sábado, 29 de novembro de 2008

Amputação e Transexualismo (II)

CID-10 define o transexualismo como "um desejo de viver e ser aceite como um membro do sexo oposto, geralmente acompanhado por uma sensação de desconforto ou impropriedade do seu próprio sexo anatómico e um desejo de se submeter a tratamento hormonal e a cirurgia para tornar o seu corpo tão congruente quanto possível com o sexo preferido". Esta perturbação da identidade sexual é distinta do transvestismo de duplo papel: "O uso de roupas do sexo oposto durante parte da existência para desfrutar a experiência temporária de ser membro do sexo oposto, mas sem qualquer desejo de uma mudança de sexo mais permanente ou de redesignação sexual cirúrgica associada". Como nenhuma excitação sexual acompanha a troca de roupas, esta perturbação é distinta da perturbação (heterossexual) do fetichismo trasvestido. O transexualismo é, pois, caracterizado pelo desconforto persistente acerca do sexo atribuído e por uma forte identificação com o sexo oposto, isto é, pela identificação de género cruzada intensa e persistente. Os transexuais são pessoas cuja identidade de género está em conflito com o seu sexo genético e com a sua aparência física. Eles sentem-se prisioneiros num corpo de "sexo errado" e, por isso, procuram mudar a sua aparência física para adquirir a semelhança corporal do sexo oposto.
Em Portugal e, de um modo geral, nos países latinos (Itália, Espanha, Brasil), o transexualismo está exclusivamente associado à homossexualidade, no sentido dos transexuais macho-para-fêmea ou fêmea-para-macho serem atraídos por parceiros do seu próprio "sexo genético". Contudo, nem todos os indivíduos transexuais são homossexuais. Blanchard (1985, 1988, 1989) propôs que existem dois tipos fundamentamentalmente diferentes de transexualismo: o homossexual e o não-homossexual. Em contraste com os transexuais homossexuais, os transexuais não-homossexuais tendem a ficar sexualmente excitados com o pensamento ou a imagem deles próprios como mulheres. Blanchard (1989) chamou a esta característica disforia de género autoginefílica. A categoria de transexuais macho-para-fêmea homossexuais inclui indivíduos que foram abertamente efeminados durante a infância (infância sexualmente atípica), que são verdadeiramente femininos na vida adulta e que são exclusivamente atraídos sexualmente por homens. A outra categoria de transexuais masculinos não-homossexuais inclui indivíduos que não foram abertamente femininos durante a infância, que não são marcadamente femininos na vida adulta e que não são exclusivamente atraídos por homens (Cohen-Kettenis & Gooren, 1999). Neste grupo, as atracções sexuais variam: atracção sexual por homens, atracção sexual por mulheres, atracção sexual por ambos e atracção sexual por nenhum (assexual). Além disso, os indivíduos da segunda categoria relatam uma história de fetichismo trasvestido ou excitação sexual com cross-dressing (Blanchard, 1985; Blanchard, Clemmensen & Steiner, 1987).
Estes dois tipos de transexualismo masculino têm etiologias diferentes. Os estudos sobre a ordem de nascimento e a "sibling sex ratio" (Blanchard, 2001) mostraram que, nos homens, a orientação sexual e o número de irmãos mais velhos estão correlacionadas, embora o número de irmãs mais velhas não esteja associada à orientação sexual. Os transexuais homossexuais têm um excesso de irmãos mais velhos, ao passo que os transexuais não-homossexuais não manifestam nenhum excesso de irmãos mais velhos. Blanchard (1997, 2001) atribuiu este efeito à progressiva imunização das mães em relação aos "Y-linked minor histocompatibility antigens": os anticorpos das mães atravessam a barreira placental, entram no cérebro fetal e impedem a diferenciação sexual do cérebro numa direcção tipicamente masculina. Como a imunização maternal aumenta com a sucessão de gravidezes masculinas, a probabilidade de homossexualidade aumenta nos filhos nascidos mais tarde. Mais recentemente, Henningsson et al. (2005) descobriram três polimorfismos genéticos associados ao transexualismo que envolvem, numa combinação determinada, o gene receptor de androgénios (AR gene), o gene da aromatase (a aromatase aromatiza a testosterona, convertendo-a em estradiol) e o gene receptor beta de estrogénios (ERbeta), cujo alelo longo parece aumentar a susceptibilidade ao transexualismo, desde que o gene AR tenha um nível menor de actividade, sobretudo no núcleo do leito da stria terminalis, responsável pela identidade de género (Zhou et al., 1995; Kruijver et al., 2000). Os estudos com animais, em especial carneiros, demonstraram a importância da aromatização da testosterona em estradiol na motivação sexual e na preferência de parceiro sexual: os carneiros homossexuais exibem baixos níveis de actividade da aromatase na área preóptica medial quando comparados com os carneiros heterossexuais (Roselli et al., 2002) e os ratinhos "aromatase knockout" exibem comportamento sexual alterado (Bakker et al., 2004).
Existem paralelos ou similitudes entre o tipo não-homossexual de transexualismo macho-para-fêmea e o desejo de amputação de um membro saudável (Lawrence, 2006; First, 2004), mas vamos procurar levar em conta as três condições: os dois tipos de transexualismo e o desejo de amputação, comparando-os em função de oito características. As duas primeiras características são partilhadas pelas pessoas que exibem as três condições e as restantes aproximam apenas o transexualismo macho-para-fêmea não-homossexual e o desejo de ser amputado.
1. Desconforto Corporal. Os indivíduos pertencentes às três condições sentem uma profunda insatisfação com os seus corpos que desejam modificar cirurgicamente para adquirir uma configuração corporal mais congruente com o sexo desejado ou a imagem corporal preferida.
2. Simulação. Os transexuais de ambos os tipos e as pessoas que desejam a amputação envolvem-se quase sempre na simulação do seu status ou corpo desejado, usando roupas, próteses e outros apetrechos. No caso dos transexuais, esta simulação é denominada trasvestismo ou "cross-dressing", e, no caso dos indivíduos que desejam ser amputados, "pretending".
3. Cirurgia. Os transexuais homossexuais são muito efeminados na sua aparência e comportamento e, por isso, tendem a assemelhar-se naturalmente com as pessoas com corpos ou status desejados (Whitam, 1987, 1997). Esta semelhança natural leva-os a procurar muito cedo, pelo menos logo no início da idade adulta, cirurgia de mudança de sexo. Os transexuais não-homossexuais e os indivíduos que desejam a amputação do membro não se assemelham com as condições ou status desejados. Os membros destes dois grupos tendem a procurar muito mais tarde, no caso dos transexuais após terem sido casados e criado os filhos (Blanchard, 1989), a cirurgia capaz de lhes dar a forma corporal desejada.
4. Condições Parafílicas Específicas. As similaridades entre os transexuais não-homossexuais e as pessoas que desejam a amputação envolvem a presença de características parafílicas específicas que estão praticamente ausentes nos transexuais homossexuais. Cada uma destas condições constituem desenvolvimentos dessas parafilias: os transexuais não-homossexuais exibem um interesse sexual parafílico chamado autoginefilia que Blanchard (1989) definiu como "a propensão de um homem ficar sexualmente excitado com o pensamento ou imagem de si próprio como uma fêmea". As pessoas que desejam ser amputadas desenvolvem também um interesse sexual parafílico chamado acrotomofilia: excitam-se sexualmente com a ideia de ser um amputado. Estas parafilias podem estar na origem do desejo de se submeterem posteriormente a cirurgia.
5. Excitação Sexual. Os transexuais não-homossexuais excitam-se sexualmente com a simulação do corpo ou status desejados através do cross-dressing, mas o mesmo não acontece com os transexuais homossexuais que não se excitam com o cross-dressing. As pessoas que desejam ser amputadas relatam frequentemente que ficam sexualmente excitadas quando pretendem ou simulam ser um amputado ("pretending").
6. Atracção Sexual. As pessoas com estas duas condições são sexualmente atraídas por indivíduos com o mesmo tipo de corpo que querem adquirir, o que não sucede no caso dos transexuais homossexuais. Os transexuais masculinos homossexuais são andrófilos, os transexuais masculinos não-homossexuais são autoginéfilos e os pretenders são acrotomófilos.
7. Interesses Parafílicos. As condições do transexualismo macho-para-fêmea não-homossexual e o desejo pela amputação estão associadas a uma elevada prevalência de outros interesses parafílicos. Os transexuais não-homossexuais têm invariavelmente uma história de fetichismo travestista (Blanchard, 1985) e alguns exibem comportamentos e fantasias sadomasoquistas (Bolin, 1988). O estudo de First (2005) revelou que as pessoas que desejam ser amputadas usam frequentemente a metáfora do "corpo errado" para justificar o seu desejo de ser amputadas: elas acreditam que querem a amputação porque vivem numa "forma corporal errada" (Furth & Smith, 2000).
8. Recusa da Explicação Parafílica. Os transexuais macho-para-fêmea não-homossexuais e os indivíduos que desejam a amputação do membro consideram que as explicações baseadas na parafilia não descrevem adequada e completamente as suas experiências. Os transexuais insistem que os seus desejos de mudança de sexo expressam primariamente as suas "verdadeiras identidades" (Lawrence, 2005) e as pessoas que desejam a amputação do membro afirmam que a motivação primária que as leva a procurar a amputação é a aquisição de congruência entre os seus corpos e as identidades preferidas (First, 2005).
Nas três condições, quase todos os indivíduos afectados experienciam uma profunda insatisfação com os seus corpos, o que os leva a desejar modificá-los cirurgicamente para construir corpos mais aceitáveis e congruentes com as suas "verdadeiras identidades". A modificação cirúrgica do corpo implica necessariamente uma amputação que, no caso dos transexuais, é a remoção dos órgãos genitais masculinos (castração cirúrgica) e a sua transformação numa neovagina construída cirurgicamente (vaginoplastia): o uso frequente de vibradores é recomentado para manter a nova passagem vaginal limpa e aberta e evitar o seu colapso. Nas três condições, a cirurgia parece ser uma solução efectiva para estes indivíduos que experienciam um desejo inusitado para transformar os seus corpos. Porém, este desejo de modificar a sua actual identidade corporal e de adquirir um outro corpo mais congruente com a "identidade verdadeira" pode ser visto como uma consequência da sexualidade parafílica. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Amputação e Transexualismo (I)

Money et al. (1977) elaboraram o conceito de apotemnofilia para descrever uma parafilia relatada, pela primeira vez, em 1785, por Sue: o desejo pela amputação de um membro saudável. Esta condição está associada a sérias consequências negativas: tentativas de amputação, incapacidade e elevada ansiedade. Contudo, mais recentemente, foram propostas outras designações que reflectem uma mudança de perspectiva teórica: Amputer Identity Disorder (Furth & Smith, 2000) e Body Integrity Identity Disorder (First, 2005). Estas últimas designações procuram, com base nas similaridades existentes entre a perturbação da identidade de género (GID) e o desejo pela amputação, conceptualizar a última condição como uma disfunção extrema no desenvolvimento da própria identidade corporal. Isto significa que, tal como a perturbação da identidade de género representa uma disfunção no desenvolvimento da identidade de género, o desejo pela amputação pode ser pensado como representando uma disfunção particular do desenvolvimento da própria identidade corporal. As fenomenologias destas duas perturbações apresentam muitas características comuns ou similares. Em ambas as perturbações, as pessoas, mais os homens do que as mulheres, relatam sentimentos de desconforto com um aspecto da sua identidade anatómica (Género no GID, presença de Todos os membros no desejo de amputação), com um sentido interno da identidade desejada (ser do outro sexo na GID, ser um amputado no desejo de amputação). Além disso, estas duas condições iniciam-se na infância ou na adolescência precoce, os tratamentos por cirurgia são bem-sucedidos, a imitação ou simulação da identidade desejada é frequente (travestismo na GID, pretending a ser um amputado no desejo de amputação) e a excitação sexual parafílica de ser a identidade desejada (autoginefilia na GID, apotemnofilia no desejo de amputação).
