terça-feira, 28 de outubro de 2008

Prós e Contras: O Valor da Casa

«O paradigma predominante, a teoria do equilíbrio e o seu derivado político, o fundamentalismo de mercado, não só se revelou incapaz de explicar o actual estado de coisas, como pode ser considerado responsável por nos lançar na confusão em que estamos. Precisamos urgentemente um novo paradigma».
«Uma indústria financeira à solta e perturbada está claramente a destruir a economia. Precisa de ser dominada. A criação de crédito, pela sua natureza, é um processo reflexivo. Precisa de ser regulada de forma a evitar excessos». (George Soros)
Prós e Contras (27 de Outubro de 2008) debateu o valor da casa, em função dos efeitos da actual crise financeira. Hoje o programa foi dividido em duas partes distintas, embora comunicantes: uma primeira parte dedicada ao funcionamento do Fundo Imobiliário, e uma segunda parte que se debruçou sobre o mercado imobiliário. Os participantes não foram os mesmos em ambas as partes.
Funcionamento do Fundo Imobiliário. Francisco Louçã destacou-se nesta primeira parte por ter neutralizado e desmentido completamente o Secretário de Estado do Tesouro, Carlos Costa Pina. A lei do Fundo de Investimento Imobiliário está, segundo o líder do Bloco de Esquerda, repleta de "coisas estranhas", talvez porque em Portugal haja uma "bolsa ou bolha especulativa" instalada, de resto evidenciada pela cumplicidade existente entre o secretário de Estado e os dois representantes da Banca, Paulo Sousa (Caixa Geral de Depósitos) e Jorge Góis (BCP). Em termos simples, esta lei implica a "perda ou alienação de propriedade": os imóveis são adquiridos por fundos e as famílias começam a pagar juros sujeitos às flutuações de certos coeficientes legais que, em Portugal, são "juros agiotas", "excessivos", e, na condição de inquilinos, deixam de amortizar, porque a casa deixa de lhes pertencer. No fundo, como acentuaram Francisco Louça e Rosário Águas (deputada), esta lei beneficia evidentemente os bancos, porque "limpa o crédito mal parado". Trata-se de uma lei que não beneficia as pessoas e a prova disso reside no interesse manifestado desde logo pelos bancos na criação do Fundo Imobiliário. Aliás, Paulo Sousa aproveitou a ocasião para "fazer publicidade ilícita e enganosa na RTP", porque, segundo Louça, os seus cálculos pressupunham o conhecimento dos regulamentos que ainda não foram aprovados na Assembleia da República. Carlos Costa Pina socorreu-o imediatamente da crítica que lhe foi dirigida por Louçã, em vez de assumir uma atitude digna de "secretário de Estado". Além disso, depois da crise do subprime, ainda teve a ousadia de garantir a confiança nos "fundos" que irão possibilitar a aquisição dos imóveis. Não apresentou qualquer outra alternativa, nomeadamente a defesa do mercado de arrendamento ou o recurso ao "período de carência": limitou-se a defender os interesses da "bolsa especulativa" que estrangula Portugal. Gostei da atitude dos dois deputados presentes que mostraram maior sensibilidade para o lado das pessoas comuns e não para o lado dos luso-interesses instalados. Se a lei tem um carácter classista e fraudulento, deve ser desmistificada pela oposição e/ou clarificada pelo Governo que, neste aspecto, mais parecia um governo que tudo faz para "socializar os prejuízos privados", ao mesmo tempo que lhes abre novos mercados de lucro fácil obtido à custa da miséria e da privação das pessoas. O fortalecimento e o enriquecimento fraudulento do sector bancário não produz riqueza nacional: as mais-valias dos bancos enriquecem apenas os seus accionistas e gestores com ordenados verdadeiramente chorudos, além de constituírem uma tentação para os chamados políticos-gestores. O capitalismo financeiro é uma força destrutiva usada por uma minoria para explorar a maioria da população. Portugal está completamente dominado pela exploração desumana do homem pelo homem.
Mercado da Habitação. Em Portugal, a partir de determinado momento após o 25 de Abril, os bancos começaram a incentivar a aquisição de casa própria e a facilitar o crédito, algum crédito hipotecário de alto risco: o resultado foi que actualmente "ninguém sonha em ser inquilino" (José Eduardo Macedo), mas uma percentagem significativa dos novos proprietários estão com dificuldade em pagar as prestações mensais aos bancos, devido ao aumento contínuo dos juros e à quantidade de impostos pagos para ter casa, além da manutenção. O mercado do crédito à habitação ajudou, como observou Margarida Pereira (geógrafa), os bancos a enriquecer à custa de muitos sacrifícios exigidos às pessoas e às famílias que foram enganadas pela "cantiga do bandido bancário". Durante todo este período anterior à actual crise financeira, os bancos facilitaram o crédito, levando as pessoas a viver muito acima das suas possibilidades reais para satisfazer a fantasia de ser proprietárias da sua própria casa. Ora, a crise financeira vem refrear esse crédito: chegou-se ao "fim do dinheiro barato" (Fátima Campos Ferreira), embora em Portugal o dinheiro tenha sido sempre muitíssimo caro, a começar pelos juros agiotas e excessivos que excedem em muito a quantia paga para amortização do empréstimo. A lei do Fundo de Investimento Imobiliário vai tentar proteger os bancos dos efeitos da crise financeira, socializando os seus prejuízos e penalizando os mais inocentes, as pessoas que foram enganadas, manipuladas e exploradas: o Estado intervém apenas para socializar os prejuízos privados, de modo a garantir a estabilidade do sistema vigente, assente numa forma execrável de exploração desumana da maioria dos portugueses por uma minoria de privilegiados.
Esta segunda parte do programa foi muito mais importante e rica em ideias do que a primeira parte. Com excepção de destaque de Reis Campos (Federação da Construção), secundado por Guilherme Vilaverde (Mediação Imobiliária), todos os outros participantes avançaram com ideias pertinentes e válidas relativas à construção de um verdadeiro mercado imobiliário plural e mais acessível em termos de preços. Manuel Salgado (Vereador da CMLisboa) defendeu que o valor das casas devia baixar de modo significativo para que os grandes centros urbanos voltassem a ser repovoados ou habitados. Guilherme Vilaverde (Habitação Social) defendeu o sector cooperativo e a habitação de low cost, de resto uma experiência bem sucedida em Matosinhos, devido à conjugação de diversos esforços e de uma "política de solos" que não permite que haja especulação com os preços dos terrenos, como sucede em Lisboa e no Porto, porque a construção não "tem finalidade lucrativa". Além disso, o sector cooperativo está a ajudar a reabilitação urbana, garantindo casa para os jovens no centro das grandes cidades, como sucede já no Porto. Maria João Freitas (socióloga), ela própria uma inquilina, reforçou a ideia nefasta das pessoas terem sido "empurradas" para a aquisição de casa, quando na verdade se deveria ter apostado mais no mercado do arrendamento, com preços regulados pelo Estado, para evitar o "roubo descarado" tão frequente em Portugal. Apenas Reis Campos distanciou-se destas ideias novas e positivas, afirmando que existem mais casas à venda, que o valor das casas não vai descer, que as pessoas sonham em ser proprietárias, que os preços das casas novas, de qualidade acrescida, não tem aumentado significativamente nos últimos anos, enfim que os preços das casas em segunda mão é que estão acima do seu valor real. Estas últimas estão sem valor de mercado, porque só estão à venda "na cabeça dos seus proprietários". E José Eduardo Macedo garantiu que as casas estão "imunes à perda de valor". Como recordou maliciosamente Fátima Campos Ferreira, os agentes da construção ou da mediação imobiliária comportam-se como os bancários: dizem que tudo está bem para evitar o agravamento dos prejuízos acumulados ou, pelo menos, encobrir as dificuldades que atravessam. Eles negaram a pluralidade de ofertas alternativas e de novas opções: as pessoas podem e devem optar, como acentuou Maria João Freitas. Todas as ideias avançadas e outras não ventiladas podem ajudar a salvar e valorizar o património habitacional que, por diversas razões, está muito degradado em Portugal.
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Filosofia da Casa: Espaço de Intimidade

A filosofia do habitar confronta-se, no momento presente, com um inimigo conjuntural, a actual crise financeira, e com diversos inimigos estruturais, dos quais destacaremos: o inimigo histórico, o inimigo político e o inimigo sociológico.
