que possam manifestar ou insinuar sentimentos homossexuais, privam-se de trocar beijos ou abraços, não expressam o seu afecto recíproco ou o seu mútuo desejo de estar abertamente na companhia uns dos outros, não apreciam e não desfrutam a beleza das formas físicas de outros homens, não se sentam muito próximos uns dos outros enquanto conversam, não olham directa e afectuosamente uns para os outros e os pais evitam beijar ou abraçar carinhosamente os seus filhos do sexo masculino. Enfim, tudo aquilo que as mulheres fazem umas com as outras e com os filhos é evitado pelos homens nas suas relações e interacções uns com os outros e com os próprios filhos. O medo da homossexualidade é-lhes inculcado desde os primeiros anos de vida e o resultado deste processo convencional de socialização de género é a fobia como antagonismo dirigido contra um determinado grupo. A fobia leva-os a menosprezar e a maltratar todos aqueles que fazem parte desse grupo hostilizado: "A fobia em acção é um preconceito, o que significa que podemos compreendê-la melhor se a considerarmos na sua condição de preconceito", cujos motivos encobertos radicam no motivo religioso (judaísmo e cristianismo), no temor secreto de ser homossexual, no desejo reprimido, na ameaça dos valores e na angústia da existência sem uma imortalidade substituta. A repulsa pelos homossexuais é acompanhada pelo desejo de lhes infligir castigos: os heterossexuais atacam os homossexuais, porque estes lhes inspiram um "medo mortal". O que eles condenam é a diferença e, segundo Weinberg, esta atitude de hostilidade exibe todos os atributos básicos de um "preconceito social irracional".
A conceptualização da homofobia de Weinberg vacila entre dois conceitos: o da homofobia como fobia e o da homofobia como preconceito social irracional. Isto significa que as duas teorias elaboradas para explicar a hostilidade dos heterossexuais em relação aos homossexuais coexistem nas suas formulações teóricas. Apesar desta ambiguidade essencial, o termo homofobia foi bem acolhido pelas comunidades científica e académica, pelos activistas gay e pelo público em geral, sendo rapidamente integrado na língua inglesa e nos seus dicionários. O seu sucesso deve-se fundamentalmente ao facto de cristalizar as experiências de rejeição, hostilidade e invisibilidade que os homens e as mulheres homossexuais viveram durante as suas vidas na primeira metade do século XX, mostrando que o problema da homossexualidade não residia nas pessoas homossexuais e na sua orientação sexual, mas sim nos heterossexuais que não toleravam os homossexuais, pelo facto da sua presença questionar os papéis de género socialmente construídos e atribuídos, especialmente o modo como eram definidos e aplicados aos homens.
O modelo da homofobia foi usado para conceptualizar uma diversidade de atitudes negativas ligadas à sexualidade e ao género: lesbofobia (Kitzinger, 1986), bifobia (Ochs & Deihl, 1992), transfobia (Norton, 1997), effeminophobia (Sedgwick, 1993) e heterofobia (Kitzinger & Perkins, 1993) emergiram como categorias da hostilidade dirigida, respectivamente, às lésbicas, aos bissexuais, aos transgéneros, aos homens efeminados e aos heterossexuais. O'Donnell et al. (1987) criaram o termo AIDS-fobia para caracterizar o estigma associado ao HIV. A sissyfobia (Green) é particularmente terrível, porque o alvo da hostilidade são crianças do sexo masculino que exibem desde cedo traços de género atípicos: os "meninos efeminados" não só são rejeitados pelos pais, como também são maltratados e abusados pelos seus pares na escola. A agressão infantil pode ser mais cruel do que a agressão infligida pelos adultos e os seus efeitos sobre o desenvolvimento podem ser irreversíveis. Outro conceito que partilha algumas similaridades com o de homofobia é o de xenofobia, usado para designar a hostilidade cultural e individual dirigida contra os estranhos ou os estrangeiros. A compreensão da construção de todas estas fobias exige, conforme mostrou Erving Goffman no seu excelente estudo sobre o estigma, a sua localização no respectivo contexto histórico. A nossa época pode ser definida como a era dos medos, incluindo o medo do medo ou medofobia. De certo modo, as pessoas começam a estar "cansadas da humanidade", para usar esta expressão de Nietzsche, e esse "cansaço" pode traduzir-se na emergência de novas fobias, entre as quais o medo da humanidade ou dos homens. A actual crise financeira e económica pode gerar uma atmosfera de grande ansiedade, favorável ao aparecimento de fobias insuspeitas.
Etimologicamente, a homofobia é um termo ambíguo, por causa do prefixo homo: na sua significação latina podemos traduzi-lo literalmente por "medo dos homens" ou mesmo "medo da humanidade", e na sua significação grega, por "medo do mesmo ou do similar". Weinberg utiliza o termo homofobia na sua significação grega para referir o "medo dos homossexuais de ambos os sexos". A proposta de Boswell (1980) para substituir o termo homofobia por homosexofobia não clarifica o conceito, porque o prefixo homo é usado como termo derrogatório para designar os indivíduos homossexuais: as pessoas comuns sabem perfeitamente que o homo de homofobia se refere aos indivíduos que sentem atracção erótica por outros indivíduos do mesmo sexo e que a homofobia é "medo dos homos".
1.1. Homofobia como Medo. O aspecto mais problemático do termo homofobia não reside tanto no prefixo homo, mas sobretudo no sufixo phobia: fobia não é simplesmente sinónimo de medo. De acordo com o DSM-IV-R, uma fobia é "o medo claro e persistente de situações ou objectos circunscritos": a exposição ao estímulo fóbico provoca quase sempre uma resposta ansiosa imediata nas pessoas com esta perturbação. Embora possam reconhecer que o seu medo é excessivo ou irracional, estas pessoas evitam a todo o custo o estímulo fóbico e, quando o enfrentam, fazem-no com muito sofrimento. O diagnóstico é apropriado "somente se o evitamento, medo ou antecipação ansiosa do confronto com o estímulo fóbico interferir significativamente com a rotina diária da pessoa, funcionamento ocupacional, vida social ou se a pessoa estiver claramente perturbada por ter a fobia". As perturbações fóbicas constituem uma das categorias principais das perturbações de ansiedade, sendo a outra categoria a dos estados de ansiedade. Estas duas categorias de perturbações diferem em termos do grau no qual a ansiedade é localizada ou difusa: no caso das fobias, a ansiedade é localizada e associada a um objecto ou situação particulares, enquanto, nos estados de ansiedade, ela é difusa, não está relacionada a algo específico e é experienciada como omnipresente ou livremente flutuante.
