sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Marx e a Filosofia

Numa carta dirigida a Ruge, datada de Setembro de 1843, Marx escreveu: «Não sou de modo algum favorável a que ergamos a nossa própria bandeira dogmática. Muito pelo contrário... Não enfrentamos o mundo de modo doutrinário, com um novo princípio, dizendo: aqui está a verdade, curve-se diante dela. Desenvolvemos novos princípios para o mundo a partir dos seus próprios princípios já existentes... Podemos resumir a visão do nosso Jornal (Deutsch, Französische Jahrbücher) numa única frase: o autoconhecimento (filosofia crítica) da época nas suas lutas e objectivos. Esta é uma tarefa para o mundo e para nós mesmos». (Karl Marx)
Em 1937, durante a década da Depressão e do New Deal de Roosevelt, da Guerra Civil Espanhola e da aproximação do conflito com os Estados Fascistas, Talcott Parsons publicou The Structure of Social Action. Esta obra de sociologia desvia-se da preocupação com a crise económica e política do seu tempo e interpreta as ideias de alguns pensadores europeus mais antigos, donde extrai um esquema de pensamento sociológico muito abstracto e geral. Parsons examina quatro pensadores, Alfred Marshall, Pareto, Durkheim e Weber, cujos estilos de pensamento constituem um movimento importante na estrutura do pensamento teórico sobre os problemas do homem e da sociedade, deixando de lado pensadores tais como Marx e Freud, Bonald e de Maistre, Saint Simon e Tocqueville ou mesmo Herbert Spencer. A teoria da acção social de Parsons é claramente sistémica e funcionalista. Mas, com esta referência histórica, não pretendo examinar a teoria da acção social de Parsons, mas apontar noutra direcção: a necessidade de regressar a Marx, o autor ignorado por Parsons, de resto mais preocupado em promover a manutenção da ordem social capitalista do que em contribuir para a construção de um "mundo melhor" (Bloch), que nos permite repensar outro modelo alternativo de sociedade. De facto, até mesmo uma leitura superficial da sua obra mostra-nos que a teoria de Marx se opõe frontalmente à teoria funcionalista que, apesar de caduca e ferida de morte pela actual crise financeira, ainda sobrevive nos modelos de equilíbrio ou de consenso predominantes, nomeadamente na sua última versão sociológica de cariz sistémico, a de Niklas Luhmann. Onde o funcionalismo destaca a harmonia social, o marxismo destaca o conflito; onde o funcionalismo dirige a sua atenção para a estabilidade e a persistência das formas sociais, o marxismo é radicalmente histórico na sua perspectiva e destaca a estrutura mutável da sociedade; onde o funcionalismo se concentra sobre a regulamentação da vida social por valores e normais gerais, o marxismo acentua a divergência de interesses e valores dentro de cada sociedade e o papel da força no sentido de manter, por um período maior ou menor de tempo, uma determinada ordem social. Dahrendorf foi um dos primeiros autores a fazer o contraste entre modelos de equilíbrio e modelos de conflito da sociedade. Apesar de Engels ter falado de "socialismo científico", numa cedência inadmíssivel ao positivismo predominante no seu tempo, o de Comte, Dahrendorf ou Popper acusam o marxismo de ser utópico, propondo uma nova reorientação da análise sociológica. O abandono da utopia significa abraçar a ideologia que glorifica a ordem social estabelecida: a ideologia de mercado (Ricoeur) transformada em pensamento unidimensional (Marcuse) ou único. No tempo em que Marx escreveu O Capital, as classes dirigentes não distribuíam pão pelas grandes populações urbanas, mas desde a crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial, graças às autoridades políticas e à sua intervenção na economia, os exploradores escravizam as massas com homenagem, subsistência (consumo) e hospitalidade (Cf. Stanislaw Ossowski), ao mesmo tempo que aparentam suavizar o uso da violência física através da acção contínua dos aparelhos ideológicos de Estado, não tanto a escola como pensava Althusser, mas sobretudo as "indústrias da consciência". O discurso do fim das ideologias defendido por D. Bell e R. Aron preparou o terreno para o triunfo do neoliberalismo a partir dos anos 80: o consenso repressivo em torno da economia de mercado perspectivada em função do modelo do equilíbrio, recentemente desmentido pela crise financeira (G. Soros), e da democracia liberal.