Freund & Blanchard (1993) propuseram que o transexualismo macho-para-fêmea constitui um erro de localização do alvo erótico: os homens transexuais não-homossexuais que preferem mulheres como alvos eróticos erotizam os seus próprios corpos feminilizados. Ora, de acordo com esta perspectiva, o desejo de amputação de um membro saudável, incluindo o próprio pénis, também pode reflectir um erro de localização do alvo erótico, o qual ocorre em conjugação com uma preferência invulgar por amputados como alvos eróticos. Este modelo prediz que as pessoas que desejam a amputação do membro saudável são quase sempre atraídas por amputados e exibem uma prevalência elevada de problemas de identidade de género. As pessoas que desejam a amputação do membro saudável e os transexuais macho-para-fêmea não-homossexuais asseveram frequentemente que os motivos que as levam a querer mudar os seus corpos reflectem mais problemas de identidade do que problemas de sexualidade. Porém, dado as orientações erótico-românticas contribuírem significativamente para a construção da identidade, estas distinções podem não ser muito importantes. As similaridades entre as duas condições incluem profunda insatisfação com o próprio corpo, parafilias relativas às condições das quais derivam (apotemnofilia e autoginefilia), excitação sexual produzida pela simulação do status corporal desejado (pretender ou simular ser um amputado e travestismo), atracção erótica por pessoas que tenham o mesmo tipo de corpo que querem adquirir e uma prevalência elevada de outros interesses parafílicos.
Apotemnofilia. Os indivíduos que desejam sofrer e sujeitar-se à amputação de um membro saudável experienciam um desejo intenso ou uma compulsão irresistível para transformar os seus corpos de modo a realizar as imagens idealizadas de si mesmos como seres amputados. Descrevem os seus sentimentos como tendo sido vividos precocemente na vida, geralmente antes da puberdade, e alguns auto-amputaram-se. Referem-se a si mesmos como "wannabes" (Bruno, 1997; Duncan, 2002) e a sua condição é, algumas vezes, chamada "wannabeism". A maior parte destes indivíduos diz ficar sexualmente excitada com a ideia de ser amputado (Elliott, 2003), e muitos são tentados a corrigir a discrepância entre os seus actuais corpos e as suas "verdadeiras identidades". Diversas motivações para desejar uma amputação foram descritas. As tentativas de amputação podem ser compreendidas como manifestações de outras perturbações mentais, tais como as perturbações de humor ou perturbações psicóticas. Stewart & Lowrey (1980) descobriram que a amputação estava associada a depressão grave: as mulheres com depressão amputaram ambas as mãos. Neste caso, a amputação foi usada como um método de suicídio. Hall et al. (1981) descreveram homens que tinham amputado uma mão e o pénis devido a alucinações auditivas e a ilusões de culpa percebidas como transgressões sexuais. Money et al. (1977) descreveram dois casos de indivíduos que desejavam ser amputados por causa da ideia de ser um amputado despertar neles excitação sexual. Furth & Smith (2000) verificaram que muitas pessoas encaram a amputação como um modo de alcançar um "sentimento completo" de si mesmos.
Este desejo pela amputação é geralmente acompanhado por outros interesses e comportamentos invulgares: atracção sexual por amputados como parceiros sexuais e românticos (1) e excitação sexual obtida através da simulação de ser amputado (2). A atracção por amputados foi chamada amelotatismo (Dixon, 1983) ou acrotomofilia (Money, 1986) e os indivíduos que sentem esta atracção foram denominados "devotees" (Bruno, 1997; Riddle, 1989) ou "amelotatists" (Nattress, 1996). Além disso, existem muitos indivíduos cuja excitação sexual explícita deriva da experiência de simular ou pretender ser amputados: a sua condição é chamada "pretending" e os seus praticantes são os "pretenders" (Bruno, 1997). Esta condição está geralmente associada a acrotomofilia e, por vezes, a apotemnofilia. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Prós e Contras: Avaliação: Simplificação ou Suspensão?

Estou verdadeiramente chocado e envergonhado com este debate (24 de Novembro de 2008) em torno da avaliação de desempenho dos professores e, perante o actual cenário de inércia mental e regressão cognitiva, a questão que dá título ao programa de hoje não faz sentido: o processo de avaliação está simplesmente parado e o que está parado não pode ser simplificado ou suspenso. Aliás, Portugal está completa e transversalmente paralisado: a doença que o paralisa é a corrupção do elemento humano. O maior inimigo de Portugal e do seu futuro são os próprios portugueses.
O começo da primeira parte foi um confronto entre duas figuras rígidas e dispensáveis: Jorge Pedreira, secretário de Estado adjunto, e Mário Nogueira, sindicalista. As outras duas convidadas no palco pouco acrescentaram ao debate, embora Maria do Céu Roldão fosse intelectualmente mais vigorosa do que Maria do Rosário Gama. Jorge Pedreira e Maria do Céu Roldão defenderam a necessidade de implementar a avaliação, de modo a combater aquilo a que chamam a "cultura da indiferenciação e da diluição de responsabilidades". Mário Nogueira e Maria do Rosário Gama defenderam a suspensão da avaliação. Dois blocos que chocam frontalmente, deixando em suspenso aquilo que verdadeiramente interessa: a defesa da escola pública, da qualidade de ensino, da educação cívica e da formação dos alunos. Porém, a intervenção de Mário Nogueira foi de tal modo inapropriada que é preciso recordar que o governo tem legitimidade democrática para governar e tomar decisões e, neste caso especial, o poder político responsável deve afastar o sindicalista da esfera pública. Se não fosse a intervenção interessante e moderada de três ou quatro professoras da plateia, o programa teria sido um fracasso total. Fátima Campos Ferreira reconheceu-o implicitamente quando, na segunda parte, observou que ainda existiam "tantas dúvidas", mas errou quando no final convidou o secretário a escutar a proposta sindical. As professoras da plateia chamaram a atenção para outras questões que tornaram o "clima nas escolas insuportável e degradado", entre as quais o estatuto da carreira docente e a figura bizarra do professor titular. O resultado destas burocracias impostas pelos ministérios da educação ao longo das mais diversas "conjunturas" ou flutuações políticas irracionais é que o professor, em vez de preparar as aulas e cuidar do seu desempenho científico, se dedica a reuniões de avaliação, ao preenchimento de papelada inútil e à preparação do portefólio da sua avaliação. O professor é reduzido a um funcionário que executa tarefas burocráticas repetitivas, mecânicas, monótonas e automáticas. No entanto, os professores não podem queixar-se, porque nunca fizeram nada para travar este processo de burocratização que matou a escola portuguesa nos últimos 30 anos. A figura do professor titular e a avaliação burocrática não são verdadeiras reformas, porque consumam essa doença burocrática que expulsou das escolas o ensino e a educação. Os professores desaprenderam a avaliar os seus próprios alunos e, por isso, desconfiam do modelo de avaliação imposto pelo ministério. De certo modo, "não reconhecem a competência dos avaliadores", porque eles próprios não são competentes e não acreditam nos seus conhecimentos e faculdades mentais. A competência ausentou-se das escolas portuguesas. E, sem competências, não há nada para avaliar com competência: avaliadores e avaliados são farinha do mesmo saco da mediocridade e da insanidade mental. A escola portuguesa, pública e privada, é simplesmente um caos monstruoso: em vez de cidadãos competentes, produz monstros. E, neste processo, ninguém "sai com a cara lavada", como desejou uma professora da plateia: o próprio processo é uma vergonha nacional que desautoriza os professores, mostrando publicamente a sua incapacidade cognitiva como agentes culturais. Podem lavar as caras mas não vão conseguir desembaraçar-se da vergonha que está estampada nas suas caras feias e néscias.
O governo socialista deve reconhecer que "falhou" redondamente nas reformas da educação, porque a escola que pretendia reformar não existe há cerca de 30 anos. O 25 de Abril de 1974 prometeu a implementação da democracia e a defesa da liberdade e da justiça, tudo aquilo que o regime anterior tinha negado aos portugueses. O cumprimento desta promessa pode ser examinado em função da avaliação dos seus resultados por comparação com os do regime anterior. A actual situação de crise financeira e o seu impacto sobre Portugal está a revelar os meandros da corrupção nacional generalizada: O Portugal pós-25 de Abril tornou-se paulatinamente um país mafioso e corrupto. A corrupção é particularmente evidente nas esferas das elites políticas, económicas e comunicativas, as quais perderam credibilidade diante do resto da população. A sua avaliação foi um fracasso total. Carecem de autoridade para exigir aquilo que elas próprias não são: dirigentes políticos, gestores e jornalistas com mérito. Qualquer tipo de avaliação num país profundamente corrupto e entregue a máfias ladras é uma burla: Portugal nunca escolheu os membros das suas elites pelo mérito e pela competência, mas, em vez disso, pelo grau de parentesco, pela cunha, pelos padrinhos, pelo tráfego de influências, por favores sexuais, pela cor política ou religiosa, enfim pela mediocridade. Ora, as Universidades Portuguesas foram as primeiras instituições a ser invadidas por pessoas sem mérito e destituídas de inteligência criativa, que passam arbitrariamente diplomas a alunos que nunca leram um livro e que, após a obtenção do diploma, começam a ensinar aquilo que nunca aprenderam durante o seu curso, aliás um fraco reforço do ensino secundário. A mediocridade tomou conta de todos os níveis do sistema de ensino. Aquilo a que chamaram indiferenciação mais não é do que a cloaca de comportamentos insanos e histriónicos. Muitos professores/manifestantes não respondem racionalmente às questões dos jornalistas, não por "temer represálias", como foi insinuado no programa, mas porque desconhecem "aquilo" em nome do qual fazem manifestações públicas ruidosas. Não querem ser avaliados, porque temem perder completamente credibilidade diante dos portugueses: o colectivo inerte dos professores perdeu toda a credibilidade; aliás, os professores são quimeras que já não existem pura e simplesmente. Em qualquer espaço público, estas criaturas marcam presença, a presença dos gritos, da má-educação e do disparate interminável. É assim que os portugueses vêem os professores: como pessoas destituídas de mérito, como parasitas, como incompetentes, como ignorantes, como criaturas imorais, enfim como alvos fáceis da chacota e da utilização perversa.