Na minha perspectiva, Weinberg procurou representar a homofobia como uma espécie de categoria de diagnóstico, idêntica à agorafobia e a outras fobias específicas, até porque diz claramente que só considera saudável um "paciente que tenha superado o seu preconceito contra a homossexualidade", preconceito que, no caso do paciente ser homossexual (homofobia interiorizada), o impede de "expressar livremente os seus próprios desejos". Weinberg trata-a como uma fobia, embora a identifique logo a seguir com o preconceito, de acordo com a psicologia do preconceito de Gordon Allport. Alguns estudos não apoiam a noção de que as atitudes antigay possam ser representadas como uma verdadeira fobia (Bernat et al., 2001; Ernulf & Innala, 1987; Herek, 1994): as respostas emocionais negativas dos heterossexuais em relação à homossexualidade envolvem ira e aversão. Isto significa que há uma descontinuidade emocional entre a homofobia e as verdadeiras fobias: a componente emocional de uma fobia é a ansiedade, enquanto a componente emocional da homofobia parece ser a raiva. Haaga (1991) apontou outras quatro descontinuidades: 1) o indivíduo fóbico sabe que o seu medo é excessivo e irracional, apesar de não conseguir deixar de ficar com medo quando enfrenta o estímulo fóbico, enquanto os homófobos pensam que a sua raiva é justificada; 2) o comportamento disfuncional associado a uma fobia é a aversão, enquanto na homofobia é a agressão; 3) a homofobia está ligada a uma agenda política, enquanto as fobias não o estão; e 4) os indivíduos fóbicos estão, eles próprios, motivados para mudar a sua condição, enquanto os indivíduos com homofobia recebem o ímpeto para mudar de fora, em especial dos alvos das suas atitudes negativas.
No entanto, os adeptos da teoria da homofobia não ficaram desarmados e, em vez de abandonar o conceito, submeteram-no a uma revisão. Hudson & Ricketts (1980) afirmaram que o significado do termo homofobia tinha sido diluído, por causa da sua difusão na literatura, onde inclui qualquer atitude, crença ou acção dirigida contra a homossexualidade, e, a seguir, criticaram os estudos que não fazem a distinção entre as atitudes cognitivas em relação à homossexualidade (homonegativismo) e as respostas afectivas e pessoais provocadas pelos indivíduos homossexuais (homofobia). As definições devem ser claras e operacionais e, para clarificar esta distinção conceptual, Hudson & Ricketts (1980) definiram o homonegativismo como um construção multidimensional que inclui juízos a respeito da moralidade da homossexualidade, decisões sobre relações pessoais ou sociais, e todas as respostas referentes a crenças, preferências, legalidade, desejabilidade social ou respostas cognitivas similares. Por outro lado, definiram a homofobia como uma resposta afectiva ou emocional, incluindo medo, ansiedade, ira, desconforto, e aversão, que um indivíduo experiencia quando interage com indivíduos gay, a qual pode ou não envolver uma componente cognitiva. Assim, por exemplo, a homossexualidade ego-distónica ou acentuada angústia com a sua própria orientação sexual pode constituir um tipo de homonegativismo, mas não implica necessariamente homofobia. Esta clarificação é consistente com a definição de homofobia de Weinberg.
Contra o argumento de que o termo homofobia pode não ser apropriado, por não haver evidência de que os indivíduos homófobos exibam aversão pelos indivíduos homossexuais (Bernstein, 1994; Rowan, 1994), MacDonald (1976) arguiu que o único critério necessário para categorizar uma fobia é que o estímulo fóbico produza ansiedade, a qual depende frequentemente da natureza do estímulo e das circunstâncias ambientais: a homofobia pode assim ser definida como ansiedade ou ansiedade antecipada desencadeada pelos indivíduos homossexuais. Esta definição está, como observaram O'Donahue & Caselles (1993), em conformidade com os critérios de diagnóstico exigidos pelo DSM-IV. O'Donahue & Caselles (1993) desenvolveram um modelo tripartido da homofobia, o qual integra componentes cognitivos, afectivos e comportamentais, que interagem de modo diferencial com variadas situações associadas com a homossexualidade. A ideia da homofobia como um fenómeno de ansiedade foi retomada por diversas explicações psicanalíticas, uma das quais, como veremos mais adiante, destaca a ansiedade provocada pela possibilidade de um indivíduo ser ou vir a ser um homossexual, de resto já prevista pela teoria de Weinberg.
1.2. Homofobia como Patologia. Weinberg apresenta o seu livro revolucionário como uma análise prévia da "doença chamada homofobia, uma atitude que se observa em muitas pessoas não homossexuais, e talvez na maioria dos homossexuais, nos países em que existe discriminação contra eles". Como psicoterapeuta, o seu objectivo é ajudar essas pessoas não homossexuais a "superar esta atitude" e sobretudo ajudar os homens e as mulheres homossexuais a converter-se em "homossexuais saudáveis", isto é, a aceitar-se a si próprios e a considerar apropriados os seus próprios desejos homossexuais. A linguagem da psicopatologia foi abraçada por diversos clínicos (Kantor, 1998; Jones & Sullivan, 2002), para os quais a homofobia constitui uma categoria clínica válida aplicável a alguns indivíduos. Porém, a noção de que a homofobia é uma patologia é tão infundada quanto a noção de que a homossexualidade era uma doença. Ambas as noções usam a linguagem clínica para patologizar um padrão de pensamento e de comportamento, estigmatizando-o e estabelecendo subrepticiamente uma equivalência identitária entre o "doente" e o "moralmente mau". Quem foi educado na crítica da fabricação social da loucura realizada por Thomas S. Szasz e pelo movimento da antipsiquiatria desconfia destas tentativas infundadas ou precipitadas de tratar certos comportamentos como indicadores de "doença mental", mas a denúncia do abuso da linguagem da doença não impediu que o modelo da homofobia fosse usado para conceptualizar uma diversidade de atitudes negativas ligadas à sexualidade e ao género.
A hostilidade institucional e individual e a discriminação contra os indivíduos homossexuais está factualmente bem documentada (Berrill, 1990; Herek, 1989): Mais de 90% dos homens gay e das lésbicas relataram terem sido alvo de maus tratos e de abuso verbal e mais de um terço relatou ter sido alvo de violência ligada à sua orientação sexual (Fassinger, 1991). Diante desta hostilidade heterossexual contra os homossexuais, nem mesmo Goffman resiste a dizer que "o preconceito contra um grupo estigmatizado pode ser uma forma de doença". A patologia social de E. Lemert (1951) e o estudo clássico de H. Becker (1963) sobre os "outsiders" suportam esta afirmação, bem como a sua extensão às perturbações iatrogénicas causadas pelo trabalho realizado pelos médicos, entre as quais Weinberg incluiu a psicanálise e outras terapias que ajudaram a popularizar a concepção de que a homossexualidade é um fenómeno de saúde mental. Assim, como escreveu Weinberg, "quando uma pessoa não se prejudica a si mesma nem prejudica as outras pessoas, a afirmação de que está psicologicamente doente carece de sentido", mas, quando se prejudica a si e prejudica os outros, como sucede no caso da homofobia, justifica-se a utilização de uma categoria de diagnóstico: a homofobia responsável pela hostilidade constitui, neste sentido, uma categoria de diagnóstico, uma vez que os homófobos não só estreitam o seu círculo de actividades relacionadas com o estímulo fóbico, como também são levados a cometer hate crimes contra os homossexuais, negando assim a diferença. A psicopatologia de Weinberg funda-se na premissa de que, na nossa sociedade global, há espaço para todos aqueles que não lesionem ou danifiquem os direitos dos demais seres humanos.