Inimigo Histórico. Todas as teorias da modernização afirmam que a modernidade conduziu invariavelmente à secularização: as instituições religiosas perderam influência sobre a sociedade e a interpretação religiosa do mundo perdeu credibilidade na formação da consciência das pessoas. Estas duas dimensões da secularização não podem ser abordadas separadamente: no seu aspecto objectivo, sócio-estrutural, a secularização manifesta-se na retirada das Igrejas cristãs de esferas que estavam sob o seu domínio e influência e implicou a separação da Igreja e do Estado, a expropriação das terras da Igreja ou a emancipação da educação do poder eclesiástico. Porém, dado ser um processo mediante o qual sectores da sociedade e da cultura foram subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos, a secularização não só afectou a totalidade da vida cultural e da cognição, como também, na sua vertente subjectiva, produziu um número crescente de indivíduos que encaram o mundo e as suas próprias vidas sem o recurso às interpretações religiosas. Surgiu assim o "ser humano moderno", o homem profano ou secular de Eliade, que acredita poder viver, privada e publicamente, sem a religião. A secularização da consciência teve maior impacto na história do Ocidente do que a secularização social.
Mircea Eliade encara a dessacralização da morada humana como parte integrante dessa gigantesca transformação do mundo assumida pelas sociedades industriais modernas, "transformação tornada possível pela dessacralização do Cosmos, efectuada pelo pensamento científico, e sobretudo pelas descobertas sensacionais da Física e da Química". Para Le Corbusier, a casa é uma mera "máquina de habitar" inserida e alinhada entre as inúmeras máquinas fabricadas em série nas sociedades modernas. A "casa ideal do mundo moderno" deve ser funcional, no sentido de possibilitar o repouso necessário para a recuperação da força-de-trabalho, e pode ser facilmente trocada, como "se troca uma bicicleta, um frigorífico ou um carro". A funcionalização da casa e do habitar operada por uma economia de mercado que visa a colonização de toda a sociedade, da natureza e da própria cultura, acabou por conduzir à perda do mundo ou, como diz Hannah Arendt, ao alheamento do mundo. Como afirma Eliade: Para os homens sem religião, o Cosmos tornou-se opaco, inerte e mudo. Até mesmo os cristãos urbanos abandonaram a liturgia cósmica e, por isso, a sua experiência religiosa já não é "aberta" ao Cosmos e o Mundo já não é sentido como obra de Deus: a sua experiência religiosa empobrecida é estritamente privada e visa unicamente a sua própria salvação. Historicamente, o inimigo do habitar autêntico é o próprio capitalismo selvagem que se apropria da terra, devastando-a, e, por isso, a filosofia do habitar é necessariamente uma crítica da irracionalidade do capitalismo, que assume corajosamente o antropocentrismo para melhor "resguardar a quadratura" (Heidegger).
Inimigo Político. Como resultado do desaparecimento de todas as ordens tradicionais aparentemente estáveis, o homem secular desconfia de tudo aquilo que tenha um aspecto de segurança. Aqueles que defendem a importância crucial da casa na vida humana são vistos como indivíduos suspeitos, burgueses ou conservadores. Os românticos reprovavam aqueles indivíduos que se encastelavam na sua casa, levando aí uma vida inactiva e cómoda. Para Schiller, o homem deve sair de casa e ir para o mundo exterior para cumprir as suas tarefas quotidianas e cívicas nesse mundo hostil, expondo-se aos seus perigos. Contudo, segundo Schiller, após cumprir as suas tarefas no mundo exterior, o homem deve ter a possibilidade de voltar ao amparo e ao abrigo da sua casa. Ambos os aspectos polarizados da vida humana são necessários, porque a saúde interior do homem repousa no equilíbrio entre o trabalho e a luta no espaço externo que é o mundo e a tranquilidade no espaço interno da casa.
Por isso, em vez de encarar a política do sentido como uma estratégia conservadora, o pensamento de esquerda deve aprender a olhar, de outro modo, mais positivo e edificante, para a casa, o lar (família), a pátria e os seus valores intrínsecos: a tarefa inalienável do homem é criar este espaço de acolhimento, construindo a sua casa e defendendo-a contra qualquer tentativa de invasão alheia, nomeadamente da intervenção do Estado e das modernas psico-empresas na esfera privada e íntima dos cidadãos.
Inimigo Sociológico. Este inimigo é relativamente recente, está associado à pós-modernidade e parece ser mais um fantasma sociológico do que uma realidade efectiva. Bauman deu-lhe visibilidade: todas as suas figuras humanas pós-modernas, o deambulador, o vagabundo, o turista e o jogador, definem-se por oposição à figura moderna do peregrino, como se estivéssemos condenados a viver num mundo absolutamente contingente, numa atitude passiva de infinita mobilidade e de consumismo voraz. A sociologia enquanto pensamento sociocêntrico é pensamento anónimo e conformista e, por isso, tende a fazer a apologia do status quo, bloqueando a mudança social qualitativa. A filosofia do habitar é clara e frontalmente contra qualquer tipo de pensamento sociológico, mesmo daquele que se afirma herdeiro de Marx.
Como vimos noutro post, Mircea Eliade mostrou que o sagrado e o profano são duas modalidades de experiência e de ser no mundo, isto é, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história, que devem ser estudadas pela antropologia filosófica. A dessacralização do mundo operada pela modernização não aboliu certos traços da conduta do homem arcaico, que ainda persistem no estado de "sobrevivências" ou de "comportamentos cripto-religiosos". Contudo, a perspectiva de Eliade vacila a este propósito, porque, noutro contexto, afirma que, "num mundo dessacralizado como o nosso, o «sagrado» se encontra presente e activo principalmente nos universos imaginários". Ora, como mostrou Bachelard, as experiências imaginárias fazem parte do ser humano total e, ao contrário do que pensa Eliade, estas experiências não são nocturnas mas diurnas ou, como diz Bloch, são sonhos de um mundo melhor. Se o objectivo é constituir uma autêntica antropologia filosófica, devemos ver nessas "sobrevivências" o "traço fundamental do habitar": "Ser homem consiste em habitar e, isso, no sentido de um de-morar-se dos mortais sobre esta terra" (Heidegger). Assim, alguns aspectos estruturais desse traço fundamental da condição humana que Eliade reconduz à nostalgia do Paraíso são os seguintes:
1. A casa continua a ser o centro do mundo. No contexto do mundo mítico, a casa era regida de maneira "objectiva", protegida e santificada pela ordem sagrada do cosmos, mas, após a sua dessacralização, a estrutura do seu espaço é "subjectivamente" vivida e vivenciada diariamente como centro do mundo. De facto, toda a vida do homem gira em torno da sua morada, que funciona como ponto fixo de referência e de identidade, donde parte e ao qual regressa novamente depois de ter percorrido os lugares do mundo exterior.
2. A casa continua a conservar o seu aspecto particular que só pode ser captado através da sua analogia com o sagrado. Este aspecto sagrado da casa manifesta-se no carácter de sortilégio da violação do domicílio ou mesmo na inviolabilidade das leis da hospitalidade que possibilitam ao hóspede desfrutar a protecção da casa e atribuem ao dono a tarefa de zelar para que ninguém lhe cause qualquer tipo de dano. A casa é potencialmente um espaço inviolável e, por isso, de acesso limitado aos estranhos e aos inimigos.
3. A casa continua a ser uma esfera inviolável de paz, tranquilidade, intimidade e repouso, marcadamente separada do mundo exterior. Já não se trata de defender a casa da penetração de demónios hostis que ameaçam o homem fora da sua casa e cuja infiltração deve ser evitada por meios mágicos, mas o carácter ameaçador deste mundo alheio não desapareceu completamente, sendo protagonizado por novas forças sociais, políticas, económicas e ideológicas que se introduzem no interior do espaço da casa, sem serem desejáveis ou mesmo aceites.
4. A casa continua a ser uma imagem do mundo, mas de um mundo em miniatura que está em correspondência com o mundo exterior. Se a casa é o nosso primeiro mundo, como diz Bachelard, então ainda é um cosmos e, sendo assim, a casa e o mundo correspondem-se de alguma maneira. A criança vê a sua casa como o mundo inteiro e o seu enraizamento nesse solo pátrio permite-lhe crescer e prepara-se para a vida no mundo exterior. Graças ao facto de habitar na sua casa, o homem pode aprender a habitar o mundo exterior mais vasto e sentir-se no mundo como se estivesse em sua casa.