De certo modo, estas tentativas de reformar o sistema de educação foram "bem sucedidas", no sentido de terem revelado que o colectivo de professores constitui uma massa ou um agregado de indivíduos irracionais indiferentes à cultura. O terrorismo escolar mostra a sua essência anti-humana e anti-cultural que sempre-já colonizou o futuro. O sistema pós-25 de Abril produziu anti-professores, anti-alunos, anti-pais, enfim anti-homens. Este colectivo sem qualidades e sem competências invadiu os espaços escolares e converteu-os, pela sua presença, em espaços anti-culturais. Isto significa que o inimigo da educação são os próprios anti-professores e as políticas burocráticas da educação. Cultura e burocracia são duas realidades antagónicas irreconciliáveis: onde predomina uma, a outra está ausente. Sem o momento não-regulamentado da improvisação humana, não há educação: a diferenciação burocrática dos professores é equivalente à indiferenciação burocrática. A figura do professor titular é um monstro burocrático. O "terror" referido por Fátima Campos não vem do exterior mas do interior deste colectivo alargado: o terror é a ignorância activa embrulhada em papel de diplomas, habilitações e falso-currículo; o terror é a guerrilha permanente que se vive diariamente nas "escolas"; o terror é a gritaria dos anti-professores; a terror é a ignorância activa perseguida por este colectivo histriónico; o terror é o abuso de poder; o terror é acreditar que podemos combater o anti-sistema de educação instalado com este colectivo; enfim, o terror é a própria burocracia que destruiu a educação e promoveu a vigarice, a mediocridade, a vida fácil, a insanidade mental, a inveja, a perseguição, o abuso, a inércia mental e a mentira. O terror não é a crise da educação; o terror é a ausência de educação: as falsas-estatísticas do sistema anti-educação e a entrega do futuro aos seus produtos perversa e defeituosamente manufacturados. Portugal é uma terrível mentira e, se esta não for analisada e combatida, o futuro não é adiado mas liquidado. O terror é sabermos que não há futuro em Portugal: a aventura lusitana é um fracasso.
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 23 de novembro de 2008

Subcultura Sadomasoquista e Vocabulário Erótico

O Dicionário Gay/Lésbico Ilustrado português on-line permite-nos compreender o papel que a submissão sexual desempenha na vida sexual dos homens gay portugueses.
Recorrendo aos termos ingleses, o dicionário on-line utiliza uma mesma sigla, BDSM, para designar e classificar as actividades sexuais de "Bondage and Discipline", "Domination and Submission" e "Sadism and Masochism", associando-as a "leather". Para explicitar estes conceitos, o dicionário recorre a uma distinção de fundo entre "Kinky" e "Vanilla". Em português, o termo "Kinky" pode ser traduzido aproximadamente por pervertido ou perversão e é utilizado para designar as "formas pouco comuns de fazer sexo", além do "leather", e, como tal, opõe-se a "Vanilla" (Baunilha), termo utilizado para indicar as "pessoas que preferem o sexo mais ou menos convencional, sem grandes extremos". Com base nesta distinção que retoma a clássica distinção entre a sexualidade normal e as perversões sexuais, o sistema BDSM pode ser incluído ou mesmo identificado com "Kinky" definido em oposição ao "sexo convencional".
De facto, na subcultura bondage e sadomasoquista, ainda pouco representativa em Portugal, os indivíduos percebem as experiências vividas durante a prática da sexual bondage como "prazer sexual intensificado", em comparação com a gratificação obtida com o comportamento sexual convencional ou "sexo baunilha". O sistema BDSM compreende três tipos de conjuntos de actividades sexuais: "Bondage and Discipline" que, na entrada "bondage", o dicionário define como "actos sexuais em que alguém está amarrado ou preso", sem levar em conta que esta prática pode ser satisfatória em si mesma, independentemente de conduzir ou não ao orgasmo; "Domination e Submission" que parece ser diluída no sadomasoquismo; e, finalmente, "Sadism and Masochism" que o dicionário apresenta como "associação de sadismo e masoquismo". O sadismo consiste em "retirar prazer sexual de agredir física ou moralmente alguém (mesmo com o consentimento dessa pessoa), enquanto o masoquismo "consiste em retirar prazer de ser agredido física ou moralmente". Assim, S & M é definido como "tirar prazer sexual do sofrimento próprio (masoquismo) ou de outrem (sadismo)". CID-10 define o sadomasoquismo como "uma preferência por actividade sexual que envolve servidão ou a inflição de dor ou humilhação. Se o indivíduo prefere ser o objecto de tal estimulação, isso é chamado masoquismo; se é o executor, sadismo". De acordo com o DSM-IV-R, o masochismo sexual implica "o acto (real, não simulado) de ser humilhado, agredido, amarrado ou submetido a sofrimento", enquanto o sadismo sexual implica "actos (reais, não simulados) em que o sujeito se excita sexualmente com o sofrimento psicológico ou físico (incluindo a humilhação) da vítima".
É muito difícil encontrar definições que satisfaçam simultaneamente os indivíduos envolvidos nestas práticas sexuais e os seus investigadores. O que podemos dizer é que a expressão "Dominação e Submissão" é usada como uma estrutura-quadro que incluí os outros dois conceitos de B & D e de S & M, bem como um conjunto de outras variações sexuais, tais como o fetichismo e o travestismo, no caso dos comportamentos sexuais resultantes implicarem a troca de poder (exchange of power). Esta parece ser implicitamente a perspectiva dos autores do dicionário on-line. Embora mencionado na entrada BDSM, o termo D & S não aparece definido numa outra entrada autónoma, como se os autores partissem do pressuposto de que o seu sentido é demasiado evidente e conhecido para merecer um esclarecimento adicional. Contudo, existe uma entrada que capta o sentido de D & S: "Role Play" é usado para referir o jogo de "assumir/representar certos papéis durante o sexo", tais como "mestre/escravo", "polícia/prisioneiro" ou "professor/aluno", donde resulta a sua associação ao sistema BDSM ou a "Leather". De facto, BDSM e "Leather" estão intimamente ligados na subcultura gay sadomasoquista. "Leather" é definido como "couro, fetiche por roupas em couro" e está associado a "homens musculados e/ou peludos ("Bear") de aspecto masculino e a sadomasoquismo ou situações humilhantes". Estas situações implicam diversas espécies de fetichismo sexual, que, na perspectiva gay, significa "ter uma atracção sexual particular por um objecto ou parte do corpo". Por extensão, o termo fetichismo sexual é utilizado para designar "qualquer prática sexual menos comum".
Os homens gay portugueses sabem perfeitamente que o sexo é uma relação desigual, que, com base na Dominação e Submissão, se estrutura e se organiza como uma relação entre "mestre e escravo", "polícia e prisioneiro" ou "professor e aluno". Os primeiros elementos destas relações desempenham o papel dominador e activo (introdutor anal), portanto, invasor, enquanto os segundos elementos são reduzidos ao papel submisso e passivo (receptor anal). A relação homossexual é vista predominantemente como uma espécie de violação sexual consentida e os seus participantes são classificados em função do preconceito heterosexista: o parceiro activo vê-se a si mesmo como sendo "menos homossexual" e, portanto, "mais homem", do que o seu parceiro passivo, que é visto como sendo "mais homossexual" e, portanto, "menos homem". Esta diferenciação interna que garante a autonomia e a independência sexual dos homens gay é perspectivada em função da ideologia heterosexista: o homossexual passivo é equiparado a uma "mulher" que é usada e abusada pelo seu "parceiro masculino" ou, como diz o dicionário, de "aspecto masculino". Este preconceito sexual justifica a violência conjugal que pode ser observada frequentemente nos casais homossexuais. Segundo o dicionário on-line, numa sessão sadomasoquista real ou on-line, os participantes são chamados "master" (mestre), termo que identifica os participantes que "controlam e/ou humilham o parceiro (numa acção consentida)", e "slave" (escravo), termo utilizado para identificar os participantes que "são controlados e/ou humilhados pelo parceiro (numa acção consentida)". A relação entre estes dois tipos de parceiros é designada por "masters & slaves" ou "masters & dogs" em função do grau de humilhação. No segundo caso, a humilhação "é maior do que no primeiro caso", porque o indivíduo submisso é tratado "abaixo de cão". "Coisa" e "cu largo" são outras designações dadas aos parceiros submissos e passivos. A referência constante à "acção consentida" é sintomática: a relação homossexual, sobretudo o coito anal, é encarada sistematicamente como "violação consentida" e, portanto, como um acto de humilhação, independentemente de estar associado ou não ao sexo sadomasoquista. Na última situação, os homens gay dominadores agem sob os impulsos sexuais sádicos com um parceiro que o permita e que sofre a dor e a humilhação de livre vontade. Porém, nalguns casos, os impulsos sexuais sádicos podem ser executados com vítimas sob coacção, mas, em todas as situações, o sofrimento da vítima é sexualmente excitante para o parceiro sádico.
O Dicionário Gay/Lésbico Ilustrado português on-line reconhece tacitamente o "esquema tradicional do sexo", subordinando as homossexualidades masculina e feminina à ideologia heterosexista: a homossexualidade, e não apenas o sadomasoquismo, é vista como perversão sexual. A reprodução deste preconceito sexual no seio da ideologia gay torna-se evidente quando o dicionário associa os papéis sexuais aos fetiches, à indumentária e aos materiais utilizados. O dicionário refere nove fetiches: "Hood" (capuz), o "fetiche por capuzes, normalmente em latex ou couro"; "Jock" (atleta/tipo de slips), o "fetiche por equipamento desportivo"; "Leather" (couro), o "fetiche por roupas em couro"; "Scot", o "fetiche por fezes"; "Shaving", o "fetiche por rapar os pêlos corporais, normalmente com lâminas de barbear e com preferência pela área genital e nádegas"; "Spanking", o "fetiche por palmadas, normalmente utilizando utensílios como a colher-de-pau nas nádegas"; "Speedos" (fato de banho do tipo tanga), o "fetiche por fatos de banho"; "Ticking", o "fetiche por cócegas, normalmente com recurso a penas ou plumas"; e "Voyeur" (observador), o "fetiche por observar ou ser observado enquanto se pratica relações sexuais". O dicionário refere três materiais ou dispositivos utilizados nas sessões sadomasoquistas: "CockRing", o "anel em metal, couro ou borracha, colocado na base do pénis para (reforçar e) prolongar a erecção"; "Dildo", "o vibrador ou outro objecto utilizado para estimular (e penetrar) o ânus ou a vagina" no caso das relações lésbicas; e "Toys" (brinquedos), a "utilização de acessórios durante o acto sexual como, por exemplo, os vibradores". "Chem sex" ou sexo químico é o termo utilizado para designar o "sexo com recurso a drogas", em especial os boosters e os poppers muito utilizados nas sessões sadomasoquistas ou de sexo gay em grupo. Embora interditos, os poppers são substâncias inaladas que têm a propriedade de acelerar as pulsações e a capacidade de erecção. As práticas sexuais associadas ao sistema BDSM são, segundo o dicionário, "Chuva Dourada" ou "Watersports", termos usados para referir o acto de "urinar sobre (ou dentro de) alguém, para prazer sexual das partes envolvidas"; "Fistfuck" ou "Fisting", termos utilizados para designar a "penetração anal ou vaginal (no caso das lésbicas), com a mão/braço"; e "fio terra", termo que designa a "penetração de dedos no cu". Estas actividades indicam o controlo de um sujeito sobre o parceiro submisso, cuja fantasia mais comum é ser violado enquanto se encontra preso ou amarrado pelo seu parceiro dominador, sem ter possibilidade de fugir.