Vivemos actualmente a segunda maior crise do capitalismo e, tal como Parsons ou mesmo Heidegger que escrevia sobre Hölderlin enquanto os judeus eram mortos nos campos de concentração, nós precisamos ignorar as obras publicadas nas últimas décadas dominadas pelo neoliberalismo, porque a pós-modernidade mais não é do que a versão filosófica (Lyotard), artística (Charles Jencks) e literária (Cf. Jameson) da ideologia fatalista de mercado global das finanças e da comunicação, e retomar pensadores verdadeiramente criativos e profundos, entre os quais Marx. Porém, retomar Marx exige espírito crítico, precisamente a atitude que percorre toda a sua obra e que possibilita a sua actualização sem dogmatismo doutrinário. Embora a teoria de Marx tenha sido apropriada de modo positivista pelas ciências sociais, como mostrou Hannah Arendt, voltar a Marx significa retomar uma concepção enfática da razão, capaz de mostrar que as ciências sociais fracassaram na sua missão crítica e de submeter o positivismo ao tribunal da razão. Neste sentido, o regresso de Marx pode ser encarado como destruição das ciências sociais, emergência da Filosofia na sua concepção imperial que visa resgatar o Ocidente, denúncia da ciência como ideologia e crítica radical do positivismo e das suas versões envergonhadas. Isto significa que a Filosofia não se conforma com o papel que lhe foi atribuído por Habermas, o de guardador de lugar e de intérprete, no seio da multiplicidade das vozes da razão. Kant, Hegel e Marx continuam a constituir a trilogia astral da Filosofia, a única capaz de iluminar o momento presente de ofuscamento sombrio.
Concepção Ostensiva de Filosofia. Kant distinguiu entre o conceito escolástico e o conceito do mundo de Filosofia, definindo-a, neste último sentido, como "a ciência da relação de todo o conhecimento e de todo o uso da razão com o fim último da razão humana, ao qual, enquanto fim supremo, todos os outros fins estão subordinados, e no qual estes têm que se reunir de modo a constituir uma unidade". Assim, o domínio da Filosofia, neste sentido cosmopolita (in sensu cosmico), "deixa-se reduzir às seguintes questões: 1) O que posso saber?, 2) O que devo fazer?, 3) O que me é lícito esperar?, (e) 4) O que é o homem?. À primeira questão responde a Metafísica; à segunda, a Moral; à terceira, a Religião; e à quarta, a Antropologia. Mas, no fundo, poderíamos atribuir todas essas (questões) à Antropologia, porque as três primeiras questões remetem à última". Ernst Bloch, Herbert Marcuse ou Lucien Goldmann, entre outros, assumiram este conceito kantiano ostensivo de Filosofia, segundo o qual a filosofia é, em última análise, antropologia, ou, como prefiro dizer, conhecimento antropo-orientado. Defendê-lo novamente implica a destruição das ciências sociais que, ao abrigo do positivismo, se apoderaram de territórios da filosofia, convertendo-os em meras positividades colocadas ao serviço do fortalecimento musculado da burocracia estatal e do lucro privado, a denúncia da ciência como ideologia colocada ao serviço da dominação da natureza externa e interna (a crítica da racionalidade instrumental de Horkheimer & Adorno), enfim a crítica radical do positivismo e das suas versões envergonhadas (Albrecht Wellmer), entre as quais temos a filosofia analítica e a análise formal e informal de argumentos que abdicam do pensamento crítico e atrofiam a imaginação política.
Crítica Radical do Positivismo. Assumir este conceito ostensivo de Filosofia, exige necessariamente uma crítica do positivismo e do seu predecessor, o empirismo inglês. Marcuse analisou o papel determinante da dialéctica hegeliana nesta luta contra o positivismo: "O idealismo alemão defendia a filosofia dos ataques do empirismo inglês, e a luta entre as duas escolas não significava simplesmente o choque entre duas filosofias diferentes, mas uma luta em que estava em jogo a filosofia como tal". Hegel soube defender a filosofia como tal contra os ataques empiristas: a sua filosofia "é, na verdade, aquilo de que foi acusada pelos seus opositores imediatos: uma filosofia negativa, (...) motivada pela convicção de que os factos que aparecem ao senso comum como indícios positivos da verdade são, na realidade, a negação da verdade, tanto que esta só pode ser estabelecida pela destruição daqueles. (...) A dialéctica está inteiramente ligada à ideia de que todas as formas de ser são perpassadas por uma negatividade essencial e que esta negatividade determina o seu conteúdo e movimento. A dialéctica constitui a oposição rigorosa a qualquer forma de positivismo. De Hume aos positivistas lógicos (e analíticos) da actualidade (Moritz Schlick, Carl G. Hempel, Rudolf Carnap, Hans Hahn, Otto Neurath, A. J. Ayer, C. L. Stevenson, Frank P. Ramsey, Gilbert Ryle, Friedrich Waismann, B. Russell), o princípio de uma tal filosofia tem sido o prestígio definitivo do facto, e o seu método fundamental de verificação, a observação do dado imediato. O positivismo assumiu, em meados do século XIX, e principalmente em resposta às tendências destrutivas do racionalismo, a forma de uma "filosofia positiva" que englobaria todo o saber e que iria substituir a metafísica tradicional. As figuras mais eminentes deste positivismo acentuaram com muito vigor a atitude conservadora e acrítica da sua filosofia: o pensamento era por ela induzido a contentar-se com os factos, a renunciar a transgredi-los e a submeter-se à situação (social) vigente. Para Hegel, os factos enquanto factos não têm autoridade. Eles são "propostos" (gesetzt) pelo sujeito, que os mediatiza pelo processo de compreensão do seu desenvolvimento. A verificação repousa, em última análise, neste processo, ao qual se relacionam todos os factos e que lhes determina o conteúdo. Tudo o que é dado tem de justificar-se perante a razão; esta nada mais é do que a totalidade das capacidades da natureza e do homem".