Coube a Minkowski analisar o carácter da morada que é a intimidade, mas, para desfrutar essa intimidade da casa, é preciso partilhá-la com a comunidade da família. Deste modo, a casa e a família encontram-se inseparavelmente ligadas para criar a sensação humana de amparo. O lar é um espaço aberto a um círculo reduzido de amigos e de pessoas íntimas. Segundo Minkowski, a essência da casa não pode ser captada a partir do indivíduo isolado, o celibatário ou o viúvo, mas apenas a partir da comunidade familiar e dos amigos próximos e íntimos: a casa é fundada não por um mas por dois indivíduos. Sem se aperceber dessa conexão essencial, Minkowski retoma uma noção antiga de lar. Fustel de Coulanges apreendeu-a quando escreve: "Toda a casa do grego ou do romano abrigava um altar; sobre ele devia haver sempre cinzas e brasas. Era obrigação do dono da casa conservar o fogo acesso dia e noite. Grande desgraça seria para a casa se o fogo se extinguisse! Ao anoitecer, eram cobertos de cinza os carvões, para se evitar que se consumissem inteiramente durante a noite; pela manhã, o primeiro cuidado era avivar o fogo e alimentá-lo com alguns ramos secos. O fogo só deixará de brilhar sobre o altar quando toda a família estivesse extinta; lar extinto, família extinta, eram expressões sinónimas entre os antigos". O capitalismo ameaça destruir este fogo do lar e, com ele, a própria humanidade do homem, que mantém prisioneiro da condição metabolicamente reduzida numa terra devastada. "Eu habito, tu habitas, nós habitamos" a "nossa casa", a "nossa terra", o "nosso mundo", a "nossa pátria": é assim que o revolucionário conjuga o verbo "habitar". O devaneio do sonhador solitário, até mesmo quando revisita a casa paterna ou a casa natal, por vezes numa atitude de nostalgia, mas frequentemente numa atitude de esperança militante, sonha diurnamente a casa onírica: a pátria da identidade da humanidade naturalizada e da natureza humanizada. (Sobre a poética da Casa pode ler três posts já editados aqui, bem como outro sobre Merleau-Ponty, entre tantos outros.)
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 26 de outubro de 2008

Positivismo Lógico e Superação da Metafísica

«O desenvolvimento da lógica moderna tornou possível dar uma resposta nova e mais precisa ao problema da validez e da justificação da metafísica. (...) No campo da metafísica (incluindo a filosofia dos valores e a ciência normativa), a análise lógica conduziu ao resultado negativo de que as pretensas proposições de dito campo são totalmente carentes de sentido. (...) As pretensas proposições da metafísica são, na realidade, pseudo-proposições. (...) O metafísico sofre a ilusão de que, por meio das proposições metafísicas, se declara algo, se descreve uma situação objectiva. O metafísico acredita mover-se no terreno do verdadeiro e do falso quando na realidade não afirmou nada, mas somente expressou algo como um artista». (Rudolf Carnap)
Na sua crítica do positivismo lógico, levada a cabo em nome da dialéctica, Galvano Della Volpe reduziu, a partir da exposição de W.H. Wermeister, a lógica anti-metafísica que resulta da filosofia do Círculo de Viena (Victor Kraft) a sete princípios gerais:
1. O conhecimento só é conhecimento pela sua forma: no conhecimento só a forma tem importância, tudo o resto é inessencial (Schlick);
2. Uma proposição só tem um significado enquanto pode ser verificada (Schlick): verificar uma proposição significa simplesmente ver se ela segue ou não as regras estabelecidas pela conexão daquela proposição numa dada linguagem;
3. Há apenas um conhecimento empírico, baseado no que é dado directamente (Schlick), e os dados da sensação, que são a base do conhecimento, como já defendia Mach, são proporcionados por proposições protocolares ou primeiras ou elementares indiscutíveis;
4. A análise lógica da linguagem demonstra que todas as proposições metafísicas são pseudo-proposições e que são inteiramente desprovidas de significado (Carnap);
5. Todos os campos de pesquisa são partes de uma ciência unitária: a física (Neurath, Carnap), o chamado fisicalismo;
6. As proposições da lógica são tautologias (Wittgenstein);
7. A matemática é um método lógico (Wittgenstein): todos os conceitos matemáticos podem ser derivados dos conceitos fundamentais da lógica (Carnap).
O Círculo de Viena que se formou em torno de Moritz Schlick não pode ser reduzido a um círculo de alunos que assumiam as teses de um mestre, mas deve ser visto como um círculo de estudiosos interessados na filosofia, cujo trabalho de construção intelectual conjunta renovou e reformou o positivismo e o empirismo no intervalo entre as duas Grandes Guerras Mundiais. Apesar de termos resumido as teses fundamentais deste movimento filosófico mundial em sete princípios gerais, o Círculo de Viena não foi dominado por concepções uniformes, sendo atravessado por duas orientações: uma radical, representada por Neurath e acompanhada por Hahn e Carnap, e outra mais moderada, representada por Schlick. A orientação fundamental comum era a cientificidade da filosofia. Com base na física (Planck), nas "ciências exactas", na nova lógica (Whitehead & Russell) e na filosofia da linguagem (Wittgenstein), os positivistas lógicos consideram que as exigências rigorosas do pensamento científico, a saber, a claridade unívoca, o rigor lógico e a fundamentação suficiente, devem ser válidas na filosofia. Isto significa que as afirmações dogmáticas e as especulações incontroladas que a têm dominado até hoje devem ser eliminadas. Daí que tenha surgido neste grupo a oposição radical contra toda a metafísica dogmático-especulativa: a tentativa de eliminar completamente a metafísica é a razão que vincula o Círculo de Viena ao positivismo. A busca pela cientificidade da filosofia é empreendida pela via da destruição da metafísica. Destruir a metafísica significa afirmar o conhecimento científico como único e exclusivo conhecimento empírico sujeito à lógica da verificação: o fisicalismo de Otto Neurath, isto é, a ciência unificada assente numa linguagem unificada com a sua sintaxe unificada, numa palavra, a linguagem da física. A "viragem da filosofia" (Die Wende der Philosophie) de Schlick e a "superação da metafísica" (Überwindung der Metaphysik) de Carnap ajudam a clarificar melhor esta tarefa empreendida pelo Círculo de Viena.
Husserl e Russell procuraram conduzir a filosofia pelo caminho seguro da ciência, mas, depois da Primeira Guerra Mundial, Wittgenstein desfez este sonho e, em vez da ciência de rigor, surgiu a convicção de que a figura clássica da filosofia, a metafísica, está terminada. Os filósofos do Círculo de Viena nunca clarificaram muito bem aquilo que estavam a superar: a metafísica. Numa primeira aproximação, ficamos com a ideia vaga de que a superação positivista da metafísica consiste em negar a sua possibilidade e, num só e mesmo acto, afirmar todo o conhecimento que "permanece dentro do dado". Porém, Schlick tem consciência da insuficiência desta primeira aproximação: a metafísica definida como a teoria do "verdadeiro ser", da "realidade em si mesma", do "ser transcendente", supõe que exista um ser inautêntico e puramente aparente, precisamente o reino das aparências que estão imediatamente presentes e que, portanto, nos são "dadas", enquanto a realidade metafísica deve ser, de um modo indirecto, inferida a partir dessas aparências. Assumir este conceito de metafísica ou encarar os dados como conteúdos da consciência equivale a identificar o positivismo e o idealismo, quando na realidade ambos são incompatíveis. Convicto de que se encontrava "num ponto de viragem definitivo da filosofia", capaz de pôr termo ao "estéril conflito entre os sistemas" filosóficos, Schlick socorre-se dos "meios disponíveis", aqueles que foram forjados silenciosamente pela lógica moderna (Leibniz, Frege, Russell e Wittgenstein), e aplica-os resolutamente, de modo a clarificar a função significativa da linguagem e a livrar-se dos problemas tradicionais da "teoria do conhecimento": "A enunciação das circunstâncias em que uma proposição resulta verdadeira é o mesmo que a enunciação do seu significado, e não outra coisa. (...) O significado de toda a proposição terá que ser determinado, em última instância, pelo dado e não por qualquer outra coisa distinta" (Schlick). O significado de uma proposição é determinado pelo método da sua verificação: "toda a proposição possui significado somente quando pode ser verificada", isto é, contrastada com a experiência. Isto significa que o critério de delimitação ou demarcação entre conhecimento científico e metafísica reside na "linguagem especial do empirismo". Nesta linguagem, o significado das proposições sobre factos exige, em última análise, a mostrabilidade daquilo que é dito no vivencialmente dado. Com o estabelecimento desta condição, limita-se o significado dos enunciados ao experimentável, ou seja, ao dado nas vivências. As proposições da metafísica transcendem a experiência e, por isso, carecem de significado e são inverificáveis. "Carente de significado" significa carente de significado teórico, isto é, destituído de conteúdo, e não "sem sentido", porque as proposições metafísicas podem ter sentido, embora não sejam redutíveis ao perceptível.