Em termos estritamente ideológicos, o dicionário on-line classifica, em última instância, o sistema BDSM como fetichismo sexual, termo que utiliza para designar "qualquer prática sexual menos comum". Isto significa que todas as actividades sexuais e eróticas que não se incluem no "vanilla sexo" (sexo convencional) são encaradas como variações do fetichismo sexual ("Kinky"). O sadomasoquismo é claramente definido como um conjunto de "situações de humilhação" em que os parceiros dominadores e activos tratam os parceiros submissos e passivos como "meros objectos" submetidos e sujeitados aos seus próprios caprichos, mais precisamente aos seus fetiches: os primeiros sentem prazer em humilhar, agredir ou violar os seus parceiros submissos, e estes sentem prazer em ser humilhados, agredidos ou violados pelos seus parceiros dominadores e activos. Duas das quatro facetas do sadomasoquismo são identificadas: a administração e recepção de dor e a humilhação que parecem implicar uma terceira faceta, a da restrição física (bondage). Porém, talvez devido ao grande fetiche dos homens gay portugueses, aquele que os faz pensar que os homens heterossexuais são os "verdadeiros machos" e, por isso, os alvos primários dos seus desejos e fantasias sexuais, a faceta da hipermasculinidade é completamente ignorada, embora o rimming, watersports, fistfucking, scatologia, spanking, chuva dourada, dildo e fio terra, sejam práticas hipermasculinas. Isto significa que os homens gay portugueses se sentem, no seu conjunto, "menos homens" que os homens heterossexuais. E, neste aspecto, o dicionário reflecte uma certa dose de homofobia interiorizada.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Internet Sexual e Experiências de Submissão Sexual

Tradicionalmente, o comportamento sexual tem sido estudado em termos de características individuais e de fases precoces de desenvolvimento e os indivíduos que praticam B & D (Bondage and Discipline), D & S (Dominance and Submission) e S & M (Sadomasochism) foram classificados como parafílicos. Contudo, nas últimas três décadas, o sadomasoquismo foi analisado como um fenómeno social no âmbito de um contexto subcultural: o bem-estar dos indivíduos sadomasoquistas depende do seu nível de integração nas subculturas sadomasoquistas. Weinberg et al. (1984) criticaram severamente os modelos que ignoravam as subculturas sadomasoquistas, as quais fornecem aos seus membros os padrões necessários à definição e à elaboração das suas actividades sexuais. De facto, os clubes sadomasoquistas desempenham um importante papel no desenvolvimento de atitudes de apoio ao sadomasoquismo (Weinberg, 1978). Estas atitudes permitem aos indivíduos integrados na subcultura sadomasoquista justificar os seus desejos sexuais e construir socialmente o seu repertório sexual. Kamel (1983) e Spengler (1977) mostraram que os homens gay estão mais integrados na subcultura sadomasoquista do que os homens heterossexuais: os homens gay afirmam estar satisfeitos com as suas vidas sexuais. A subcultura sadomasoquista gay oferece uma gama diversificada de modelos de papéis e de possibilidades de envolvimento no comportamento sexual (Kamel, 1983) e, ao contrário do que se pensa (Morrison, 1995), os homens gay adoptam frequentemente o papel sádico (Sandnabba et al., 1999), além de exibirem a faceta da hipermasculinidade (Alison et al., 2001). O desenvolvimento do comportamento sexual sadomasoquista inicia-se após a experiência de actividades sexuais "convencionais" e o estabelecimento de uma orientação sexual. As reacções emocionais depois da primeira experiência sadomasoquista foram avaliadas de modo positivo. Apenas os participantes masoquistas reagiram com culpa, talvez devido ao conflito entre a regressão masoquista e as expectativas do papel de género masculino. Muitos indivíduos disseram ficar completamente satisfeitos com o sexo sadomasoquista (Coleman, 1982; Kontula & Haavio-Mannila, 1993; Suppe, 1985). A actividade sadomasoquista não parece estar associada ao abuso extensivo de substâncias antes ou durante a prática de sexo sadomasoquista, embora os homens gay tendam a usar poppers e álcool (Smith et al., 1997), o chamado sexo químico (Chem Sex). (A minha pesquisa dos sites web-cam não confirma estes resultados: os homens nórdicos e anglosaxónicos, independentemente da orientação sexual, abusam do álcool e de poppers ou viagra.) Kamel (1983) defendeu a ideia de que o sadomasoquismo pode ser visto na subcultura gay como uma reacção à insatisfação com o estilo de vida gay predominante.
Toda a relação sexual é, de certo modo, uma relação hierárquica desigual e, como mostraram Stoller e Kernberg, a cópula pode ser vista como um acto de violação, ou melhor, de invasão sexual. Em termos de papéis sexuais, a maioria das mulheres heterossexuais prefere o papel submisso, ao passo que a maioria dos homens heterossexuais prefere o papel dominador (Jozifkova & Flegr, 2006). Esta compatibilidade entre os sexos reflecte a diferenciação sexual do cérebro e do comportamento. Quanto aos homens gay, alguns estudos mostraram que preferem o papel submisso, embora estudos mais recentes tenham evidenciado que um número significativo de homens gay prefere desempenhar o papel dominante, exibindo comportamentos e actividades sexuais hipermasculinas (Alison et al., 2001). A humilhação está significativamente associada com as mulheres e com a orientação heterossexual nos homens, enquanto a hipermasculinidade se associa fortemente com os homens e com a orientação homossexual nos homens.
A Internet sexual possibilita uma aproximação entre as subculturas sadomasoquistas gay e heterossexual: as duas subculturas confluem nos sites web-cam e esta confluência facilita a descoberta de parceiros sexuais adequados. Geralmente, os homens heterossexuais submissos têm muita dificuldade em descobrir parceiras dominantes, sem recurso ao sexo comercial. Os sites web-cam permitem superar esta dificuldade, facilitando a descoberta de parceiros sexuais virtuais adequados, ao mesmo tempo que permitem aos homens casados satisfazer os seus desejos e fantasias sexuais sem envolver as suas mulheres. O que se verifica nos sites web-cam é a emergência de homens que fazem sexo com outros homens: nos sites web-cam as sexualidades de género masculino aproximam-se, assimilando elementos umas das outras. Os estudos revelam que existem mais indivíduos masoquistas do que sádicos: o masoquismo surge primeiro e só mais tarde alguns assumem o perfil sádico (Baumeister, 1988; Moser & Levitt, 1987; Spengler, 1977). Contudo, a hipótese de Baumeister (1988) foi desmentida por diversos estudos (Sandnabba et al., 1999; De Sousa, 2006): a maior parte dos indivíduos sadomasoquistas não muda as suas preferências. Entre os homens gay, os indivíduos "passivos" tendem a assumir a posição submissa, e os "activos", a posição dominadora, nas actividades sadomasoquistas. Nos sites web-cam, os homens heterossexuais, bissexuais e gay que preferem o papel submisso realizam as mesmas práticas sexuais, e o mesmo sucede com os homens heterossexuais, bissexuais e gay que preferem o papel dominador. As afinidades intragrupais afirmam-se em detrimento das diferenças. A homosociabilidade parece conduzir à homossexualidade, isto é, à afirmação de masculinidades intramasculinas autónomas: as sessões sadomasoquistas reais confirmam esta direcção das interacções online masculinas. Surge um novo erotismo masculino orientado de modo narcisista e até mesmo os homens que praticam musculação acariciam o seu "peito", chupam os dedos e o seu próprio pénis, exibem as nádegas, fazem movimentos sensuais com a língua, dançam de modo erótico, simulando os movimentos de penetração, saboreiam o seu próprio sémen e exibem-se para outros homens. A hipermasculinização caricatural é praticamente sinónimo de homossexualidade masculina. O narcisismo subjacente pode encobrir algum tipo de hostilidade em relação às mulheres. A Internet é o lugar onde está a acontecer uma nova revolução sexual, cujos contornos e configurações ainda são desconhecidos.
A Internet é, inegavelmente, um parceiro activo na criação de novos nichos e subculturas sexuais online e, como vimos, os sites web-cam podem ser vistos como oásis eróticos virtuais. Os frequentadores habituais dos sites web-cam revelam grande dificuldade em distinguir os três conceitos relacionados com a sexual bondage, Bondage & Discipline, Dominance & Submission e S & M (sadomasochism), tendendo a classificá-los como variações da sujeição sexual. Porém, através da visualização dos "shows", do som e da interacção mediada por computador, verifica-se que muitas das actividades sexuais praticadas implicam a administração e recepção da dor, uma faceta claramente sadomasoquista. Isto significa que a Dominação e Submissão constitui o quadro de referência que inclui a Bondage e Disciplina e o Sadomasoquismo. As interacções online entre os residentes e os convidados/frequentadores assentam em papéis fantasiados, tais como senhor/escravo, professor/aluno, guarda-prisional/prisioneiro ou oficial/criado: uns ordenam, outros obedecem. As ordens impõem obediência, servidão ou escravidão, umas vezes sem induzir dor física (B & D), outras vezes induzindo dor física (S & M), mediante o uso de dispositivos ou materiais fisicamente restritivos e tratamentos psicologicamente repressivos e humilhantes. Geralmente, um "show sadomasoquista" contém os seguintes elementos: uma relação de dominação/submissão, administração de dor física (clothspins, spanking, caning, weights, hot wax, electricity e skinbranding) que é experienciada como gratificante por ambos os parceiros, humilhação deliberada do parceiro submisso (flagelação, humilhação verbal, gag, faceslapping e knives), elementos fetichistas e uma ou mais actividades ritualizadas (Townsend, 1983). As experiências sadomasoquistas e de sexual bondage caminham juntas nos sites web-cam e podem ser agrupadas em seis categorias:
1. Jogo. Os indivíduos sexualmente "convencionais" podem alargar a sua experiência sexual mediante a sexual bondage e o número de comportamentos sexuais desejados, ou seja, usar a sexual bondage para alargar e diversificar o seu repertório de comportamentos e de fantasias sexuais desejados, incluindo os comportamentos parafílicos.