1.3. Homofobia e Androcentrismo. A análise da teoria da homofobia tem estado centrada nas supostas limitações da homofobia: duas delas já foram superadas, mas é na terceira limitação que a teoria revela a sua força preditiva. Muitos estudos mostraram que os homens heterossexuais são mais hostis em relação aos homens gay do que as mulheres heterossexuais, e, de modo diferente, são menos hostis em relação às lésbicas do que as mulheres heterossexuais. Isto pode significar que as atitudes heterossexuais em relação às lésbicas têm uma organização psicológica diferente da que têm em relação aos homens gay (Herek, 2002; Herek & Capitanio, 1999). Kitzinger (1987), Pellegrini (1992) e Rich (1980) sugeriram, numa perspectiva feminista lésbica, que a opressão das lésbicas é qualitativamente diferente da opressão dos homens homossexuais. Alguns psicanalistas menos ortodoxos (West, 1977; Kuyper, 1993) defenderam que a homofobia é o resultado de uma homossexualidade reprimida ou de uma homossexualidade latente. Definida como uma excitação homossexual que o indivíduo nega ou da qual não é consciente, a homossexualidade latente permite explicar a doença emocional e as atitudes irracionais exibidas por alguns indivíduos que sentem culpa pelos seus interesses eróticos encobertos e que se esforçam por os negar ou reprimir. Ora, quando colocados numa situação susceptível de excitar os seus próprios pensamentos homossexuais não-desejados, estes indivíduos reagem com pânico e fúria (Slaby, 1994). A ansiedade derivada da homossexualidade não ocorre nos indivíduos que são orientados pelo mesmo sexo, mas envolve frequentemente indivíduos que são ostentivamente heterossexuais e que têm muita dificuldade em integrar os seus sentimentos homossexuais. Portanto, estas teorias psicanalíticas prevêem que os homens homofóbicos exibem mais excitação sexual quando enfrentam estímulos homossexuais do que os homens não homofóbicos.
Adams, Wright & Lohr (1996) testaram esta previsão, realizando um estudo com dois grupos de participantes: homens homofóbicos e homens não-homofóbicos, avaliados e classificados previamente pelo Index of Homophobia (Hudson & Ricketts, 1980). Os participantes foram depois expostos a estímulos eróticos sexualmente explícitos: videotapes de cenas homossexuais, heterossexuais e lésbicas, e a excitação sexual peniana foi monitorizada. Os dois grupos de homens reagiram com aumento da excitação sexual peniana aos filmes heterossexuais e lésbicos: apenas o grupo homofóbico reagiu eroticamente aos filmes homossexuais. Estes resultados sugerem que a homofobia está associada à excitação homossexual. Isto significa que os homens homofóbicos são provavelmente "homossexuais dissimulados" ou em processo de negação da sua própria homossexualidade, o que pode explicar a sua agressividade dirigida mais contra os homens gay do que contra as lésbicas, até porque os homens heterossexuais toleram a homossexualidade feminina e se excitam com ela, como mostra a indústria masculina dos filmes pornográficos. Realizado em função da teoria da homofobia, lida à luz de certas teorias psicanalíticas, este estudo confirma, pelo menos, duas previsões da teoria de Weinberg: o preconceito "é mais frequente entre os homens do que entre as mulheres", no sentido dos homens heterossexuais serem mais hostis em relação aos homens gay e menos hostis em relação às lésbicas do que as mulheres heterossexuais, e isso talvez porque alguns homens ostensivamente heterossexuais tenham "o temor secreto de ser homossexuais", a homossexualidade latente dos freudianos, sentindo-se, por isso, "ameaçados pela presença dos homossexuais que, (além de os excitar sexualmente,) parecem desprezar as normas básicas da masculinidade", embora não sejam necessariamente mais agressivos do que os homens não homofóbicos. (CONTINUA com o título "Homofobia ou Preconceito Sexual 2")
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Vitimização e Orientação Sexual

"Hate crimes" ou "bias crimes" são designações atribuídas aos crimes perpetrados contra determinados indivíduos por causa da sua orientação sexual. Os homens homossexuais e bissexuais e as mulheres lésbicas experienciam diariamente na pele, na carne e no espírito, os efeitos cruéis da intolerância heterosexista em relação às suas sexualidades. O termo heterosexismo será aqui usado como termo análogo ao sexismo e ao racismo, para descrever um sistema ideológico que classifica a homossexualidade como sendo inferior à heterossexualidade, legitimando e justificando as atitudes antigay, os estigmas sociais e os preconceitos sexuais. O heterosexismo é criminologia institucionalizada: a homossexualidade é estigmatizada em todos os sectores institucionais da sociedade heterosexista e esta hostilidade institucional dá consistência e legitimidade às hostilidades individuais. Em Portugal, a minoria erótica homossexual é alvo de discriminação e de vitimização: nas escolas portuguesas, muitos jovens homossexuais de ambos os sexos são alvo de actos violentos e de diversos tipos de abuso, incluindo abuso verbal, abuso físico, abuso psicológico e abuso sexual, perpetrados por outros colegas, com a cumplicidade de professores homofóbicos e a inércia do Ministério da Educação. As atitudes negativas dos indivíduos heterossexuais em relação aos homens e às mulheres homossexuais são consistentes com esta hostilidade institucional. As pessoas homossexuais e os casais do mesmo sexo são estigmatizadas e marginalizadas. O resultado desta estigmatização é a estratificação dos direitos, o isolamento psicológico e social dos indivíduos homossexuais e a criação do status de cidadãos de segunda-classe, estigmatizados e tiranizados pela maioria heterosexista. Os indivíduos estigmatizados exibem uma variedade de efeitos psicológicos negativos, tais como ansiedade, depressão, tentativas de suicídio, alienação, isolamento, medo, raiva e stress crónico. De facto, a minoria homossexual está sujeita a "minority stress": uma tensão psicológica crónica resultante de experiências e de expectativas de preconceito sexual, decisões sobre a revelação pública da identidade sexual e a interiorização de homofobia ou homonegação (Meyer, 2003). O stress crónico nesta forma é um factor que contribui para alterações da saúde física e mental: após terem sido alvo de abuso e de crimes sexuais, os membros da comunidade LGB exibem sintomas de depressão, raiva, ansiedade e stress pós-traumático, e, quando comparados com as vítimas de crimes não-sexuais ou com não-vítimas, manifestam maior medo do crime, grande vulnerabilidade auto-percebida, crença muito enfraquecida na benevolência das pessoas e escasso sentido de domínio. Todas estas experiências de preconceito sexual e de discriminação impostas pelo heterosexismo contribuem para o desenvolvimento de stress a longo prazo e de problemas graves de saúde. O heterosexismo como conjunto de preconceitos sexuais está intimamente correlacionado com diversas variáveis psicológicas e sociais, tais como autoritarismo, identificação com uma denominação religiosa fundamentalista e filiação a partidos conservadores de Direita e respectivas ideologias políticas, bem como certos traços de raça e etnicidade e desconhecimento de amigos homossexuais.