Uma questão deve ser colocada: O que sucede com a filosofia após a superação da metafísica? Na sua conferência de 1928, Heidegger apela para a superação da metafísica, mas o modo como a pensa leva-o a reactualizar uma interrogação filosófica mais antiga que lhe permite recuperar o "pensamento do Ser", o "pensamento essencial". A posição dos positivistas lógicos é completamente diferente: aqui superar quer dizer rejeitar ou eliminar pura e simplesmente a metafísica. Aquilo que a substitui, a análise lógica da linguagem, tal como é praticada por Carnap, não é uma nova teoria filosófica, mas um mero método científico chamado "sintaxe lógica da linguagem da ciência". Isto significa que entre a filosofia e a ciência não existe nenhuma diferença de natureza. Schlick já tinha explicitado a tarefa da filosofia após a superação da metafísica: "A característica positiva da viragem do presente encontra-se no facto de que reconhecemos a filosofia como um sistema de actos, em vez de um sistema de conhecimentos. A actividade mediante a qual se descobre ou determina o sentido dos enunciados: essa é a filosofia. Por meio da filosofia clarificam-se as proposições, por meio da ciência verificam-se as proposições. A esta última interessa-lhe a verdade dos enunciados, à primeira o que realmente significam; a actividade filosófica de dar sentido cobre a totalidade do campo do conhecimento científico". Para Carnap, a linguagem de Heidegger é típica da metafísica clássica: é uma linguagem desprovida de sentido, primeiro porque se expressa nas línguas naturais, cujas estruturas gramaticais são, por definição, logicamente imperfeitas, e segundo porque persegue deliberadamente um objectivo contraditório, o de "apresentar um conhecimento sobre o qual a ciência empírica não tem poder". Ou, como diz Schlick, "não há, pois, outra prova e confirmação das verdades que não seja a observação e a ciência empírica. Toda a ciência é um sistema de conhecimentos, isto é, de proposições empíricas verdadeiras. E a totalidade das ciências, com inclusão dos enunciados da vida diária, é o sistema dos conhecimentos. Além disso, não há nenhum domínio de verdades "filosóficas". A filosofia não é um sistema de proposições, não é uma ciência", mas uma actividade que consiste em conferir de modo definitivo e final sentido aos enunciados e, neste sentido, "o grande investigador é também e sempre um filósofo".
A glorificação da ciência é compreensível num tempo em que se vivia uma revolução científica que ajudou a moldar o mundo contemporâneo para o bem e para o mal. Porém, a sua glorificação exclusiva é muito menos compreensível: "Todos os representantes deste Círculo, afirma Neurath, estão de acordo em que a "filosofia" não existe como disciplina, ao lado das ciências, com proposições específicas: o corpo de proposições científicas esgota a suma de todos os enunciados dotados de sentido". Tal como os sistemas idealistas absolutos, a ciência unificada reclama a exclusividade: só ela é conhecimento verdadeiro, o resto é tudo falso conhecimento. A filosofia e a ciência são as faces da mesma moeda: o sistema das proposições empíricas verdadeiras. Ou seja, fora da ciência não há conhecimento verdadeiro: os domínios da filosofia, tais como a ética, a estética ou a política, são, como dizia Carnap referindo-se à metafísica, realizações medíocres, isto é, os metafísicos são "músicos sem dom musical". A superação positivista da metafísica anula a história da filosofia ou, numa versão mais moderada, falsifica-a em nome do crescimento de uma ciência triunfante. Ironicamente, as reuniões do Círculo de Viena cessaram completamente em 1938 depois da anexação da Áustria pela Alemanha nazi e os seus membros dispersaram-se em todas as direcções: o Círculo dissolveu-se e os seus membros perderam o direito à palavra, porque, depois de terem destruído a metafísica em nome da ciência unificada, isto é, do fisicalismo, já nada poderiam dizer contra o nazismo que carecesse (ou tivesse?) de sentido. Os campos de concentração foram fisicalismo aplicado: destituídos de alma e tratados em termos estritamente behavioristas, o procedimento aconselhado por Neurath para a sociologia, os prisioneiros foram eliminados de acordo com os procedimentos cientificamente recomendados e com a utilização das tecnologias mais sofisticadas de extermínio humano. A construção da bomba atómica e o seu lançamento sobre Hiroshima e Nagasaki revelaram o poder destrutivo e inumano do fisicalismo. E, mais recentemente, os físicos contratados pela Bolsa de Wall Street revelaram todo o seu poder fisicalista na criação de cálculos que conduziram à actual crise financeira: o fisicalismo bolsista e financeiro. Acontecimentos como os referidos, sinais do terror do dado verificável que nos ameaça aniquilar, mostram que a metafísica não está terminada e que, nesta hora de combate, é necessário reabilitar a metafísica e retomar o projecto kantiano de pensar os limites dessa forma de conhecimento chamada ciência que destitui o homem da sua humanidade. A negação da metafísica pode ser identificada com o triunfo da trivialidade, da banalidade do mal e da expulsão da consciência antecipante. E, neste momento de crise radical, onde não se vislumbra o futuro, diversos argumentos podem ser aduzidos, tais como o argumento da ordem (Eric Voegelin), o argumento do jogo (Huizinga), o argumento da esperança (Bloch), o argumento da condenação (Arendt), enfim o argumento do humor (Bergson), para justificar a elaboração de uma antropologia filosófica que não esqueça a dimensão metafísica do homem.
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Marx e a Filosofia

Numa carta dirigida a Ruge, datada de Setembro de 1843, Marx escreveu: «Não sou de modo algum favorável a que ergamos a nossa própria bandeira dogmática. Muito pelo contrário... Não enfrentamos o mundo de modo doutrinário, com um novo princípio, dizendo: aqui está a verdade, curve-se diante dela. Desenvolvemos novos princípios para o mundo a partir dos seus próprios princípios já existentes... Podemos resumir a visão do nosso Jornal (Deutsch, Französische Jahrbücher) numa única frase: o autoconhecimento (filosofia crítica) da época nas suas lutas e objectivos. Esta é uma tarefa para o mundo e para nós mesmos». (Karl Marx)
Em 1937, durante a década da Depressão e do New Deal de Roosevelt, da Guerra Civil Espanhola e da aproximação do conflito com os Estados Fascistas, Talcott Parsons publicou The Structure of Social Action. Esta obra de sociologia desvia-se da preocupação com a crise económica e política do seu tempo e interpreta as ideias de alguns pensadores europeus mais antigos, donde extrai um esquema de pensamento sociológico muito abstracto e geral. Parsons examina quatro pensadores, Alfred Marshall, Pareto, Durkheim e Weber, cujos estilos de pensamento constituem um movimento importante na estrutura do pensamento teórico sobre os problemas do homem e da sociedade, deixando de lado pensadores tais como Marx e Freud, Bonald e de Maistre, Saint Simon e Tocqueville ou mesmo Herbert Spencer. A teoria da acção social de Parsons é claramente sistémica e funcionalista. Mas, com esta referência histórica, não pretendo examinar a teoria da acção social de Parsons, mas apontar noutra direcção: a necessidade de regressar a Marx, o autor ignorado por Parsons, de resto mais preocupado em promover a manutenção da ordem social capitalista do que em contribuir para a construção de um "mundo melhor" (Bloch), que nos permite repensar outro modelo alternativo de sociedade. De facto, até mesmo uma leitura superficial da sua obra mostra-nos que a teoria de Marx se opõe frontalmente à teoria funcionalista que, apesar de caduca e ferida de morte pela actual crise financeira, ainda sobrevive nos modelos de equilíbrio ou de consenso predominantes, nomeadamente na sua última versão sociológica de cariz sistémico, a de Niklas Luhmann. Onde o funcionalismo destaca a harmonia social, o marxismo destaca o conflito; onde o funcionalismo dirige a sua atenção para a estabilidade e a persistência das formas sociais, o marxismo é radicalmente histórico na sua perspectiva e destaca a estrutura mutável da sociedade; onde o funcionalismo se concentra sobre a regulamentação da vida social por valores e normais gerais, o marxismo acentua a divergência de interesses e valores dentro de cada sociedade e o papel da força no sentido de manter, por um período maior ou menor de tempo, uma determinada ordem social. Dahrendorf foi um dos primeiros autores a fazer o contraste entre modelos de equilíbrio e modelos de conflito da sociedade. Apesar de Engels ter falado de "socialismo científico", numa cedência inadmíssivel ao positivismo predominante no seu tempo, o de Comte, Dahrendorf ou Popper acusam o marxismo de ser utópico, propondo uma nova reorientação da análise sociológica. O abandono da utopia significa abraçar a ideologia que glorifica a ordem social estabelecida: a ideologia de mercado (Ricoeur) transformada em pensamento unidimensional (Marcuse) ou único. No tempo em que Marx escreveu O Capital, as classes dirigentes não distribuíam pão pelas grandes populações urbanas, mas desde a crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial, graças às autoridades políticas e à sua intervenção na economia, os exploradores escravizam as massas com homenagem, subsistência (consumo) e hospitalidade (Cf. Stanislaw Ossowski), ao mesmo tempo que aparentam suavizar o uso da violência física através da acção contínua dos aparelhos ideológicos de Estado, não tanto a escola como pensava Althusser, mas sobretudo as "indústrias da consciência". O discurso do fim das ideologias defendido por D. Bell e R. Aron preparou o terreno para o triunfo do neoliberalismo a partir dos anos 80: o consenso repressivo em torno da economia de mercado perspectivada em função do modelo do equilíbrio, recentemente desmentido pela crise financeira (G. Soros), e da democracia liberal.