Nos sites web-cam, os homens casados heterossexualmente que apreciam a prática de sexual bondage apresentam-se geralmente como "bissexuais": a bissexualidade indica, nestes casos, que estes homens procuram "parceiros de jogo", masculinos ou femininos. Como existem online muitos homens gay dominadores, eles encontram facilmente parceiros dominantes a quem obedecem como "escravos". Heterossexuais na vida real, muitas vezes comprometidos numa relação estável, estes homens fazem sexo virtual com outros homens e, pelo menos em Portugal, muitos deles assumem esta nova identidade virtual na vida real, frequentando regularmente sessões de sadomasoquismo ou de sexual bondage. Um aspecto curioso é o facto dos homens heterossexuais que praticam auto-felação sentirem uma necessidade de a praticar noutros homens. Assim, por exemplo, um homem italiano praticante de auto-felação contou-me, em conversa privada, que já tinha sugado o pénis de outro homem numa estação de metro em Roma e que gostou tanto da experiência que a voltou a repetir muitas outras vezes e, nalguns casos, com diversos homens ao mesmo tempo. Nos sites web-cam, os homens gay submissos raramente obedecem às ordens das mulheres. Como é evidente, os sadomasoquistas parafílicos têm dificuldade em manter uma relação off-line estável ou permanente, a menos que tenham um parceiro ou parceira geneticamente concordantes e, neste caso, tendem a colaborar um com o outro, de modo a diversificar o seu repertório sexual. Mas, como nem todos os casais são concordantes, um dos membros pode realizar estas actividades às escondidas do outro, cometendo infidelidade online ou adultério virtual (Young et al., 2000). E, no caso de serem descobertos, a vida do casal começa a degradar-se.
2. Prazer Sexual Intensificado. Numa experiência de submissão sexual, o indivíduo submisso/receptor é libertado da tarefa de estimular o seu parceiro sexual e, por conseguinte, pode concentrar a sua atenção sobre a experiência sexual propriamente dita. O indivíduo dominador/activo concentra-se sobre o seu desempenho sexual, sem levar em conta os movimentos físicos do parceiro. Deste modo, as experiências sexuais dos dois participantes são intensificadas. Aliás, eles percebem estas experiências de sexual bondage como "prazer sexual intensificado" e consideram-nas mais gratificantes do que os comportamentos sexuais convencionais, isto é, aquilo a que chamam "vanilla sex". Os indivíduos parafílicos tendem a ser sexualmente excitados por poucos estímulos eróticos, mas dotados de elevada potência estimulante. Por isso, durante a prática de sexual bondage, experienciam prazer sexual intensificado.
3. Troca de Poder. O indivíduo dominador/activo pode ser sexualmente excitado pela experiência de poder sexual, controle e responsabilidade, e alguns parecem ser particularmente excitados quando o seu parceiro submisso/receptor revela prazer com a experiência de submissão sexual. Este indicador contraria a concepção comum de que os indivíduos dominadores são cruéis, egoístas e abusadores. Os desejos e as fantasias sexuais dos parceiros complementam-se e, por vezes, terminam a sessão com um beijo na boca. É certo que o sadomasoquismo pode estar presente num só indivíduo, como já tinha sido observado por Freud, mas nestes casos o "show" tende a ser exibido sem que o protagonista interaja com o seu público: ele limita-se a fazer aquilo que planeou fazer, o seu "show", reduzindo os outros a meros espectadores que não podem interferir ou interagir. Os "cus alargados", designação dada por Aristófanes aos "invertidos" e aos travestis gregos, e os "masturbadores exibicionistas", incluem-se nesse grupo de homens que interagem muito pouco com os seus visitantes.
4. Estimulação Táctil e Sensações Corporais. Cordas, correntes, palmadas e bofetadas exercem pressão sobre os terminais nervosos que produz diferentes sensações corporais agradáveis. Estas sensações aumentam a excitação sexual dos indivíduos submissos/receptores que descrevem a intensidade da excitação como verdadeiramente elevada e a experiência, como verdadeiramente agradável. Alguns conseguem atingir o orgasmo sem estimulação física adicional.
Contudo, nos sites web-cam, observa-se claramente que, durante a prática de cockbinding, acompanhada pela queda de cera quente sobre o pénis e os testículos, a erecção peniana enfraquece substancialmente e talvez não desapareça completamente devido aos aparelhos usados para comprimir o pénis. Nestas situações, os homens que desempenham o papel de submissos precisam voltar a manipular manualmente o pénis para obter erecção e obedecer a uma nova ordem ou comando dada por um dos frequentadores: o orgasmo é geralmente obtido após a sessão e, nalguns casos, não se chega a essa fase. Apesar do aspecto chocante de muitos destes comportamentos, os seus executores afirmam que eles são extremamente gratificantes, porque intensificam o seu prazer sexual.
5. Engrandecimento do Gozo Visual do Parceiro. O indivíduo dominador/activo pode colocar e manter o seu parceiro submisso numa posição que seja sexualmente muito excitante.
Nos sites web-cam, muitos dos residentes resolvem o problema da visibilidade de modo muito profissional, focando as zonas corporais que querem exibir publicamente ou, o que é muito erótico, usando espelhos. Pénis erectos, testículos, nádegas, ânus, mamas, vaginas ou movimentos corporais musculares são as estruturas corporais mais exibidas. Quando os pares de residentes exibem uma actividade sexual conjunta, o parceiro activo coloca o seu parceiro submisso numa posição que possibilita evidenciar o acto que está a ser praticado, bem como as zonas corporais íntimas envolvidas: masturbação, felação, coito vaginal, coito anal e, de modo ainda mais evidente, auto-felação praticada por homens heterossexuais ou gay, fistfucking, "chuva dourada" (watersports), rimming, cockbinding, clister, scatologia, catheter ou uso de dildos exuberantes. A pessoa que desempenha o papel submisso é usada, exposta e humilhada publicamente pelo seu parceiro dominador: os seus orifícios corporais são literalmente invadidos e "agressivamente" manipulados e os seus corpos são submetidos a diversos tipos de restrição física (handcuffs, chains, wrestle, slings, ice, straitjacket, hypoxyphilia e mummifying). Geralmente, o parceiro dominante interrompe o "show" para exibir o seu pénis erecto e interagir com os convidados/frequentadores: procura "popularidade" e as ordens dadas pelos últimos podem ser levadas a cabo. Os voyeurs que assistem a estes "shows" pedem frequentemente aos participantes para mostrarem mais de perto os seus órgãos genitais e as actividades sexuais realizadas. Predomina claramente o fetichismo falocrático: os utilizadores destes serviços tendem a ser "admiradores de falos", para os quais a diversidade multiracial de pénis exibida é deveras erótica. As palavras de ordem são as seguintes: "Show your big cock (or hot dick)", seguida de "CUM" ou "Shoot your milk". As mulheres assistem silenciosamente a estes "shows" e, quanto utilizo um perfil feminino, alguma mais corajosa deixa-me este comentário: "He's gay".
6. Confiança e Cuidados. As experiências erotizadas do indivíduo submisso/receptor aliviam-no de todas as responsabilidades pelo controle da experiência sexual: ele abandona-se confiantemente nas mãos do indivíduo dominador/activo, ou seja, a responsabilidade é confiada ao indivíduo dominador. Neste aspecto, o masoquismo parece ser uma estratégia usada pelos indivíduos com o objectivo de se libertarem da responsabilidade e do próprio self.
A confiança é fundamental numa relação de dominação/submissão: o parceiro submisso atado ou amarrado fica completamente nas mãos do seu parceiro dominador. Este precisa ser muito experiente para não ferir com gravidade o seu parceiro. É evidente que numa interacção online alguns dominadores exageram nas ordens dadas, ordenando a prática consecutiva de actos deveras dolorosos, mas sempre surgem "masters" mais cuidadosos a contra-ordenar e a desautorizar essas ordens. Isto significa que, entre indivíduos verdadeiros que praticam a sexual bondage ou mesmo o sadomasoquismo, existem acordos tácitos que visam garantir a segurança dos participantes. São práticas consentidas em que cada parceiro sabe aquilo que deve fazer sem pôr em risco a vida do outro. Embora pareçam e sejam efectivamente práticas "agressivas", elas são vistas como gratificantes pelos dois ou mais parceiros envolvidos: o poder que detém sobre o outro satisfaz o dominador e a obediência é gratificante para o parceiro submisso.
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 15 de novembro de 2008

Cibersexo e Exibicionismo

A Internet oferece aos seus utentes três possibilidades: embelezamento das circunstâncias do mundo real, criação de um cenário de pura fantasia e computer sex, onde cada parte descreve online o que gostaria que a outra parte fizesse consigo até alcançarem em conjunto o orgasmo. Os factores que tornam os contactos online potencialmente sedutores e, frequentemente, aditivos, incluem a desinibição e a natureza anónima da Internet. Os utentes online são mais desinibidos, confiam mais nos outros e revelam facilmente aspectos íntimos e secretos das suas vidas. A percepção de confiança, intimidade e aceitação tem o efeito potencial de encorajar os utentes online a usar estas relações virtuais como uma fonte primária de companhia, de conforto ou mesmo de gratificação erótica.
1. Internet Sexual. Segundo Cooper (1998), existem três factores primários que facilitam o incremento da sexualidade online: accessibility, affordability e anonymity. O seu modelo é denominado o Triple A Engine:
1). Accessibility: existem milhares de sites disponíveis 24 horas por dia e 7 dias por semana.
2). Affordability: a competição na Web mantém os preços/custos baixos e existem muitas maneiras de aceder de graça ao sexo.
3). Anonymity: as pessoas julgam ou percebem as suas comunicações como sendo anónimas, o que parece incrementar um sentido de controlo sobre as situações.
Young (1999) elaborou uma variante do Triple A Engine, o ACE model: anonymity, convenience e escape. Nenhum destes modelos explica cabalmente o processo de desenvolvimento de relações online, embora forneçam os factores envolvidos na aquisição, desenvolvimento e manutenção das relações emocionais e/ou sexuais na Internet. Os meios virtuais parecem ter a capacidade de fornecer conforto, excitação e/ou distracção a curto prazo.