A maioria destes crimes ligados à orientação sexual são perpetrados, em lugares públicos, sobretudo nas ruas, por um ou mais estranhos, geralmente homens heterossexuais, adolescentes e jovens adultos. A vitimização também ocorre noutros lugares, tais como em locais auto-identificados como gay, espaços comerciais, lugares próximos de casa ou na vizinhança da residência, e lugares de trabalho e de estudo, e os perpetradores podem ser vizinhos, colegas de trabalho ou de escola e pessoas conhecidas, incluindo familiares ou mesmo parceiros sexuais casuais ou permanentes. As vítimas são homens homossexuais e bissexuais e mulheres lésbicas, que, por princípio, não relatam à polícia os crimes de que são alvo, devido ao medo de serem objecto de vitimização secundária: a discriminação pelas autoridades policiais ou as consequências negativas resultantes da revelação pública da sua própria orientação sexual. As pessoas que pertencem a minorias sexuais são alvos de assédio e de violência nas escolas, nos lugares de trabalho, nas suas casas ou nas áreas de vizinhança. Os agressores são pessoas desconhecidas, agindo de modo solitário ou em grupo, mas também podem incluir pessoas conhecidas, tais como colegas de trabalho e de escola, parentes, parceiros conjugais e vizinhos, e, muitas vezes, estas pessoas são outros homossexuais. A função destas agressões motivadas por atitudes negativas em relação à homossexualidade parece ser uma forma de terrorismo antigay: o envio a todos os homens e mulheres homossexuais e bissexuais da mensagem ubíqua de que não estão a salvo de ataques selvagens se tentarem dar visibilidade à sua sexualidade.
Diversos estudos recentes examinaram a vitimização traumática de homens e mulheres homossexuais e bissexuais, em comparação com as respectivas contra-partes heterossexuais, e todos eles detectaram que existem diferenças na vitimização psicológica, física e sexual, tanto na infância como na vida adulta, em função do sexo e sobretudo da orientação sexual: as minorias sexuais relataram níveis elevados de abuso psicológico, físico, e sexual, sofrido na infância e na idade adulta, o que significa que os comportamentos do mesmo sexo e a identidade LGB estão associadas com elevado risco para a vitimização. Alguns padrões foram já estabelecidos: 1) Os homens gay são mais vitimizados em lugares públicos, enquanto as lésbicas são mais vitimizadas nas suas casas e áreas da vizinhança. 2) Os homossexuais pertencentes a certas etnias de cor experienciam maior violência antigay do que os homossexuais brancos. 3) Embora alguns relatem à polícia os crimes de que são alvo, a maioria dos homens gay e das lésbicas prefere não apresentar queixa. Porém, as lésbicas apresentam mais facilmente queixa à polícia dos crimes sexuais do que dos incidentes de violência doméstica. 4) A violência doméstica ocorre com o mesmo grau de frequência nos casais heterossexuais e nos casais homossexuais e os tipos de abuso são muito similares: abuso físico e negligência, abuso psicológico, abuso sexual, controle económico e danificação da propriedade. E, tal como sucede com os crimes ligados à orientação sexual, as vítimas de violência doméstica não relatam o abuso às autoridades policiais, por diversas razões: (a) não acreditam que a polícia os possa ajudar, (b) temem a retaliação, (c) não querem ver os abusadores incomodados, e (d) pensam que se trata de um assunto privado. Muitos incidentes de violência doméstica envolvem sérias ofensas corporais e as vítimas, sobretudo os homens homossexuais, sofrem lesões e danos físicos graves que requerem cuidados médicos ou mesmo hospitalização. A própria comunidade gay tem sido incapaz de reconhecer o abuso nas relações do mesmo sexo e algumas vítimas de abuso do mesmo sexo foram revitimizadas física e verbalmente pelas autoridades policiais.
Todos estes padrões são relativos aos hate crimes e à violência doméstica que ocorrem já na vida adulta. Além deles, há ainda os abusos sofridos durante a infância. Diversos estudos científicos mostraram que os homens que foram abusados sexualmente e negligenciados durante a infância podem exibir, na vida adulta, diversas sequelas psicológicas e comportamentos sexuais de risco, tais como ansiedade, depressão, risco aumentado de comportamento suicida, baixa auto-estima, comportamento agressivo, ideação paranóide, stress pós-traumático, promiscuidade sexual, dificuldades interpessoais, abuso de substâncias, alcoolismo, prática de coito anal desprotegido e envolvimento em comportamentos associados à transmissão do HIV. Os homens homossexuais e bissexuais, mais os últimos do que os primeiros, relatam taxas mais elevadas de abuso sexual infantil do que os homens heterossexuais, e estas taxas são comparáveis àquelas relatadas pelas mulheres de todas as orientações sexuais. Embora exista uma relação entre abuso sexual infantil e homossexualidade, é preciso levar em conta a existência de diversos factores associados à condição homossexual que influenciam o risco relativo de ser alvo de vitimização sexual durante a infância. Quando um rapaz descobre a sua atracção pelo mesmo sexo, ele não encontra facilmente pares com os quais possa explorar a sua atracção erótica, e, por isso, dirige-se a homens mais velhos como a única via para explorar a sua sexualidade, expondo-se assim ao abuso sexual. Além disso, a aparência (aspecto) e os comportamentos atípicos em termos de género tornam os rapazes e as raparigas LGB mais visíveis e vulneráveis à agressão perpetrada por adultos, até porque nem sempre podem contar com o apoio dos seus pais. Com efeito, muitos estudos mostraram que os homens homossexuais e bissexuais relatam taxas mais elevadas do que os homens heterossexuais de abuso emocional e maus-tratos físicos infligidos pelas suas mães ou substitutas maternais e de maus-tratos físicos graves, incluindo hematomas, ferimentos, queimaduras, fracturas, lesões intracranianas, luxações e hemorragias, infligidos pelos seus pais durante a infância. E resultados semelhantes foram observados nas lésbicas quando comparadas com as mulheres heterossexuais. As crianças maltratadas e negligenciadas podem ser alvo de abuso sexual, geralmente perpetrado por adultos dentro da sua família imediata ou extensa, o qual não é revelado por causa dos sentimentos de culpa, vergonha, ignorância, medo de retaliação, receio de provocar a dissolução da família, relutância dos adultos ou tolerância da vítima. Pais negligentes, abusadores e homofóbicos não ajudam os seus filhos homossexuais a ter um desenvolvimento saudável; pelo contrário, a falta de apoio parental, agravada pela falta de apoio social, contribui decisivamente para que os jovens LGB, sobretudo os de sexo masculino, cresçam de um modo pouco saudável: homofobia interiorizada, solidão e isolamento, álcool e uso de substâncias e suicidalidade são alguns dos indicadores de saúde mental debilitada. A qualidade da saúde mental exibida pelos indivíduos LGB está associada a auto-estima elevada e a menos solidão e homofobia interiorizada. As pessoas LGB são amordaçadas desde a infância até à morte: a cultura heterosexista silencia-as e obriga-as a silenciar o seu self e a sua identidade, como se fossem seres clandestinos embarcados num navio fantasma e fantasmagórico tripulado religiosamente por criaturas homofóbicas.