Vivemos actualmente a segunda maior crise do capitalismo e, tal como Parsons ou mesmo Heidegger que escrevia sobre Hölderlin enquanto os judeus eram mortos nos campos de concentração, nós precisamos ignorar as obras publicadas nas últimas décadas dominadas pelo neoliberalismo, porque a pós-modernidade mais não é do que a versão filosófica (Lyotard), artística (Charles Jencks) e literária (Cf. Jameson) da ideologia fatalista de mercado global das finanças e da comunicação, e retomar pensadores verdadeiramente criativos e profundos, entre os quais Marx. Porém, retomar Marx exige espírito crítico, precisamente a atitude que percorre toda a sua obra e que possibilita a sua actualização sem dogmatismo doutrinário. Embora a teoria de Marx tenha sido apropriada de modo positivista pelas ciências sociais, como mostrou Hannah Arendt, voltar a Marx significa retomar uma concepção enfática da razão, capaz de mostrar que as ciências sociais fracassaram na sua missão crítica e de submeter o positivismo ao tribunal da razão. Neste sentido, o regresso de Marx pode ser encarado como destruição das ciências sociais, emergência da Filosofia na sua concepção imperial que visa resgatar o Ocidente, denúncia da ciência como ideologia e crítica radical do positivismo e das suas versões envergonhadas. Isto significa que a Filosofia não se conforma com o papel que lhe foi atribuído por Habermas, o de guardador de lugar e de intérprete, no seio da multiplicidade das vozes da razão. Kant, Hegel e Marx continuam a constituir a trilogia astral da Filosofia, a única capaz de iluminar o momento presente de ofuscamento sombrio.
Concepção Ostensiva de Filosofia. Kant distinguiu entre o conceito escolástico e o conceito do mundo de Filosofia, definindo-a, neste último sentido, como "a ciência da relação de todo o conhecimento e de todo o uso da razão com o fim último da razão humana, ao qual, enquanto fim supremo, todos os outros fins estão subordinados, e no qual estes têm que se reunir de modo a constituir uma unidade". Assim, o domínio da Filosofia, neste sentido cosmopolita (in sensu cosmico), "deixa-se reduzir às seguintes questões: 1) O que posso saber?, 2) O que devo fazer?, 3) O que me é lícito esperar?, (e) 4) O que é o homem?. À primeira questão responde a Metafísica; à segunda, a Moral; à terceira, a Religião; e à quarta, a Antropologia. Mas, no fundo, poderíamos atribuir todas essas (questões) à Antropologia, porque as três primeiras questões remetem à última". Ernst Bloch, Herbert Marcuse ou Lucien Goldmann, entre outros, assumiram este conceito kantiano ostensivo de Filosofia, segundo o qual a filosofia é, em última análise, antropologia, ou, como prefiro dizer, conhecimento antropo-orientado. Defendê-lo novamente implica a destruição das ciências sociais que, ao abrigo do positivismo, se apoderaram de territórios da filosofia, convertendo-os em meras positividades colocadas ao serviço do fortalecimento musculado da burocracia estatal e do lucro privado, a denúncia da ciência como ideologia colocada ao serviço da dominação da natureza externa e interna (a crítica da racionalidade instrumental de Horkheimer & Adorno), enfim a crítica radical do positivismo e das suas versões envergonhadas (Albrecht Wellmer), entre as quais temos a filosofia analítica e a análise formal e informal de argumentos que abdicam do pensamento crítico e atrofiam a imaginação política.
Crítica Radical do Positivismo. Assumir este conceito ostensivo de Filosofia, exige necessariamente uma crítica do positivismo e do seu predecessor, o empirismo inglês. Marcuse analisou o papel determinante da dialéctica hegeliana nesta luta contra o positivismo: "O idealismo alemão defendia a filosofia dos ataques do empirismo inglês, e a luta entre as duas escolas não significava simplesmente o choque entre duas filosofias diferentes, mas uma luta em que estava em jogo a filosofia como tal". Hegel soube defender a filosofia como tal contra os ataques empiristas: a sua filosofia "é, na verdade, aquilo de que foi acusada pelos seus opositores imediatos: uma filosofia negativa, (...) motivada pela convicção de que os factos que aparecem ao senso comum como indícios positivos da verdade são, na realidade, a negação da verdade, tanto que esta só pode ser estabelecida pela destruição daqueles. (...) A dialéctica está inteiramente ligada à ideia de que todas as formas de ser são perpassadas por uma negatividade essencial e que esta negatividade determina o seu conteúdo e movimento. A dialéctica constitui a oposição rigorosa a qualquer forma de positivismo. De Hume aos positivistas lógicos (e analíticos) da actualidade (Moritz Schlick, Carl G. Hempel, Rudolf Carnap, Hans Hahn, Otto Neurath, A. J. Ayer, C. L. Stevenson, Frank P. Ramsey, Gilbert Ryle, Friedrich Waismann, B. Russell), o princípio de uma tal filosofia tem sido o prestígio definitivo do facto, e o seu método fundamental de verificação, a observação do dado imediato. O positivismo assumiu, em meados do século XIX, e principalmente em resposta às tendências destrutivas do racionalismo, a forma de uma "filosofia positiva" que englobaria todo o saber e que iria substituir a metafísica tradicional. As figuras mais eminentes deste positivismo acentuaram com muito vigor a atitude conservadora e acrítica da sua filosofia: o pensamento era por ela induzido a contentar-se com os factos, a renunciar a transgredi-los e a submeter-se à situação (social) vigente. Para Hegel, os factos enquanto factos não têm autoridade. Eles são "propostos" (gesetzt) pelo sujeito, que os mediatiza pelo processo de compreensão do seu desenvolvimento. A verificação repousa, em última análise, neste processo, ao qual se relacionam todos os factos e que lhes determina o conteúdo. Tudo o que é dado tem de justificar-se perante a razão; esta nada mais é do que a totalidade das capacidades da natureza e do homem".
A dialéctica hegeliana conclui que a história atingiu a realidade da razão, isto é, a reconciliação da ideia com a realidade. Isto significa que a filosofia atingiu a sua meta: Hegel acredita ter formulado a visão do mundo no qual se realiza a razão e, com a Revolução Francesa, o pensamento deixa de referir-se ao ideal. A dialéctica está concluída e o apogeu da filosofia é, ao mesmo tempo, a sua renúncia. Liberta da preocupação com o ideal, a filosofia deixa de fazer oposição à realidade estabelecida e de ser filosofia. Ora, Marx não chegou a escrever as 20 páginas sobre a dialéctica, mas os seus textos revelam claramente que a sua dialéctica é um processo aberto, portanto, não-concluído. Com Marx o pensamento crítico não cessa e assume uma nova forma: os esforços da razão denunciam o princípio de identidade estipulado por Hegel e dirigem-se para a teoria social e para a praxis política: "no sistema de Hegel todas as categorias acabam por se aplicar à ordem existente, enquanto no sistema de Marx elas se referem à negação desta ordem. (As categorias de Marx) visam uma nova ordem da sociedade, mesmo quando descrevem a forma corrente da sociedade. Elas dirigem-se essencialmente a uma verdade que está para vir através da abolição da sociedade civil. A teoria de Marx é uma "crítica", no sentido de que todos os seus conceitos são uma acusação da totalidade da ordem existente" (Marcuse).