As pessoas utilizam a Internet com diversas finalidades, tais como trabalho, aprendizagem e recriação, devotando grande quantidade de tempo a esta ciberdimensão. Porém, o tópico número um, aquele que é mais procurado na Internet, é o sexo (Cooper, 1998; Freeman-Longo & Blanchard, 1998). Os sites com material sexual explícito são os mais procurados e as pessoas usam determinados serviços on-line para satisfazer os seus interesses sexuais e estabelecer contacto com outras, em função de diversas agendas sexuais. Isto significa que a Internet providencia um novo nicho social para as mais diversas expressões sexuais. A Internet sexual inclui não só a pornografia convencional, mas também as pornographic picture libraries (commercial and free-acccess), vídeos e vídeo clips, sex shops, live strip-shows, live sex shows e voyeuristic Web-Cam sites (Griffiths, 2000). Porém, a Internet sexual é muito mais do que uma rede de sites ou de páginas sexuais criados por determinados produtores para consumo de uma vasta audiência mundial: os utentes da Internet usam os programas e as novas tecnologias para fins sexuais, criando espontaneamente uma vasta rede de conexões sexuais. A globalização da comunicação é assim acompanhada pela globalização sexual: a comunicação mediada por computador cria uma arena mundial para contactos sexuais. Com a Internet emerge uma nova forma de sexualidade: a telesexualidade (sexo à distância), sexualidade virtual ou cibersexualidade.
1.1. Cyberaffair. A utilização sexual da comunicação mediada por computador é, portanto, muito mais extensa do que o número de web-sites sexuais on-line. Uma troca de email ou uma conversa num chat room podem conduzir a um cyberaffair intenso e apaixonado e, eventualmente, promover encontros sexuais reais. Um cyberaffair pode ser definido como uma relação sexual e/ou romântica que é iniciada via contacto online e mantida predominantemente através de conversações electrónicas que ocorrem através do e-mail e em comunidades virtuais, tais como chat rooms, interactive games, newsgroups e, sobretudo, Windows Live Messenger (Young et al., 2000). Estas relações online convertem-se frequentemente em diálogos eróticos mútuos, o cibersexo, que, com a utilização da web-cam, possibilita a visualização das actividades sexuais. Quando visam marcar um encontro real, as pessoas trocam os números de telefone ou de telemóvel e iniciam primeiramente uma interacção por telefone antes do encontro face a face, embora possam começar por um encontro real num lugar previamente combinado.
1.2. Cibersexo. O cibersexo envolve utentes online que trocam entre si textos baseados em fantasias sexuais, frequentemente acompanhados por masturbação e outras actividades sexuais. O conceito de cibersexo tem sido definido de diversas maneiras. Blair (1998) usa-o para designar as interacções eróticas através de ciberdiscursos e aponta as suas limitações sensoriais. O discurso sexual da Internet pode ser combinado com auto-estimulação ou converter-se numa relação física offline. As offline physical coupling são, em muitos casos, antecedidas por trocas online e trocas de números de telefone e muitos casais ou pares conheceram-se e assumiram relações em real-time como resultado de relações românticas online. Porém, com a utilização da web-cam, a Internet já não é apenas um sistema de signos: o cibersexo não se reduz a uma actividade em que o signo substitui a coisa (Lacan).
2. Sites Web-Cam. A minha pesquisa recente está debruçada sobre os sites Web-Cam. O que os seus frequentadores procuram não é tanto amigos/as com quem possam «conversar» e socializar, mas fundamentalmente parceiros sexuais de jogo com os quais trocam e-mails e, em privado, entregam-se à prática de cibersexo via web-cam. Nalguns casos, podem surgir oportunidades para encontros sexuais off-line marcados a breve ou a longo prazo. As distâncias podem ser superadas, desde que haja acordo entre as partes envolvidas: a relação virtual pode converter-se facilmente em relação real. O uso da Web-cam facilita primordialmente o sexo virtual, mas, mesmo assim, não é de descartar a possibilidade de um encontro sexual face a face. Esta necessidade de marcar encontros sexuais reais e virtuais mostra que estes utentes já possuíam uma adição ou compulsão sexual anterior à utilização sexual do computador: a Internet é utilizada para aumentar o pool de potenciais parceiros sexuais reais e/ou virtuais (Ross et al., 2007; Elford et al., 2004; Elford et al., 2001; Hospers et al., 2005). A compulsividade sexual é caracterizada pela solidão, baixa auto-estima e falta de auto-controle, e, de facto, estes traços estão presentes nestes utentes, sendo consistentes com os dos retratos de pessoas com adições sexuais (Cooper et al., 1999; Griffiths, 2004). Isto significa que o meio virtual pode influenciar o comportamento, mas não o determina. O modelo "monkey see, monkey do" dos efeitos dos mass media deve ser rejeitado, porque o "monkey has a brain": a perspectiva da sequência do comportamento sexual considera que os contactos com a cibersexualidade podem ser vistos como actividades auto-reguladas que se desenrolam em função de disposições individuais erotofílicas ou erotofóbicas para responder ao conteúdo sexual com afectos e avaliações positivas ou negativas (Fisher & Barak, 2000).
Ora, de acordo com a minha hipótese de trabalho, os sites web-cam não são apenas sites voyeurs, como supõe Griffiths (2000), mas também sites exibicionistas. Ou seja, a minha hipótese é a de que os actores/residentes desses sites são tendencialmente exibicionistas, enquanto a maior parte dos seus convidados e frequentadores são voyeurs, alguns dos quais podem tornar-se residentes. Esta hipótese assenta na tese de que o cibersexo deve ser visto como um tipo de expressão sexual que varia num continuum desde a mera curiosidade até ao envolvimento obsessivo (Leiblum, 1997). Para as pessoas que precisam de ajuda clínica, as perseguições sexuais on-line fazem parte integrante de uma constelação de traços associados ao isolamento social e a uma vida frustrante. Leiblum (1997) distingue três tipos de perfis clínicos de pessoas que recorrem ao cibersexo: o grupo dos loners, que compreende as pessoas para quem o cibersexo representa uma acomodação a situações de vida problemáticas ou empobrecidas, cada uma das quais a curto ou longo prazo; o grupo dos partners, formado por pessoas envolvidas numa relação off-line, cujo envolvimento com o cibersexo causa dificuldades sexuais e relacionais com o outro membro da relação; e o grupo dos paraphilics, constituído por pessoas que dependem do cibersexo para lhes fornecer uma fonte de estimulação e de satisfação das suas preferências e comportamentos sexuais. Embora estes perfis possam ser identificados isoladamente, os meus dados mostram que, no que diz respeito aos agentes/residentes inscritos nos sites web-cam, o perfil parafílico sobrepõe-se a um dos outros perfis, de modo a constituir perfis compostos parafílico/partner e parafílico/loner. Isto significa que os agentes/residentes manifestam invariavelmente um envolvimento obsessivo com o cibersexo, e que, entre os frequentadores dos sites web-cam, podemos encontrar diversos tipos de envolvimento, desde a mera curiosidade até ao envolvimento obsessivo.
2.1. Oásis Eróticos Virtuais. Os sites web-cam podem ser vistos como oásis eróticos virtuais. O conceito de oásis erórico foi forjado por Delph (1978) para designar um lugar considerado física e socialmente seguro de ameaças exteriores, de acordo com os padrões definidos pela subcultura gay, onde os seus frequentadores se reúnem para estabelecer interacções sexuais mutuamente desejadas. Ou seja, o oásis erótico é um lugar subculturalmente atribuído para a prática do sexo, portanto, um lugar que encoraja abertamente o sexo. A extensão deste conceito ao ciberespaço possibilita examinar certos sites sexuais como cloacas comportamentais virtuais acessíveis a qualquer utente, bastando para o efeito clicar, consultar o website e interagir com os outros. Como já vimos, a Internet sexual democratiza o acesso a todos os tipos de materiais sexuais explícitos, uns legais e outros ilegais (assédio sexual online, cyberstalking, pedophilic "grooming" of children, consensual erotic cannibalism), permite a exteriorização e a partilha de fantasias sexuais, e facilita a procura de parceiros sexuais sem sair de casa. Os sites web-cam são oásis eróticos virtuais muito populares e, como tal, encorajam abertamente a exteriorização "pública" das fantasias sexuais e as interacções sexuais entre os seus utentes de géneros, nacionalidades, etnias, status sócio-económico, idades, orientações e preferências sexuais diferentes. Ao contrário dos clássicos websites sexuais, em especial dos pornográficos, os sites web-cam permitem visualizar em tempo real actividades sexuais diversas realizadas por casais ou indivíduos "reais" online e estabelecer contactos com esses residentes, tendo em vista um encontro sexual virtual, de preferência recíproco e em privado via MSN. Os sites web-cam facilitam encontros sexuais que, ao contrário da masturbação individual, são dotados de uma qualidade partilhada, no sentido de que as fantasias são exteriorizadas e mutuamente construídas em tempo real com uma outra pessoa "real" online. Neste sentido, o cibersexo posiciona-se entre a excitação sexual resultante da visualização de material pornográfico e o contacto sexual real. Uns utentes ficam satisfeitos com estes contactos sexuais virtuais, outros desejam estabelecer contactos sexuais reais: o sexo virtual é, neste último caso, o primeiro passo que lhes permite acumular dados, avaliar as compatibilidades e, mais tarde, marcar um encontro real.
2.2. Cruzamento das Sexualidades. A Internet permite uma melhor expressão da identidade, sobretudo daqueles utentes que são socialmente marginalizados e excluídos (McKenna, Green & Smith, 2001), como sucede com os homens e as mulheres homossexuais e bissexuais e com os homens heterossexuais sexualmente compulsivos ou com alguma preferência parafílica. Após terem revelado a sua identidade sexual genuína, a online selfdisclosure, estas pessoas tendem a tornar efectiva essa identidade assumida no meio virtual. Aliás, qualquer pessoa sente e sabe que o seu «verdadeiro self» (Karl Rogers) é melhor expresso online do que offline, devido ao Triple A Engine. Os homens homossexuais passam a maior parte do seu tempo escondidos e a ser interpelados como se fossem heterossexuais. Além de serem clandestinos numa sociedade heterosexista, os homens gay têm de lidar com as investidas eróticas e amorosas femininas que amordaçam a seu eu mais verdadeiro. Ora, a Internet possibilita a desmarginalização do self gay ou parafílico/exótico, que, pelo menos no meio virtual, quando assediado, pode simplesmente banir ou bloquear o endereço do abusador. A Internet quebra muros, elimina barreiras associadas com a geografia, a idade, o status sócio-económico, a etnicidade ou a nacionalidade, e ajuda a destruir preconceitos sexuais (Hillier, Kurdas & Horsley, 2001). Embora possam ser insultados verbalmente online ou via telefone por homens heterossexuais, sobretudo quanto tentam sexphone, os homens gay podem interagir de modo mais genuíno e próximo com eles, sem temer consequências negativas. Alguns homens heterossexuais trocam e-mails com homens homossexuais, com o objectivo de criar amizades online, e outros revelam interesse em explorar novos prazeres, podendo envolver-se em cibersexo homossexual. De facto, nas interacções online, os homens heterossexuais são muito menos preconceituosos e, por isso, mais abertos a outras possibilidades sexuais. Alguns fazem cibersexo com homossexuais, não porque estes tenham simulado uma personagem feminina online (gender-bending), o que acontece regularmente, mas porque, eles próprios durante as interacções online, mostraram interesse em experimentar novas formas de prazer sexual (Brown, Maycock & Burns, 2005).