Duas grandes teorias foram elaboradas para explicar a hostilidade heterossexual em relação à homossexualidade: a teoria da homofobia e a teoria do preconceito sexual, as quais reflectem, na sua sequência histórica, uma mudança de paradigmas, do paradigma psicológico ao paradigma social centrado na noção de minoria sexual, e, consequentemente, uma mudança das estratégias políticas, que visam mudar o status das pessoas homossexuais e bissexuais na sociedade, portanto, a emergência de novas abordagens dos direitos civis dos indivíduos homossexuais e dos casais do mesmo sexo (Ver este post do Maldonado) e, na sua forma mais extrema, da libertação gay vista como alteração radical da sociedade e da sua visão estreita da sexualidade e do género. (A discussão destas teorias e as suas implicações políticas serão analisadas no próximo post: Homofobia ou Preconceito Sexual?)
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Filosofia da Ciência de G. Bachelard (2)

«A ciência, soma de provas e de experiências, soma de regras e de leis, soma de evidências e de factos, tem pois necessidade de uma filosofia de dois pólos. Mais exactamente ela tem necessidade de um desenvolvimento dialéctico, porque cada noção se esclarece de uma forma complementar segundo dois pontos de vista filosóficos diferentes». (Gaston Bachelard)
A análise espectral revela a identidade na "inversão", a qual se apoia num certo número de pares de categorias filosóficas, em que cada termo pode ser, alternadamente, dominante ou dominado. Estes pares de categorias filosóficas, tais como sujeito-objecto, abstracto-concreto ou dado-construído, constituem o "conteúdo" aparente das teorias filosóficas do conhecimento e todos eles têm por correlação e por cimento a categoria filosófica universal e absoluta da Verdade, que se apresenta como o conceito do seu acordo e que, por isso, fecha o espaço da filosofia. Ora, esta categoria, que leva a pensar que a conclusão do processo de conhecimento é sempre, por princípio, possível ou realizado, impede a compreensão da história efectiva do conhecimento científico: as suas rupturas, mutações, reorganizações, insucessos, contradições, perturbações, cismas e riscos. Por isso, a epistemologia, pelo facto de ser histórica, deve prestar mais atenção ao Erro, ao insucesso, às hesitações, do que à Verdade: o espaço da filosofia da ciência é um espaço aberto e não sistemático. Ao "privilegiar" mais o Erro do que a Verdade, a filosofia da ciência de G. Bachelard aproxima-se do falsificacionismo ou refutabilismo de Karl Popper, mas, como demonstrou Imre Lakatos, dado ser convencionalista, a metodologia popperiana é absolutamente alheia ao universo bachelardiano. Para Bachelard, a ciência contemporânea rectifica e normaliza o conhecimento científico, eliminando toda a possibilidade de um regresso a noções erradas e transformando a forma realista em forma racionalista, e o tecido da sua história é "o tecido temporal da discussão": o progresso da ciência é o progresso da sua racionalidade e "a história das ciências é a história das derrotas do irracionalismo". O refutabilismo é, nesta perspectiva, uma epistemologia unitária, portanto, uma filosofia de filósofos, e, como tal, está deslocada em relação ao eixo, isto é, em relação à prática científica efectiva. A actividade racionalista da ciência contemporânea exige, pelo contrário, uma filosofia aberta, plural e dialogada. Popper fecha o espaço filosófico, preenchendo-o com uma teoria unitária do conhecimento, o racionalismo crítico, que capta de uma só vez e num só golpe a totalidade em marcha e incompleta da história das ciências. Contra o carácter unitário de uma tal filosofia da ciência e da sua noção de ciência como "esclarecimento do senso comum", Bachelard afirma que a filosofia só pode ajudar a ciência na sua luta contra as intuições primeiras quando renunciar ao real imediato, opondo-se radicalmente à opinião: "A opinião pensa mal: ela não pensa: traduz necessidades em conhecimentos. Ao designar os objectos pela sua utilidade, coíbe-se de os conhecer. Nada se pode fundar a partir da opinião; é necessário, antes de mais, destruí-la. Ela constitui o primeiro obstáculo a ultrapassar".
Ora, a filosofia do não de Bachelard é uma filosofia aberta e uma filosofia aberta é "a consciência de um espírito que se constrói no trabalho sobre o desconhecido, buscando no real aquilo que contradiz conhecimentos anteriores": a polémica bachelardiana não só reconhece que a filosofia está em atraso em relação à ciência, como também detecta que os cientistas não professam sempre a filosofia "adequada" à sua própria ciência, já que recorrem à filosofia dos filósofos quando reflectem sobre a sua prática científica. Para pensar o porquê desta intervenção da filosofia dos filósofos na filosofia dos cientistas ou, como lhe chamou Louis Althusser, da filosofia espontânea dos cientistas, Bachelard elabora um complexo sistema de novos conceitos. O primeiro conceito construído por Bachelard, aquele que sustém o edifício, é o de obstáculo epistemológico. Este conceito designa os efeitos na prática dos cientistas, da "relação imaginária" (Althusser) que o cientista mantém com a ciência que exerce. Bachelard interessou-se mais pelo seu efeito único do que pelo seu mecanismo: ao contrário da categoria do não, a noção de obstáculo epistemológico pretende preencher a ruptura entre o conhecimento comum e o conhecimento científico, de modo a restabelecer a continuidade ameaçada pelo progresso revolucionário dos conhecimentos científicos. Se admitirmos que o conhecimento científico só pode progredir pelas suas próprias reorganizações racionais, mediante a actividade racionalista, então o obstáculo epistemológico aparece sempre que uma organização do pensamento existente, científico ou não, se encontra em perigo. Para Bachelard, a filosofia dos filósofos é, pois, o veículo e o suporte dos obstáculos epistemológicos, visto que é ela que estrutura a relação do cientista com a sua prática científica. A razão evoluída exige a ultrapassagem desses obstáculos que entravam a relação correcta dos cientistas com as ciências que praticam. É certo que a actividade científica consiste em "saber formular problemas", mas, como os problemas não se formulam a si próprios, o cientista deve, antes de tudo, apreender o sentido do problema, mediante a conversão à filosofia adequada, o racionalismo aplicado articulado com o materialismo técnico: "Para um espírito científico, todo o conhecimento é uma resposta a uma questão. Se não houver questão, não pode haver conhecimento científico. Nada é natural. Nada é dado. Tudo é construído".