Destruição das Ciências Sociais. A luta contra o positivismo e suas versões travestidas é uma luta interna à Filosofia, porque o positivismo é uma mera filosofia. Porém, esta luta tem efeitos exteriores à filosofia, efeitos nas suas relações com as ciências e as artes e, sobretudo, com a política. Nesta luta contra o positivismo, a dialéctica não está sozinha: Husserl, Heidegger, Gadamer, Arendt, Davidson, Ricoeur, Hans Jonas, Lévinas e Derrida, entre outros, deram também inicio à destruição das ciências sociais e da ciência como ideologia. As ciências sociais têm ajudado a manter e a legitimar a ordem estabelecida: são meras "técnicas de adaptação social" (Althusser). Marx sabia que a "sociologia", a economia, o direito ou a demografia eram meras armas ideológicas usadas pela burguesia para justificar ideologicamente a conservação da ordem estabelecida e a sua dominação, apresentando-a como uma "ordem natural". Estamos diante de uma das operações utilizadas frequentemente pela "ideologia dominante" para apresentar a sociedade estabelecida como um sistema incontornável, acima da "vontade humana" e da história, portanto, como uma "fatalidade". Deste modo, a ideologia dominante, o neoliberalismo, deturpa e encobre tudo, não só as possibilidades históricas de mudança social, como também o espírito da própria ciência social, como se esta tivesse por missão descobrir as "leis naturais" da sociedade, à semelhança do que fazem as "ciências naturais" (crítica do naturalismo). Positivismo e glorificação (ideológica) da ordem social dominante são a mesma coisa: Francis Fukuyama anunciou o fim da História, alcançado com o estabelecimento derradeiro da economia de mercado e da democracia liberal. A actual crise financeira refuta o liberalismo económico e coloca novamente a análise marxista do capitalismo na agenda política e filosófica. A crítica da ideologia aplicada aos discursos produzidos pelas ciências sociais e à organização social da ciência continua a ser pertinente e também aqui Marx é absolutamente actual. Só mediante a crítica da ideologia podemos libertar a imaginação política e procurar vislumbrar novas alternativas sociais capazes de salvaguardar a aventura ocidental: a tarefa prática da filosofia é iluminar a praxis que visa a transformação qualitativa do mundo.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Sexual Bondage e Narcisismo

Alguns indivíduos desejam sujeitar ou reprimir fisicamente outros indivíduos para a sua própria excitação sexual ou para a excitação dos seus parceiros. Reciprocamente, outros indivíduos desejam ser fisicamente sujeitados ou reprimidos para a sua própria excitação sexual ou para a excitação dos seus parceiros. O conjunto destes desejos é chamado sexual bondage ou submissão sexual: o uso de dispositivos ou materiais fisicamente repressores no comportamento sexual que têm significação sexual pelo menos para um dos parceiros. O comportamento autocrático também pode incluir elementos de sexual bondage. Antes do advento da Internet, os indivíduos que praticavam estas práticas sexuais formavam "clubes" e "friendship networks" e algumas destas sociedades publicavam "newsletters" e magazines contendo informação, artigos típicos e anúncios pessoais. No momento presente, a Internet Sexual facilita estes contactos entre indivíduos de todo o mundo interessados na sexual bondage, bem como outras variantes de comportamento sexual relacionadas. Na linguagem da subcultura bondage, a sexual bondage é frequentemente chamada B & D (Bondage and Discipline), sendo distinguida da D & S (Dominance and Submission) e da S & M (Sadomasochism). Diversos estudos mostram que a sexual bondage pode coexistir com outras variantes do comportamento sexual, tais como sadomasoquismo (Spengler, 1977), travestismo (Blanchard & Heecker, 1991), asfixia auto-erótica (Blanchard & Heecker, 1991; Innala & Ernulf, 1989) e homossexualidade (Townsend, 1983).
Em termos muito gerais, podemos dizer que D & S é usado frequentemente como um quadro-geral que inclui os outros termos, bem como um conjunto de outras variantes sexuais, tais como fetichismo e travestismo, quando os comportamentos sexuais implicam a troca ou mudança de poder (exchange of power). No seu sentido restrito, B & D refere-se ao uso no comportamento sexual de materiais ou dispositivos fisicamente restritivos, ou à utilização de ordens (commands) psicologicamente restritivas. Estas ordens podem impor obediência, servidão ou escravidão, sem induzir dor física. Também pode envolver alguma punição física, a qual é distinta da sadomasoquismo, porque a punição não é imposta para induzir dor física, mas como expressão de disciplina sexual psicológica. S & M refere-se aos comportamentos sexuais que incluem imposição e/ou recepção de dor física ou psicológica. A sujeição sexual faz parte integrante da Bondage and Discipline. A disciplina significa neste quadro limitações psicológicas, tais como controle, tratamento e punição não-física. Os indivíduos podem controlar os parceiros, ordenando-lhes a realização ou não de determinados comportamentos sexuais, ou podem pedir-lhes para realizar comportamentos não-sexuais erotizados. Tais comportamentos podem incluir "corridas errantes", limpar a casa ou vestir de uma maneira especial. A recompensa ou a punição são dadas em função do modo como estes comportamentos são executados ou desempenhados.
Com o advento do "politicamente correcto", a investigação destes comportamentos sexuais declinou, embora tenham sido realizados alguns estudos com amostras não-clínicas para compreender melhor a B & D, bem como com modelos patologicamente orientados. Scott (1983) relatou que alguns homens apreciadores de sexual bondage recordaram que tinham tido previamente fantasias submissas ou que tinham gozado quando, em crianças, foram capturados ou amarrados no decurso dos jogos "Cowboys and Indians". Porém, outros homens só descobriram o seu lado submisso já no decorrer da vida adulta, obtendo grande gratificação sexual com a realização de tais comportamentos. Alguns destes homens ainda recordavam a primeira excitação submissa que experimentaram quando um amante os amarrou por brincadeira. Heilbreen & Seif (1988) estudaram 54 homens com idade universitária, submetendo-os à visão de gravuras eróticas de mulheres a praticar bondage que exibiam angústia física. Estes homens achavam estas gravuras mais sexualmente estimulantes do que as gravuras onde as mulheres manifestavam afecto positivo. Zillman & Bryant (1986) estudaram homens e mulheres, estudantes e não-estudantes, sujeitos à exposição contínua de pornografia não-violenta disponível no mercado. A pornografia expunha exclusivamente cenas de comportamento heterossexual consentido entre adultos. Os resultados mostraram que havia maior interesse na pornografia que expunha menos frequentemente actividades sexuais, como por exemplo a sexual bondage. Scott (1983) observou que as mulheres que tinham interesse em B & D não relatavam fantasias sexuais precoces, tal como sucedia com os homens. Muitas mulheres foram introduzidas na disciplina sexual durante uma relação emocional e não por considerarem inicialmente esta prática erótica. Das poucas mulheres que descobriram a disciplina sexual por sua própria iniciativa, a maior parte tinha geralmente backgrounds invulgares ou treino em psicologia ou em ciências sociais, que as levaram a ser mais abertas em relação à sexualidade ou a querer compreender melhor as formas invulgares de comportamento sexual.
As fantasias sexuais desempenham um papel nuclear, isto é, estruturante, na sexual bondage, já que os parceiros tendem geralmente a negociar um acordo prévio sobre os cenários de fantasia antes de agirem ou realizarem essas fantasias na prática. Eve & Renslow (1980) estudaram 72 homens e mulheres estudantes, com uma média de idade de 24 anos. 13% destes sujeitos relataram excitação sexual quando fantasiavam em ser amarrados ou limitados de alguma outra forma. Porém, as fantasias nem sempre são realizadas e, como mostrou Scott (983), algumas têm o seu maior efeito de excitação quando não são concretizadas. Winick (1985) estudou a B & D com base em magazines sexualmente explicitas, cujas gravuras exibem relações com papéis de poder desiguais. Os resultados mostraram que os homens eram dominantes em 71% dos casos, e submissos em 29% das situações. Crepault & Couture (1980) estudaram 94 homens que viveram com uma mulher durante pelo menos um ano. O conteúdo das suas fantasias sexuais ocorridas durante a actividade heterossexual centrava-se sobre três temas principais: confirmação do poder sexual, agressividade e fantasias masoquistas. Destes homens, 39% fantasiaram algumas vezes com uma "cena em que amarram uma mulher e a estimulam sexualmente", e 36% fantasiaram frequentemente com uma "cena em que eram amarrados e estimulados sexualmente por uma mulher".