2.3. Padrões Gerais. Os sites web-cam são completamente dominados pelos homens: os seus residentes e frequentadores são predominantemente homens (1), muitos dos quais usam um perfil (ou inscrição) feminino para ter acesso privilegiado e privado às "cenas íntimas" dos machos heterossexuais, tais como "cum" ou "shoot your milk", e a imagem predominante é a do falo (2). Estas observações confirmam resultados de estudos anteriores. Os utentes da Internet não constituem um grupo homogéneo; pelo contrário, existem diversos subgrupos que podem ser distinguidos pelo género e pela idade. O género constitui a variável que permite distinguir os utentes de websites sexuais: os homens (2/3) utilizam muito mais estes sites do que as mulheres e também gastam mais tempo a visualizá-los (Morahan-Martin, 1998; Nua, 1998; Atwood, 1996). Isto significa que a cultura on-line é masculina: as atitudes positivas dos homens em relação à tecnologia são transferidas para o uso da Internet.
O facto de predominar a exibição fálica nos sites web-cam decorre da temática das diferenças sexuais e de género, em especial da diferença fundamental que diz respeito a todos os padrões que mostram que o sex drive masculino é maior do que o sex drive feminino (Baumeister, Catanese & Vohs, 2001; De Sousa, 2006). Um desses padrões são as atitudes favoráveis em relação ao sexo, incluindo a pornografia e a prostituição. Conforme mostraram Reinholtz & Muehlenhart (1995), os homens têm opiniões mais favoráveis em relação aos seus próprios órgãos sexuais (isto é, os seus pénis) do que as mulheres em relação aos seus (isto é, as suas vaginas). Além disso, os homens avaliam as "vaginas das suas namoradas" mais favoravelmente do que as mulheres avaliam os "pénis dos seus namorados". Contudo, esta última descoberta não desmente a ideia de que o pénis é inerentemente mais admirado e "louvado" do que a vagina. O objectivo dos homens é obter sexo e, por isso, as suas discussões sobre sexo são muito detalhadas e envolventes. Nestas discussões, os genitais masculinos são mais abertamente (e menos eufemisticamente) abordados do que os genitais femininos (Braun & Kitzinger, 2001). Estes dados mostram que as mulheres heterossexuais não parecem muito interessadas nos órgãos genitais dos seus potenciais parceiros ou namorados. Encontramos aqui provavelmente a razão da inexistência de lugares onde os homens heterossexuais façam exibições fálicas para atrair as suas parceiras sexuais: a natureza física do falo, nomeadamente o seu tamanho, parece deixar as mulheres indiferentes. No entanto, nos sites web-cam, os homens heterossexuais realizam prolongadas exibições fálicas, com a ajuda de viagra, poppers e boosters, e, como seria de esperar, a sua audiência é predominantemente masculina, constituída por homens homo e bissexuais, bem como por transexuais macho-para-fêmea, como se estas exibições fossem efectuadas para atrair esta gama de homens.
3. Exibicionismo. Ora, as exibições fálicas fazem parte integrante da corte homossexual. Em determinados lugares, muitos homens gay exibem o seu falo com o objectivo de atrair parceiros sexuais. Tal como os homens heterossexuais, os homens homossexuais masculinizados referem-se mais aos seus próprios órgãos sexuais e aos dos parceiros potenciais ou reais do que os homossexuais efeminados. Estes últimos não se referem aos seus pénis, mas, ao contrário das mulheres, têm elevado sex drive e admiram os pénis dos seus parceiros, de preferência pénis de grandes dimensões. A etologia interpreta as exibições fálicas como sinais de protecção, domínio e ameaça (Eibl-Eibesfeldt, 1970), mas, neste contexto virtual, elas são simplesmente sinais sexuais emitidos com o objectivo de atrair o maior número possível de pessoas ou de potenciais parceiros sexuais. Porém, onde existem imagens ou visualizações "reais" de pénis erectos, também existem muitos homens gay. Isto significa que as exibições fálicas dos homens heterossexuais atraem maior número de homens do que de mulheres. O site web-cam tende a converter-se num "concurso público" onde os homens exibem os seus falos: os vencedores, os que ocupam o topo das respectivas listas, são aqueles que atraem o maior número de convidados e de utentes. De certo modo, os vencedores que podem ser premiados com dinheiro são aqueles que, devido às grandes dimensões dos seus pénis, "cobrem" o maior número de utentes por dia, semana e mês. O acto de cobrir é claramente uma atitude de domínio e de ameaça. Neste acto virtual reside o núcleo do exibicionismo online: os actores/residentes exibicionistas não sofrem, de modo algum, perturbações no seu comportamento sexual e não são sexualmente inibidos; pelo contrário, são sexualmente desinibidos, sobretudo no meio virtual livre dos constrangimentos sócio-culturais. O exibicionismo é geralmente caracterizado por fantasias sexualmente excitantes ou por comportamentos que envolvem a exposição dos órgãos genitais a outras pessoas que percebem este comportamento como inapropriado (DSM-IV-R/CID-10). Contudo, os exibicionistas online são diferentes dos exibicionistas da literatura psiquiátrica clássica: eles pretendem assustar os seus rivais e, deste modo, atrair a atenção dos utentes, com alguns dos quais querem fazer sexo virtual e/ou real. Como é evidente, os alvos das exibições fálicas não as encaram como comportamentos inapropriados, porque, nos sites web-cam, as parafilias tendem a confluir de modo complementar e "pacífico". E, como os homens são mais propensos a adquirir uma parafilia do que as mulheres, encontra-se aqui mais uma razão que justifica o carácter masculino da cultura sexual online. No fundo, todos eles reagem sexualmente a um pequeno número de estímulos eróticos e este traço pode estar associado a diversos tipos de psicopatias e a inteligência reduzida (Firestone et al., 2006; Rabinowitz-Greenberg et al., 2002; Cantor et al., 2005; Quinsey, 2003; Rahman & Symeonides, 2008).
Estes dados confirmam uma das predições do meu modelo: os homens heterossexuais que apresentam atributos hipermasculinos, em especial pénis de grandes dimensões e elevado grau de promiscuidade sexual, tendem a ser muito pouco discriminativos na selecção dos seus parceiros sexuais: são buscadores compulsivos de novas sensações e de novas experiências sexuais e, geralmente, já fizeram sexo com outros homens (Hamer). Com a Internet emerge uma nova figura de homem: homens que fazem sexo virtual com outros homens, uns na sua condição verdadeira de homens, outros na condição fictícia de mulheres. Ora, um número significativo de homens heterossexuais que exibem os seus pénis erectos nos site web-cam não parecem ficar muito incomodados pelo facto dos seus visitantes ou convidados serem outros homens que lhes fazem propostas sexuais e elogiam os seus pénis, embora outros digam claramente que não desejam a presença de homens gay. Os frequentadores homossexuais desafiam-nos, dizendo-lhes que eles gostam ser admirados por outros homens e, em conversas privadas, costumam defender a tese de que a maior parte deles são homossexuais que usam o rótulo heterossexual por ainda não terem assumido a sua verdadeira preferência sexual. Contudo, esta visão gay é exagerada, porque sempre que entro em diálogo com eles usando um perfil feminino costumo receber geralmente uma mensagem privada, onde me pedem para trocar e-mails, tendo em vista a realização de cibersexo privado, ou, quando detectam que estou on-line, enviam um convite para assistir a uma sessão privada. Isto significa que nem todos os auto-intitulados heterossexuais são falsos heterossexuais ou atravessam um período crítico de desconforto com essa sua orientação sexual. Porém, no caso dos homens ditos bissexuais, a situação é muito diferente: a presença do meu perfil feminino deixa alguns muito incomodados e já foi banido algumas vezes. Com excepção de um homossexual português e de um ou outro homossexual hiperefeminado ou transexual, os homens gay tendem a não me responder, ignoram a minha presença e não desejam a minha presença, embora não me tenham banido do chat. Apenas um bissexual português me fez uma proposta de "casamento de conveniência", alegando que nunca iria ficar "privada de sexo", apesar de preferir fazer sexo com outros homens. Quanto ao meu perfil masculino, pouco há a dizer: tem sido bem acolhido pelas mulheres heterossexuais e pelos homens gay. Os casais heterossexuais são receptivos ao meu perfil feminino e os casais gay, ao meu perfil masculino. As mulheres lésbicas já me contactaram e adicionaram-me às suas "listas de amigas". Quer use um ou outro perfil, tenho tido um grande acolhimento entre os membros da cultura de submissão sexual ou de sadomasoquismo, desempenhado o papel de master ou de dominador(a).
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Cérebro Social e Teoria da Mente

A neurociência social estuda o comportamento social e a cognição social, usando os métodos moleculares e celulares e os instrumentos da neuro-imagem. A emergência da neurociência social é relativamente recente e apoia-se em três desenvolvimentos: 1) Os estudos de determinadas interacções sociais, tais como o comportamento reprodutivo e os cuidados parentais, revelaram alguns mecanismos moleculares e celulares que, apesar de simples, parecem estar envolvidos em muitos comportamentos sociais (Young & Wang, 2004; Lim et al., 2004: Curtis & Wang, 2005). 2) Os estudos de animais não-humanos que revelaram e identificaram os substratos neurais do comportamento social normal ajudam a compreender e a tratar comportamentos sociais humanos anormais, em especial as perturbações tais como o autismo e a esquizofrenia (Lim et al., 2005). 3) Os estudos que acumularam evidência de que o isolamento social e a separação social são factores de risco de certas perturbações médicas mostram que a interacção social protege contra a doença: a solidão tem um forte efeito negativo sobre a saúde (Esch & Stefano, 2005). Estes desenvolvimentos decorrem, em parte, do conceito de "Umwelt" de von Uexküll (1921), retomado por Konrad Lorenz (1935) numa perspectiva mais ampla, segundo a qual o mundo perceptual do animal deve incluir informação relevante sobre o comportamento de outros indivíduos e do grupo social como um todo.