As categorias positivas que possibilitam o reconhecimento dos obstáculos epistemológicos e o respeito pelas rupturas epistemológicas e reorganizações do pensamento científico, são apresentadas segundo uma concepção inédita da dialéctica. Em Bachelard, a dialéctica designa a realidade do trabalho científico: o processo de ajustamento recíproco da teoria e da experiência, da matemática e da experiência depurada. O pensamento científico contemporâneo é profundamente dialéctico, não no sentido de suprimir o dualismo inscrito na história da ciência, mas no sentido de procurar uma conciliação, mais precisamente um compromisso. A realidade científica aparece sempre como o ponto de afluência de duas perspectivas filosóficas, uma rectificação empírica unida a uma precisão teórica: "A geometria não-euclidiana não é feita para contradizer a geometria euclidiana. Ela é antes uma espécie de factor adjunto que permite a totalização, o acabamento do pensamento geométrico, a absorção numa pangeometria. Constituída à orla da geometria euclidiana, a geometria não-euclidiana delineia de fora, com uma luminosa precisão, os limites do antigo pensamento". A dualidade que se manifesta na realidade, tal como a dualidade onda e corpúsculo, exige uma espécie de polarização epistemológica. Isto significa que, se a ciência contemporânea se ocupa da "verdadeira síntese das contradições metafísicas", a filosofia da ciência deve ser vista como uma filosofia dispersa, como uma filosofia distribuída: "Uma só filosofia é insuficiente para dar conta de um conhecimento preciso". Embora possa ser exposto numa filosofia particular, um conhecimento particular não pode fundar-se numa filosofia única: o seu progresso implica aspectos filosóficos variados e complexos. A polaridade epistemológica demonstra que cada uma das doutrinas filosóficas, nomeadamente o empirismo e o racionalismo, é o complemento efectivo da outra, ou seja, uma acaba a outra, embora o sentido do vector epistemológico vá sempre do racional ao real. A dialéctica científica é, pois, pensamento da complementaridade (Ferdinand Gonseth): o seu progresso faz-se no sentido de um racionalismo aplicado crescente, eliminando o realismo inicial. Ora, dado recusar todo o ponto de vista fixo e unitário mediante a rejeição prévia do par sujeito-objecto, Bachelard é obrigado a pensar este ajustamento, não como adequação, mas sim como processo histórico que se realiza mediante movimentos sucessivos e descontínuos de aproximações racionais cada vez mais precisas à realidade construída. O reconhecimento da historicidade do objecto da epistemologia, o crescimento do conhecimento científico, impõe uma nova concepção da história das ciências: "A consciência de modernidade e a consciência de historicidade são rigorosamente proporcionais". A história epistemológica é, para Bachelard, uma dupla-história: uma história sancionada, a história do científico da prática científica, e uma história caduca, a história das intervenções do não-científico na prática científica. Ambas exorcizam a "paleontologia de um espírito científico desaparecido": a história recorrente parte das certezas do presente e descobre, no passado, as formações progressivas da verdade. Ela é feita para tomar consciência da força de certas "barreiras que o passado do pensamento científico formou contra o irracionalismo".
A polémica bachelardiana contra as teorias filosóficas do conhecimento exige, pois, a rectificação da categoria filosófica de experiência pela apreciação crítica da função dos instrumentos na produção de conceitos científicos. Para Bachelard, os instrumentos científicos são "teorias materializadas". Um dos traços mais característicos das ciências contemporâneas é o facto de serem "artificialistas", isto é, de implicarem, como elemento essencial, uma técnica de produção dos fenómenos ou, como a designa Bachelard, uma fenomenotécnica, cujo estudo compete ao materialismo técnico. Dado não ser "realismo filosófico", o materialismo técnico "corresponde essencialmente a certa realidade transformada, rectificada, realidade que precisamente recebeu a característica humana por excelência, a marca do racionalismo". A noção de fenomenotécnica permite compreender a produção, não só como produção teórica de conceitos, mas também como produção material do objecto teórico, daquilo que já não pode ser designado por "dado", mas por "matéria". Antes de "olhar" é preciso "reflectir": "A observação científica é sempre uma observação polémica; ela confirma ou infirma uma tese anterior, um esquema prévio, um plano de observação; ela mostra, demonstrando; ela hierarquiza as aparências; ela transforma o imediato; ela reconstrói o real após ter reconstruído os seus esquemas". A passagem da observação à experimentação torna o conhecimento mais polémico, porque o fenómeno observado passa a ser "escolhido, filtrado, depurado, vazado no molde dos instrumentos, produzido no plano dos instrumentos". Quando se confronta com o problema desta intervenção material dos instrumentos na produção dos conceitos, a filosofia dos filósofos pensa-a como "mediação" não essencial e classifica-a pela categoria geral e vaga de "método experimental", especificação para "uso dos cientistas" da categoria filosófica de experiência. Isto significa que a filosofia dos filósofos é incapaz de compreender que, doravante, um conceito deve integrar na sua unidade de conceito as condições da sua realização. A noção de método e a categoria filosófica de experiência são definitivamente solidárias do par conceptual abstracto-concreto. Ora, a prática da fenomenotécnica consiste precisamente em constituir pares entre o abstracto e o concreto, por meio do afinamento de instrumentos teoricamente definidos e da montagem de aparelhos técnicos segundo programas de realização racional ou de realização do matemático: a fenomenotécnica reforça o que transparece sob o que aparece e instrui-se pelo que constrói. Assim, os "objectos da ciência", longe de serem pobres abstracções extraídas da riqueza do concreto, são os produtos teoricamente regrados e materialmente ordenados de um trabalho teórico e técnico que lhes confere toda a riqueza das determinações do conceito e toda a sensibilidade das precisões experimentais. São, portanto, objectos "abstractos-concretos": "A razão taumaturga traça os seus quadros sobre o esquema dos seus milagres. A ciência suscita um mundo, não mais por um impulso mágico, imanente à realidade, mas antes por um impulso racional, imanente ao espírito. Após ter formado, nos primeiros esforços do espírito científico, uma razão à imagem do mundo, a actividade espiritual da ciência moderna dedica-se a construir um mundo à imagem da razão. A actividade científica realiza plenamente conjuntos racionais". Esta revolução epistemológica deriva da microfísica e requer a substituição da fenomenologia por uma numenologia, isto é, por uma organização de objectos de pensamento: "Os objectos de pensamento tornam-se, por consequência, objectos de experiências técnicas, num puro artificialismo da experiência".
Bachelard assinala a ruptura epistemológica, operada pelo novo espírito científico, entre o conhecimento comum e o conhecimento científico, determinando a constituição deste "tecido de erros resistentes" com que as novas ciências "rompem". Deste modo, Bachelard detectou a relação imaginária que o cientista mantém com a sua própria prática científica e, para demolir esta relação mediada pela filosofia dos filósofos, ensaiou duas vias: uma via pedagógica que, pondo em causa o ensino científico e filosófico, reclama uma reforma radical do ensino, e a via da psicanálise do conhecimento objectivo, cuja função é defender os cientistas das miragens filosóficas e ajudá-los na transparente filosofia da sua prática científica real. Ambas as vias não se excluem; pelo contrário, são "complementares". Denunciá-las como vias psicologistas é esquecer que Bachelard foi o primeiro filósofo da ciência a descobrir o carácter social do conhecimento, mais precisamente a chamar a atenção para a organização social da ciência contemporânea: o aparecimento do "teórico não solitário" corresponde ao surgimento da "cidade teórica" e da "sociedade técnica". A "socialização" da ciência, exemplificada a partir da socialização dos químicos, implica uma nova noção de objectividade científica: "Objectividade racional, objectividade técnica e objectividade social, eis três caracteres doravante fortemente ligados. Se esquecermos um só que seja dos caracteres da cultura científica moderna, entramos no domínio da utopia". Immanuel Kant defendeu a ideia de que a natureza conforme a conhecemos, com a sua ordem e as suas leis, é o resultado das actividades de assimilação e de ordenação da nossa mente: "O nosso entendimento não deriva as suas leis da natureza, mas impõe leis à natureza". Nesta fórmula está resumida a ideia que o próprio Kant baptizou como a sua revolução copernicana. Afirmar que o cosmos traz a marca da nossa mente é o mesmo que acentuar a função activa do observador humano, ao mesmo tempo que ajuda a solucionar o problema humano originado na revolução de Copérnico pelo afastamento do homem da posição central que ocupava no universo físico: Kant não só mostra que a nossa posição no cosmos é irrelevante, como também nos ensina que podemos continuar a dizer que o universo gira à nossa volta, visto que somos nós que criamos, pelo menos em parte, a ordem nele descoberta, e produzimos o conhecimento que temos do universo. Bachelard não se afasta muito deste racionalismo kantiano: "O espírito pode mudar de metafísica; mas não pode passar sem metafísica". Uma forma elegante de dizer que a arte da descoberta é, de certo modo, um acto de criação teórica e técnica. (FIM da série.)