Diversos estudos americanos e europeus demonstraram que os profissionais de colarinho-branco de determinados sectores das "elites do poder" (Janus et al., 1977), portanto, homens que ocupam posições dominantes na sociedade, recorrem regularmente ao serviço de prostitutas para os dominar. Isto significa que estes homens que ocupam posições dominantes na sociedade, tais como políticos ou empresários bem sucedidos, são homens submissos que, devido à dificuldade de encontrar mulheres heterossexuais dominantes (Baumeister, 1988; Weinrich, 1987), recorrem ao negócio emergente denominado «dominatrix»: mulheres dominadoras profissionais («dominatrices») que satisfazem as necessidades sexuais de homens submissos-receptivos, supostamente não-homossexuais (Scott, 1983). Quer sejam prostitutas ou não, estas mulheres dominadoras podem atar ou acorrentar os seus clientes de colarinho-branco, dar-lhes palmadas ou chicotadas, açoitá-los, dominá-los e humilhá-los. Muitas destas práticas são suficientes para satisfazer as necessidades dos seus clientes, que também podem masturbar-se durante a sessão de submissão ou de sujeição sexual. Baumeister (1988) interpretou este desejo de desempenhar um papel submisso-receptor na sexual bondage como um sinal de masoquismo, portanto, como um desejo de eliminar a liberdade de acção e a iniciativa, que, nalguns casos observados por mim, aponta no sentido da auto-destruição ou da auto-mutilação corporal (De Sousa, 2006). Assim, o indivíduo que pratica a submissão sexual é aliviado ou liberto da iniciativa, da escolha e da responsabilidade por actos sexuais que, de outro modo, poderiam gerar conflito interno. A submissão sexual constitui uma espécie de fuga ou escape de elevados níveis de consciência do self: a sua prática evita que tome a decisão e assuma a responsabilidade pelos actos praticados. Ao ser amarrado ou limitado, o self promove nível baixo de auto-consciência imediata e concentra a atenção sobre o desamparo e a vulnerabilidade.
Porém, os indivíduos que apreciam sexual bondage raramente se envolvem em episódios de coerção sexual. Este comportamento está intimamente relacionado com o narcisismo (Bushman et al., 2003; Baumeister et al., 2002). Os narcisistas acreditam cegamente nos mitos convencionais da violação, vêem as vítimas como culpadas e sentem menos empatia pelos outros. Além disso, são muito favoráveis aos filmes com cenas de descrição de violações e, na realidade, reagem muito negativamente à rejeição das mulheres. Por isso, como não aceitam facilmente que as parceiras recusem os seus avanços sexuais, podem recorrer à força para fazer sexo não-consentido. Malamuth (1996) falou mesmo de uma síndrome de masculinidade hostil, caracterizada por um forte desejo de controlar as mulheres e por uma atitude insegura mas hostil em relação a elas. Esta síndrome combina-se com a preferência por sexo anónimo ou impessoal e a agressão sexual (De Sousa, 1998, 2006, 2007).
Dados Portugueses. A minha pesquisa mostrou claramente que as práticas de sexual bondage são muito frequentes entre os portugueses e que um número significativo de homens portugueses prefere o papel submisso-receptor, mesmo que não sejam homossexuais. Muitos desses homens ocupam efectivamente posições de relevo na sociedade portuguesa. Contudo, no que se refere aos homens homossexuais e bissexuais, convém frisar que, neste grupo, um número significativo desses homens prefere o papel dominador e executa actos muito hipermasculinos, tais como rimming, dildo, cookbinding, watersports, enema, fistfucking, scatologia e catheter. Com raras excepções, além das profissionais do sexo, as mulheres portuguesas participam pouco nas práticas de sexual bondage e, quando o fazem, são submissas. A escassez de mulheres justifica em parte a ocorrência de sessões de sadomasoquismo ou de disciplina sexual mistas, envolvendo os dois sexos e as diversas orientações sexuais. De um modo geral, os homens portugueses referem o sadomasoquismo, o exibicionismo, o voyeurismo, o fetichismo, os piercings íntimos e tattoos como práticas associadas à B & D. Os homens auto-intitulados bissexuais, sobretudo os que são casados com mulheres, quase todos pais, envolvem-se facilmente nestas práticas sexuais, num ritmo quase diário, desempenhando frequentemente o papel submisso e de receptores anais. Os homens portugueses que praticam sexual bondage experimentam elevado prazer sexual intensificado, em comparação com o comportamento sexual convencional, chamado na sua linguagem "vanilla sex".
Estes resultados são congruentes, em termos genéricos, com os resultados do estudo mediado por computador realizado por Ernulf & Innala (1995), onde foram analisadas 514 mensagens, provenientes dos USA, Austrália, Canadá, Finlândia, Alemanha, Japão, Holanda, Noruega, Suécia e Reino Unido, com o objectivo de compreender melhor as experiências dos indivíduos, homens e mulheres, que praticam sexual bondage. 72% das mensagens foram escritas por homens, 24% por mulheres e 4% não referiam o sexo. Nas mensagens masculinas, 81% declararam ser heterossexuais, 18% homossexuais e 1% bissexuais. Nas mensagens femininas, 87% eram heterossexuais, 10% lésbicas e 3% bissexuais. Em 33% das mensagens, os participantes referiram o sadomasoquismo, e apenas 7 mencionaram o exibicionismo, a zoofilia, o voyeurismo, o fetichismo pelo pé e piercing. Neste estudo, somente 4 mulheres heterossexuais disseram preferir o papel dominador-iniciador, e 16 homens heterossexuais preferiam o papel submisso-receptor. Isto significa que os homens heterossexuais que preferem o papel submisso têm dificuldade em descobrir mulheres heterossexuais que desejam ser dominantes. Nas mensagens, 89% das mulheres heterossexuais preferiam o papel submisso-receptor, enquanto a maioria dos homens heterossexuais preferiam o papel dominador. Isto indica boa compatibilidade entre os sexos e, segundo os meus estudos, esta compatibilidade sexual estende-se também aos universos homossexuais, embora no estudo de Ernulf & Innala (1995) apenas 1 homem homossexual preferisse o papel dominador. Neste aspecto, não há congruência entre os dois estudos. Em Portugal, não tenho verificado uma desproporção entre o número de homens homossexuais que preferem o papel submisso e o papel dominante. Nalgumas situações pontuais, verifica-se um excesso de dominadores em relação aos submissos, sobretudo nas sessões de sadomasoquismo cujos participantes são recrutados via Internet. A versatilidade de papéis é desejável na comunidade gay e pode assentar na diferença entre os papéis que os homens gay preferem e os papéis que podem desempenhar. Outra discrepância entre estes dois estudos diz respeito aos papéis desempenhados pelos homens heterossexuais. Muitos homens heterossexuais portugueses preferem efectivamente desempenhar o papel submisso, executando ordens sexuais muito pouco congruentes com a sua orientação sexual. E o número daqueles que dizem preferir praticar o coito anal nas suas relações heterossexuais cresce cada vez mais.
Estes resultados exigem a problematização da heterossexualidade masculina, levando-nos a colocar a questão: O que é efectivamente um macho heterossexual? O heterosexismo dominante e a sua noção de masculinidade hegemónica (J.W. Connell & J.W. Hesserschmidt, 2005) iludem esta questão, apresentando a heterossexualidade como orientação sexual normal. Porém, quando observamos os homens heterossexuais em acção, detectamos rapidamente que aquilo que fazem não corresponde à imagem social do homem heterossexual. Não só não sabemos explicar a heterossexualidade como também somos forçados a constatar que algo errado se passa actualmente com a heterossexualidade masculina. Na minha amostra interactiva, mediada por computador (De Sousa, 2002, 2006, 2007), um número significativo de homens auto-intitulados heterossexuais, alguns casados, outros solteiros, nacionais e estrangeiros, que são "meus escravos sexuais", tanto no "perfil masculino", como no "perfil feminino", independentemente da orientação sexual simulada, obedece prontamente e pratica "auto-felação" ou penetra dildos ou dedos ou outro objecto qualquer no ânus, entre outras actividades. As sexualidades masculinas de género são muito mais rígidas do que as sexualidades femininas de género (Baumeister, 2000; Diamond, 2000, 2004; De Sousa, 2006). Porém, verifica-se no momento presente que os homens heterossexuais estão cada vez mais plásticos em termos de prazeres e actividades sexuais realizadas, praticando frequentemente actividades sexualmente atípicas. Esta aparente plasticidade erótica da sexualidade masculina merece atenção, porque põe em causa aparentemente os estudos biológicos da orientação sexual. (Existem factores biologicamente activos que podem explicar este fenómeno.)
(Este post retoma o tema de um post anterior: Elites do Poder e Sexual Bondage.)