A dialéctica hegeliana conclui que a história atingiu a realidade da razão, isto é, a reconciliação da ideia com a realidade. Isto significa que a filosofia atingiu a sua meta: Hegel acredita ter formulado a visão do mundo no qual se realiza a razão e, com a Revolução Francesa, o pensamento deixa de referir-se ao ideal. A dialéctica está concluída e o apogeu da filosofia é, ao mesmo tempo, a sua renúncia. Liberta da preocupação com o ideal, a filosofia deixa de fazer oposição à realidade estabelecida e de ser filosofia. Ora, Marx não chegou a escrever as 20 páginas sobre a dialéctica, mas os seus textos revelam claramente que a sua dialéctica é um processo aberto, portanto, não-concluído. Com Marx o pensamento crítico não cessa e assume uma nova forma: os esforços da razão denunciam o princípio de identidade estipulado por Hegel e dirigem-se para a teoria social e para a praxis política: "no sistema de Hegel todas as categorias acabam por se aplicar à ordem existente, enquanto no sistema de Marx elas se referem à negação desta ordem. (As categorias de Marx) visam uma nova ordem da sociedade, mesmo quando descrevem a forma corrente da sociedade. Elas dirigem-se essencialmente a uma verdade que está para vir através da abolição da sociedade civil. A teoria de Marx é uma "crítica", no sentido de que todos os seus conceitos são uma acusação da totalidade da ordem existente" (Marcuse).
Destruição das Ciências Sociais. A luta contra o positivismo e suas versões travestidas é uma luta interna à Filosofia, porque o positivismo é uma mera filosofia. Porém, esta luta tem efeitos exteriores à filosofia, efeitos nas suas relações com as ciências e as artes e, sobretudo, com a política. Nesta luta contra o positivismo, a dialéctica não está sozinha: Husserl, Heidegger, Gadamer, Arendt, Davidson, Ricoeur, Hans Jonas, Lévinas e Derrida, entre outros, deram também inicio à destruição das ciências sociais e da ciência como ideologia. As ciências sociais têm ajudado a manter e a legitimar a ordem estabelecida: são meras "técnicas de adaptação social" (Althusser). Marx sabia que a "sociologia", a economia, o direito ou a demografia eram meras armas ideológicas usadas pela burguesia para justificar ideologicamente a conservação da ordem estabelecida e a sua dominação, apresentando-a como uma "ordem natural". Estamos diante de uma das operações utilizadas frequentemente pela "ideologia dominante" para apresentar a sociedade estabelecida como um sistema incontornável, acima da "vontade humana" e da história, portanto, como uma "fatalidade". Deste modo, a ideologia dominante, o neoliberalismo, deturpa e encobre tudo, não só as possibilidades históricas de mudança social, como também o espírito da própria ciência social, como se esta tivesse por missão descobrir as "leis naturais" da sociedade, à semelhança do que fazem as "ciências naturais" (crítica do naturalismo). Positivismo e glorificação (ideológica) da ordem social dominante são a mesma coisa: Francis Fukuyama anunciou o fim da História, alcançado com o estabelecimento derradeiro da economia de mercado e da democracia liberal. A actual crise financeira refuta o liberalismo económico e coloca novamente a análise marxista do capitalismo na agenda política e filosófica. A crítica da ideologia aplicada aos discursos produzidos pelas ciências sociais e à organização social da ciência continua a ser pertinente e também aqui Marx é absolutamente actual. Só mediante a crítica da ideologia podemos libertar a imaginação política e procurar vislumbrar novas alternativas sociais capazes de salvaguardar a aventura ocidental: a tarefa prática da filosofia é iluminar a praxis que visa a transformação qualitativa do mundo.
J Francisco Saraiva de Sousa

2 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, este post está quase concluído e, tal como se apresenta, constitui um manifesto, ou melhor, um programa de mudança de paradigmas. Porém, muitos aspectos focados têm sido tratados noutros posts. É um trabalho de pesquisa em andamento.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Está concluído: os acrescentos feitos ajudam a clarificar as teses em debate. O texto de Marx em epígrafe é sintomático: a classe operária deve cuidar de si. O nó que ligava a sua luta à filosofia foi quebrado.