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Prós e Contras: Casamento Homossexual

«A relação entre os cônjuges é uma relação de igualdade da posse, tanto das pessoas que se possuem reciprocamente, como também dos bens patrimoniais, tendo porém os cônjuges relativamente a estes a possibilidade de renunciar ao uso de uma parte deles, se bem que somente mediante um contrato especial». (Immanuel Kant)
O debate Prós e Contras (16 de Fevereiro de 2009) foi sobre o casamento homossexual, mais precisamente sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Fátima Campos Ferreira apresentou-o como um debate sobre cidadania, travado "em nome de valores" e enquadrado numa "dimensão social" mais vasta, sendo talvez induzida em erro crasso pelo facto dos bispos portugueses terem contestado o casamento homossexual em nome de valores. A posição do Partido Socialista a favor do casamento homossexual não deve ser vista como uma resposta "com novos fundamentos éticos", pelo menos ao nível da "ideologia política" que pretende protagonizar na cena política da vida portuguesa: a sua posição é política e, enquanto tal, visa garantir a liberdade e a igualdade de todos os portugueses, sobretudo das minorias eróticas.
O debate foi francamente medíocre e, salvo raras excepções, quase todos os participantes revelaram desconhecimento total da "matéria". Quando um dos "advogados do contra" desafiou o público adversário a mencionar um único estudo sobre a adopção de crianças por parte de casais homossexuais, nenhum dos presentes respondeu ao desafio. Ora, existem largas centenas de estudos científicos que demonstraram que as crianças adoptadas ou criadas por pais do mesmo sexo apresentavam funcionamento emocional, cognitivo, social e sexual tão bom quanto as crianças criadas por pais heterossexuais (Perrin, Ellen C., 2002; Lambert, S., 2005: Navarro, F., et al., 2004). A American Academy of Pediatrics reconheceu esse facto científico: os casais homossexuais são tão bons quanto os casais heterossexuais a amar as suas crianças e, por isso, podem adoptar e cuidar de crianças (Pawelski, James G., et al., 2006). José Luís Gala carece de conhecimentos e de competências para representar a União das Famílias Portuguesas: o desenvolvimento óptimo das crianças é mais influenciado pela qualidade e pela natureza das relações e das interacções dentro da família do que pela forma estrutural familiar. Este é um dado adquirido pela pediatria e pela psiquiatria infantil: recorrer a Freud, como fez outro advogado do contra (Eduardo Nogueira Pinto), para tentar desqualificar a qualidade parental dos indivíduos homossexuais, mostra não só desconhecimento da teoria subtil de Freud e das suas derivações teóricas (a teoria da vinculação de John Bowlby), como também e fundamentalmente "preconceito sexual", que alguns apelidaram de homofobia (Carlos Pamplona Côrte-Real). Seria fácil demonstrar a ausência de conhecimentos exibida pela maior parte dos participantes, acrescentando, uma após outra, muitas lacunas e mentiras levianas detectadas ao longo do debate: os portugueses estão completamente viciados na emissão patética e doentia de opinião, revestida de papéis de embrulho caseiro pseudo-científico, sobre matérias que desconhecem. Opinam sem conhecimento de causa e, por isso, são naturalmente inclinados a debater os assuntos no plano dos valores, embora fossem incapazes de definir os valores e delimitar as suas problemáticas no caso de serem interpelados a esse propósito.
Mas, em vez de seguir a via da denúncia da ignorância activa dos portugueses, prefiro reconstruir livremente os argumentos dos dois partidos, usando uma outra terminologia cientificamente mais adequada ao tema: o partido dos advogados do contra e o partido dos defensores do casamento homossexual, porquanto a questão fundamental em debate foi sempre a mesma: "Quem é a favor? Quem está contra?". Os excesso de participantes juristas e de advogados desvirtuou completamente o debate: o Direito e o seu suplemento de ideologia moral ou religiosa são insuficientes para fundamentar qualquer estratégia de argumentação, até porque não são "eternos", podendo ser alterados em função de novas políticas de mudança social qualitativa.
Partido do Contra. Os advogados que argumentaram contra o casamento homossexual apropriaram-se, pelo facto de serem "heterossexuais", um "facto" não testado por métodos de observação fidedignos, do poder exclusivo da definição oficial da realidade: o casamento é, "por essência, uma instituição heterossexual", portanto, uma instituição que implica necessariamente a "dualidade dos sexos". Um homem e uma mulher unem-se pelos laços matrimoniais para procriar e, deste modo, assegurar a sobrevivência e a renovação da vida e da sociedade (Pedro Vaz Patto). A função desta "unidade das diferenças sexuais" é a procriação e a educação dos filhos. A valorização da procriação implica, nesta perspectiva funcionalista, a proibição legal da "redefinição do casamento" e da sua extensão aos casais homossexuais. O padre jesuíta António Vaz Pinto reforçou esta ideia, alegando que o casamento é "anterior ao Estado" (e também à Igreja Católica!) e que, como "realidade biológica", tem a função de "garantir a continuação da vida e da sociedade". E, como os casais homossexuais são "estéreis", o Estado deve negar-lhes o acesso ao casamento civil. Os cristãos não vivem somente na "cidade de Deus", mas também na "cidade dos homens", na qual participam com a sua perspectiva da sociedade, neste caso particular, lutando contra o reconhecimento legal do casamento homossexual. Paradoxalmente, o padre jesuíta defendeu, em nome do humanismo, a comunhão sexual (commercium sexuale) homossexual segundo a mera natureza animal (vaga libido, fornicatio), negando-lhes uma vida digna, a do casamento segundo a lei. Isto significa animalizar os indivíduos homossexuais e negar os seus "direitos humanos": em vez de humanismo, temos terrorismo anti-homossexual, o qual justifica e legitima a promiscuidade sexual. Aproveitando esta linha de argumentação inumana, Rui Castro reclamou o liberalismo caduco: o "Estado não tem de se intrometer na vida das pessoas", isto é, o "Estado não tem de se meter na cama de ninguém", mas, pelos vistos, deve garantir a perpetuidade da definição heterosexista. Pinheiro Torres considera que a introdução do casamento homossexual na agenda política é uma manobra de "distracção para um Primeiro-Ministro desesperado". Eduardo Nogueira Pinto e José Luís Gala suspeitam que "a seguir vem a adopção de crianças por parte de casais homossexuais e depois a eutanásia". De acordo com esta perspectiva conservadora, "a família está em perigo", não a família na sua diversidade real, tal como a conhecemos na nossa vida diária, mas sim a família tal como "deve ser" na sua perspectiva totalitária e arrogante.