Lorenz criou uma bateria de conceitos extremamente revolucionária que ainda não perdeu a sua fertilidade teórica, embora o seu modelo psicohidráulico seja bastante avesso à linguagem neurobiológica. Lorenz defendeu que em cada caso de comportamento instintivo existe um núcleo de automatismo completamente fixo e mais ou menos complexo, o movimento instintivo. Estes automatismos são elementos centrais e essenciais de todo o sistema de comportamentos instintivos de todos os animais e, devido à sua constância, podem ser usados para os estudos filogenéticos e comparativos. Cada comportamento instintivo depende de um certo impulso interno, ou melhor, tende a produzir uma espécie de tensão específica no sistema nervoso central. Se o animal não se encontrar numa situação favorável para a sua descarga, esta energia específica de reacção acumula-se, de modo que o limiar dos estímulos que são efectivos para desencadear esta actividade instintiva particular desce até que, a partir de determinado momento, o instinto se desencadeia sem nenhum estímulo exterior, dando origem à actividade no vazio. Além deste núcleo de automatismo endógeno, existe o comportamento apetitivo que permite ao animal atingir a meta para a qual está adaptada a sequência completa de comportamento. Quando o comportamento apetitivo segue o seu curso apropriado e o animal alcança a sua meta, o comportamento instintivo apropriado é libertado pelo estímulo ou desencadeador, cuja eficácia é devida à existência de um receptor relacionado, isto é, uma organização sensorial que permite ao animal reconhecer o estímulo adequado e actuar de modo apropriado. Este mecanismo desencadeador pode ser inteiramente inato e, portanto, não modificável pela experiência individual. No caso de o animal estar sob a influência de um poderoso impulso e, ao mesmo tempo, impossibilitado para expressar o impulso de forma adequada, pode ocorrer uma actividade de deslocamento. N. Tinbergen (1950) elaborou um modelo alternativo: o modelo hierárquico.
Nas neurociências cognitivas, usa-se a expressão teoria da mente ou capacidade de mentalização para designar a habilidade para representar estados mentais de si próprio e dos outros, tais como intenções, crenças, vontades, desejos e conhecimento. Esta habilidade é adquirida pelas crianças por volta dos 4 anos de idade e continua a desenvolver-se até aos 11 anos de idade (Baron-Cohen et al, 1999). Os processos de mentalização são usados para a introspecção e, sobretudo, para socializar com os outros (Brothers, 1997; Byrne & Whiten, 1992). Esta capacidade pode ser vista como resultado da inteligência social, a qual inclui a habilidade para reconhecer os outros da mesma espécie, para conhecer o seu próprio lugar na sociedade, para aprender com os outros e para ensinar novas tarefas aos outros. Um dos aspectos mais estudados da inteligência social é a capacidade para compreender e manipular os estados mentais das outras pessoas e para alterar o seu comportamento. Os primatas são particularmente hábeis para predizer o comportamento de outros congéneres. O mecanismo pelo qual nós representamos e predizemos o comportamento dos outros tem sido interpretado a partir de duas perspectivas teóricas diferentes: a primeira perspectiva deriva da filosofia da mente, mais precisamente da folk psychology, e é denominada "Theory Theory" (TT), e a segunda perspectiva é chamada "Simulation Theory" (ST). Segundo a TT, o nosso senso comum compreende o comportamento dos outros em termos da intervenção de estados mentais, tais como intenções, desejos e crenças, a partir dos quais as pessoas actuam. Por outras palavras, o nosso conhecimento de outras mentes está incorporado numa teoria simbólica explícita na folk psychology, dotada de axiomas e regras de inferência, da qual podemos inferir o que os outros conhecem e querem. A ST encara a nossa habilidade para reconhecer e raciocinar sobre os estados mentais dos outros como um exemplo da experiência de projecção: nós simulamos mentalmente os processos de pensamento e os sentimentos dos outros, utilizando os nossos próprios estados mentais como modelos dos estados mentais dos outros. Ou seja, nós conhecemos as outras mentes ou por empatia (TT) ou por simulação (ST). A evidência empírica acumulada ainda não permite decidir entre estas duas teorias concorrentes. Diversos modelos neurobiológicos (Baron-Cohen & Ring, 1994; Brothers, 1992; Frith & Frith, 2001) foram propostos para explicitar as bases neurais da Teoria da Mente. O modelo da cognição social elaborado por Brothers destaca o circuito que conecta o córtex orbitofrontal, o sulco temporal superior e a amígdala. Se este circuito for interrompido nalgum ponto, o autismo pode ser produzido. Frith & Frith sugerem um modelo da interacção social que destaca o sulco temporal superior, o córtex pré-frontal medial, incluindo o córtex cingulado anterior, e algumas partes da amígdala. A partir de uma revisão da literatura disponível, Abu-Akel (2003) considera que as regiões envolvidas no processo de mentalização são as seguintes: a representação dos seus próprios estados mentais é suportada pela região do lóbulo temporal inferior (IPL), a representação dos estados mentais dos outros ocorre na região do sulco temporal superior (STC), os estados mentais representados nestas regiões são enviadas para o sistema límbico-paralímbico responsável pela interpretação e regulação sócio-emocional, e a informação processada é depois projectada para as regiões do córtex pré-frontal ventral e dorso-medial (MPFC) e do córtex frontal inferolateral (ILFC) que aplicam o processo. Este modelo neurobiológico tem importantes consequências clínicas e é claramente favorável à TT. Esta teoria incentivou o aparecimento de uma nova disciplina: a neuro-economia que estuda a recompensa e o sistema de mentalização na tomada de decisões económicas (Prospect Theory), bem como a confiança, dando origem ao neuromarketing (Walter et al., 2005; Trepel et al., 2005).
Há um cérebro social humano? Os seres humanos são animais excessivamente sociais, mas os substratos neurais do comportamento e da cognição sociais ainda não são completamente conhecidos. Os estudos realizados com seres humanos e outros primatas têm revelado diversas estruturas neurais que desempenham um papel chave na construção dos comportamentos sociais: a amígdala, os córtices frontais ventromediais, e o córtex somatossensorial direito, entre outras estruturas (Adolphs, 1999), que parecem mediar as representações perceptuais de estímulos socialmente relevantes. Estes estudos possibilitaram elaborar a Hipótese do Cérebro Social ou Hipótese da Inteligência Maquiavélica. A sua formulação evolucionária foi feita por Robin I.M. Dunbar (1998, 2003), que, com base em sólida evidência empírica, a apresentou como alternativa às estratégias ecológicas, capaz de explicar os cérebros grandes dos primatas pelas exigências e pressões selectivas impostas pelos sistemas sociais complexos característicos desta ordem. O cérebro dos primatas é essencialmente um cérebro executivo, principalmente o neocórtex responsável pelos aspectos fundamentais da cognição social, em particular pela teoria da mente. Jean-Pierre Changeux reconheceu que a mais-valia da divergência evolutiva que conduziu ao Homo sapiens foi precisamente "o alargamento das capacidades de adaptação do encéfalo ao meio ambiente, acompanhado de um evidente aumento das aptidões para criar objectos mentais e para os combinar entre si". Se tivesse usado o termo construção, em vez de adaptação, Changeux teria apreendido a noção evolutiva do cérebro social, precisamente aquele que sofreu e sofre na sua evolução filogenética e no seu desenvolvimento ontogenético as marcas originais e indeléveis dos laços sociais, da "comunicação entre os indivíduos" e da cultura, o produto mais complexo da mente humana. Não foi a mera adaptação a um meio ambiente dado que desencadeou o aumento do encéfalo, mas a própria complexidade das sociedades dos primatas que culmina com as sociedades humanas. Neste sentido, a evolução do cérebro revela o aparecimento de propriedades que melhoram a sua capacidade de actuação à custa da redução da sua auto-suficiência funcional: o cérebro humano torna-se dependente dos recursos culturais e sociais para o seu próprio funcionamento. Isto significa que estes recursos são constitutivos da própria actividade mental.
A percepção social dos primatas é fundamentalmente visual, embora sinais auditivos, somatossensoriais e olfactivos contribuam para identificar as crias, o género e indivíduos familiares. A percepção da face tem sido muito estudada e diversos estudos mostraram que as células do córtex temporal dos macacos respondem às faces (Tsao et al., 2003). Os estudos de fMRI em seres humanos revelaram o processamento cortical de um tipo específico de estímulos visuais e a área fusiforme foi envolvida no reconhecimento de faces (Gauthier et al., 2000; Kanwisher et al., 1997). Lesões nesta região cerebral produzem défices na recognição de faces e reduções significativas no volume da sua matéria cinzenta foram observadas em pacientes com esquizofrenia crónica que manifestavam dificuldade com a recognição de faces (Onitsuka et al., 2003). O circuito da informação social foi identificado por dois estudos de fMRI (Castelli et al., 2002; Martin & Weisberg, 2004) que, em vez focarem a sua atenção sobre objectos sociais, procuraram saber como o cérebro responde enquanto atribui interacção social a imagens abstractas: o circuito identificado compreende o segmento lateral do giro fusiforme, o sulco temporal superior, a amígdala e o córtex pré-frontal ventromedial, um circuito envolvido na percepção social de primatas não-humanos (Brothers, 1990) e na cognição social humana (Adolphs, 2001). A amígdala está implicada na recognição das emoções sociais (culpa, arrogância) e na percepção do medo (Adolphs et al., 2002; Amaral et al., 2003; Kesler et al., 2001). O córtex pré-frontal ventromedial está fortemente conectado com a amígdala (Steffanaci & Amaral, 2002) e foi associado ao prazer subjectivo (Kringelbach et al., 2003), ao julgamento social (Bechara et al., 1997) e ao processamento de vocalizações sociais nos primatas não-humanos (Romanski & Goldman-Rakic, 2002). Quanto à motivação social, foram realizados diversos estudos de fMRI: o estudo de Bartels & Zeki (2000) sobre amor e perda mostrou que o striatum, a ínsula medial e o córtex anterior do cíngulo estão implicadas na vinculação romântica, e o estudo de Eisenberger et al. (2003) revelou que o córtex anterior do cíngulo e o córtex pré-frontal ventral direito estão envolvidos na resposta à exclusão social, bem como à sensibilidade da dor física (Eisenberger et al., 2006).
A identificação do circuito social no cérebro humano é de grande importância para identificar a neuropatologia do autismo (Lord et al., 2000). Esta perturbação do neurodesenvolvimento é definida por défices no comportamento social recíproco e na linguagem, bem como pela presença de comportamentos estereotipados. As crianças com autismo apresentam ausência de motivação social, tal como é medida pelo contacto visual e pelo interesse em olhar para faces (Klin et al., 2002). Embora não ocorram graves anormalidades no cérebro autista, os estudos de fMRI mostraram que as pessoas com autismo não activam o giro fusiforme quando confrontadas com faces (Schultz et al., 2000). Isto pode indicar a ausência de atenção para faces ou o colapso crítico da habilidade para processar faces. Porém, os indivíduos com autismo são inteligentes na realização de diversas tarefas, excepto nas do domínio social. Estudos clínicos mostraram que as crianças que cresceram com privação social exibem comportamentos do tipo autista e défices permanentes na vinculação (O'Connor et al., 2003). A identificação dos genes que contribuem para as síndromes clínicas, tais como Fragil X Syndrome (Brown et al., 2001) e Rett Syndrome (Shahbazian & Zoghbi, 2002), mostraram que esses genes agem nas vias que medeiam a informação social. E, como revelam estudos recentes, o mesmo sucede com o autismo (Lim et al., 2004; Bielsky et al., 2005; Hammock & Young, 2005; Carter, 2007), a Asperger Syndrome (Ashwin et al., 2006), a Williams Syndrome (Tager-Flusberg et al., 1998) e a esquizofrenia.
J Francisco Saraiva de Sousa