Estes argumentos da Direita reaccionária carecem de qualquer tipo de fundamentação científica, filosófica e ética. Os estudos científicos e a visão humanista desmentem cabalmente os supostos "dados" em que os advogados do contra fundamentam a sua causa, ao mesmo tempo que desmistificam os preconceitos ideológicos que viciam mortalmente a sua argumentação. Um desses preconceitos é o heterosexismo, o grande responsável pela estigmatização social e perseguição histórica dos indivíduos homossexuais. Nesta perspectiva ideológica, os homossexuais são vistos como criaturas "anormais" (José Luís Gala) e "não-funcionais", e depois reduzidos à orientação sexual, ou seja, são tratados como "coisas" e não como pessoas humanas. O indivíduo homossexual é muito mais do que a sua atracção sexual e erótica: é uma pessoa integral. A concepção reificadora e fragmentadora da homossexualidade é simultaneamente conservadora e totalitária, esquecendo por má-fé que as pessoas que sentem atracção erótica por parceiros do mesmo sexo são funcionais, em termos anatómicos, fisiológicos e psicológicos, e saudáveis, em termos de saúde mental: não são estéreis, como alegou erradamente o padre jesuíta, cujo celibato invalida a sua própria argumentação, como demonstrou W. Reich. De facto, até mesmo em Portugal, sobretudo em Portugal, um número significativo de homens homossexuais e de lésbicas casam-se heterossexualmente e geram filhos. Além disso, os maiores crimes cometidos contra a humanidade e as neuropatias mais inumanas e cruéis, tais como o homicídio, o incesto, a pedofilia, o abuso sexual, físico e psicológico, a violência doméstica, a negligência parental ou a violação, pertencem aos homens heterossexuais, cuja homofobia pode ser sintoma de uma homossexualidade latente ou aprisionada, como mostraram estudos falométricos e estudos que mediram a excitação sexual: os indivíduos homofóbicos reagem com erecção do pénis a estímulos sexuais do mesmo sexo. E, para mal dos seus pecados mortais, os casais heterossexuais geram filhos homossexuais, muitos dos quais são maltratados pelos seus pais (Balsam, K.F., et al., 2005). Pais intolerantes e incapazes de se colocar na posição dos outros diferentes, mesmo que estes sejam os seus filhos, convertem-se em carrascos ao serviço de uma sociedade ficcionista: o discurso irracional dos advogados do contra foi um discurso do medo e do terror e o seu público adepto limitou-se a "chiar com muita raiva", conforme observou Isabel Moreira. Segundo Weinberg, o cientista que elaborou a teoria da homofobia, à qual sucedeu a teoria do preconceito sexual de Herek (1991), a homofobia deve ser objecto de tratamento psiquiátrico (Weinberg): doentes deste calibre não devem ter acesso à esfera pública enquanto não estiverem curados das suas perturbações homofóbicas. A homofobia foi definida como o temor de estar na proximidade física de homens gay e de lésbicas (Weinberg, 1972) ou como o medo e o desconforto que os heterossexuais experienciam na presença de pessoas homossexuais. As variáveis sociais associadas a elevado grau de homofobia são, entre outras, "ser politicamente conservador", não conhecer pessoalmente indivíduos homossexuais assumidos e ter um intenso envolvimento com a religião (Lingiardi, V., et al., 2005).
Partido a Favor. José Ribeiro (Homossexuais Católicos) neutralizou a argumentação do padre jesuíta, sem no entanto referir que muitos "pastores" da Igreja Católica são homossexuais activos que, no exercício das suas funções pastorais, violam constantemente os sacramentos: a Igreja Católica condena os seus homossexuais a uma vida clandestina, vedando-lhes o futuro e forçando-os a terem uma vida dupla, uma vida visível falsa e uma vida invisível obscura e, frequentemente, propensa a certos "desvios", tais como o da pedofilia. Isabel Moreira ajudou a demolir os argumentos da esterilidade e da "natureza das coisas", recordando que o direito de contrair casamento e o direito de constituir família são direitos distintos e que o acesso dos casais homossexuais ao casamento civil, não ao matrimónio como sacramento, evidentemente, "cumpre" a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o seu artigo 13, nº 2, que não permite a discriminação em função da orientação sexual, salvaguardando assim a dignidade da minoria homossexual: "o seu espaço de não intervenção alheia". Porém, este discurso jurídico assustou Miguel Vale de Almeida, que preferiu acentuar a história de sofrimento e de exclusão social dos homossexuais: uma minoria profundamente ferida nos seus afectos e nas suas sexualidades. O mundo é composto por homens e mulheres e, das suas combinações eróticas possíveis, resulta uma pluralidade de orientações sexuais e de atracções eróticas. Fernanda Câncio lembrou que as uniões de facto já são reconhecidas legalmente desde 2001 e Paulo Côrte-Real frisou que "os preconceitos não devem ser lei". O que está aqui em causa é simplesmente o acesso à dignidade do casamento civil por parte dos casais homossexuais: a lei não pode negar aos homossexuais a liberdade para casar com "pessoas do mesmo sexo", até porque, como afirmou Carlos Pamplona Côrte-Real, o casamento não é um contrato, como supunha Kant adulterado pelos advogados do contra, mas sim um "encontro de vontades". Pelo casamento, os indivíduos livres e adultos concedem ao seu cônjuge o estatuto de "parente em 1º grau" (Rui Tavares) e confiam-lhe a "gestão" dos cuidados, dos afectos e do património. Os advogados do contra não têm o direito de "querer meter-se na cama dos outros" (Daniel Oliveira), negando-lhes o acesso ao casamento civil, não por razões de "natureza vinculativa", mas por razões de natureza "imbecil e homofóbica", como mostrou Pamplona Côrte-Real contra o discurso de Pinheiro Torres. Em nome da sua suposta heterossexualidade, os advogados do contra negam a liberdade e a igualdade de acesso ao casamento civil por parte dos casais homossexuais, fazendo dos seus preconceitos sexuais leis castradoras que negam a um milhão de homossexuais portugueses o acesso à dignidade do casamento civil e dos múltiplos benefícios que dele derivam, incluindo a saúde. Tal como os heterossexuais, os homossexuais têm direito de construir de modo digno as suas vidas e o Estado deve garantir-lhes o exercício pleno desse direito, contra a intolerância dos heterosexistas. Mesmo sem terem elaborado um discurso original e fundamentado, os defensores do casamento homossexual venceram o debate: os irracionalistas da oposição homofóbica fizerem uma triste figura. Enfim, conforme disse Pamplona Côrte-Real, produziram um discurso "imbecil e homofóbico".
J Francisco Saraiva de Sousa