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Prós e Contras: O Veredicto da Sociedade

De todos os programas Prós e Contras que Fátima Campos Ferreira dedicou ao debate da crise financeira, o de hoje (20 de Outubro de 2008) foi o mais interessante, sendo possível vislumbrar um consenso racionalmente motivado, capaz de levar todos os cidadãos portugueses a envolver-se na busca cooperativa de novas saídas. Os participantes deste debate foram representantes dos sectores estratégicos nacionais, em especial dos sectores empresariais: José Manuel Fernandes (Frezite), Pedro Gonçalves (Soares da Costa), António Bernardo (Roland Berger), Alberto Castro (Professor de Economia), Eugénio da Fonseca (Cáritas) e António (cartoonista), no palco, e Miguel Júdice, Maria do Céu Prim, Leonel Costa e Gute Moura Guedes, na plateia.
A agenda centrou-se basicamente em três grandes questões: Como avaliamos a reacção das lideranças?, Qual é o veredicto da sociedade?, e O que podemos fazer?. Quanto à primeira questão, predominou um consenso de fundo, expresso primeiramente por José Manuel Fernandes: o Governo de José Sócrates tomou as medidas certas, para evitar que a crise afecte de modo drástico os portugueses, enquanto a oposição está mais voltada para problemas partidários internos e, por isso, incapaz de elaborar alternativas credíveis. Alberto Castro avançou com algumas ideias interessantes que poderão eventualmente "enriquecer" as medidas governamentais já tomadas, fortalecendo a perspectiva de proteger os "mais pobres" ou, pelo menos, todos aqueles que se encontram numa situação mais precária para fazer face aos efeitos nefastos da crise que vai afectar Portugal. Todos condenaram o dogma do neoliberalismo: aquilo a que Pedro Gonçalves chamou um "modelo de desenvolvimento sustentável assente num sistema financeiro" que produziu "riqueza aparente", criando os chamados "pobres a crédito" (Eugénio da Fonseca). Ou seja, criticaram a globalização do capitalismo financeiro, defendendo uma economia assente nas empresas e na livre iniciativa responsável, com preocupação social, portanto um capitalismo empresarial, regulado de alguma forma pelo Estado, tendo em conta uma possível nova "ordem social".
António chegou mesmo a apelar ingenuamente pelo "regresso da social-democracia", esquecendo que esta também teve a sua quota parte de responsabilidade, nomeadamente quando garantiu aquilo que denunciou: os "direitos adquiridos", de resto uma noção mais feudal do que capitalista e muito menos social-democrata. Porém, António Bernardo lembrou que o sistema financeiro é o motor da economia e que, portanto, não basta apoiar a "banca de retalho", como fez recentemente Sarkozy; os bancos de investimento também devem ser apoiados e regulados pelo Estado, embora com "retorno", porque, sem um sistema financeiro forte, as empresas não têm "acesso ao crédito". Um capitalismo empresarial que aposte na inovação tecnológica e saiba viabilizar os nossos sectores económicos "tradicionais", além das indústrias tecnologicamente avançadas, um sistema financeiro inovador mas regulado e responsável, e um Estado Social, o velho Estado Social Europeu vitimizado e enfraquecido pelo neoliberalismo, que garanta a igualdade de oportunidades e uma redistribuição mais equitativa da riqueza nacional, são, sem dúvida, excelentes ideias. Como já tinha dito noutro post, esta crise abre as portas à imaginação política, subordinando a economia ao primado da política, como dizemos em linguagem da filosofia política. A frase que encabeça um cartoon de António, "I Want Your Money", a marca exploradora do neoliberalismo, diz de modo sintético tudo aquilo que não queremos: um sistema capitalista selvagem e desregulado que incutiu nas pessoas a ideia terrível de que "amanhã será melhor do que hoje", levando-as a recorrer ao crédito e a endividarem-se.
Contudo, apesar de estar no geral em sintonia com as ideias expostas, detectei que, por vezes, se fazia a apologia de velhas ideias, muitas das quais promovidas pelo neoliberalismo. Miguel Júdice defendeu a necessidade de ensinar nas escolas o empreendedorismo, alegando que é o que se faz nos USA. Ora, uma tal ideia é, como mostrou Alberto Castro, um absurdo, porque, como acrescentou Fátima Campos, "nem todos somos iguais" e "nem todos tiveram as mesmas oportunidades". A igualdade é uma noção cancerosa que está a corromper o Ocidente, justificando e promovendo a emergência tirânica da histeria emocional, o ressurgimento de comunidades emocionais destituídas de vínculos sociais e a ditadura da opinião murcha. Garantir a igualdade de oportunidades constitui um conceito muito diferente de igualização social, cujo resultado é o nivelamento feito a partir de baixo e, portanto, a regressão cognitiva. A noção de globalização não foi seriamente problematizada, porque na verdade só ocorreram dois tipos de globalização, a globalização dos mercados financeiros e a globalização da comunicação, ambos intimamente unidos ao neoliberalismo. A defesa do indivíduo e do seu empreendedorismo feita por Gute Moura Guedes foi outra ideia perigosa, aquela que fomenta aquilo que criticou nas "pessoas latinas", a sua emotividade histérica que corrompe o próprio exercício responsável e competente da cidadania informada, ameaçando a própria coesão social e a solidariedade. Também a sua ideia de comercializar e massificar a cultura tem um efeito nefasto na própria cultura: rouba-lhe a sua transcendência. Cultura superior (Marcuse) e design são conceitos que não se casam harmoniosamente: a verdadeira criatividade encontra-se distribuída de modo desigual entre as pessoas e também não se aprende. Esse espírito de criatividade plástica e comercial produziu oportunistas pseudo-culturais ou pseudo-artistas. Além disso, nunca uma tal indústria de design seria capaz de colocar a economia em crescimento e fomentar o desenvolvimento necessário para libertar a população da ameaça de desemprego agravada pela actual crise financeira. Se há sector da sociedade que o Estado deve manter relativamente distante das garras do capitalismo, esse sector só pode ser a cultura. Eugénio da Fonseca falou do sistema de educação, precisamente o sistema que se degradou aceleradamente depois do 25 de Abril e que hoje está dominado pela mediocridade, a arbitrariedade e a incompetência: a reforma radical e dura deste sistema é a prioridade número 1 do Estado. O objectivo não é fazer de todos os cidadãos "doutores ou engenheiros", mas criar escolas de diversos tipos que permitam a cada um seguir aquilo para que tem real vocação. Igualização produz mediocridade e uniformidade, ao mesmo tempo que exclui do sistema de decisão os mais competentes através de um sistema de corrupção, de troca de favores, de cunhismo e de omissão de informação relevante.
Face a esta doença nacional alimentada pela inveja social e pela busca de falso status social, a ideia de juntar os melhores cérebros nacionais e levá-los a imaginar novas soluções sociais e políticas nacionais capazes de unir as empresas e os cidadãos em torno de um objectivo nacional comum está condenada ao fracasso, porque, como sabemos, são os menos competentes que, já instalados nas esferas de decisão nacional, usurpam indevidamente esse estatuto e os respectivos lugares e posições. A corrupção e os seus correlatos similares são transversais a toda a sociedade portuguesa. A crise financeira que não é uma mera crise cíclica, como foi dito por alguns, oferece uma nova oportunidade: reformular e recriar a sociedade inteira com imaginação política, filosoficamente instruída, missão que ultrapassa as competências dos actuais aparelhos partidários, os quais devem ser libertos do oportunismo que os paralisa. Ideologias e o seu confronto na esfera pública, em vez de pensamento único, é disso que precisamos, além de uma economia forte e criativa capaz de gerar pleno emprego, de modo a banir a pobreza.
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 19 de outubro de 2008

Genes, Cérebros e Ambientes

Cada espécie possui um sistema nervoso que «utiliza para construir um modelo do seu mundo específico, limitado por uma actualização contínua através dos órgãos dos sentidos». (Richard Dawkins)
«O sistema genético e o sistema imunitário funcionam pois como memórias que registam o passado da espécie e o passado do indivíduo, respectivamente. Mas um ser vivo não é apenas o último elo de uma cadeia ininterrupta de organismos. A vida é um processo que se não limita a registar o passado, mas que se vira também para o futuro. Segundo parece, o sistema nervoso surgiu como aparelho para coordenar o comportamento de diversas células nos organismos multicelulares. Tornou-se depois máquina registadora de determinados acontecimentos da vida do indivíduo. E, finalmente, tornou-se capaz de inventar o futuro». (François Jacob)
Critiquei num post anterior o princípio do egoísmo genético elaborado por Richard Dawkins, evidenciando as suas implicações ideológicas, mas devo reconhecer que este princípio influenciou a teoria do cérebro que tenho procurado formular há alguns anos. No dia 8 de Abril de 2001, escrevi um texto do qual vou reproduzir alguns parágrafos:
«O cérebro como máquina de fabricar ilusões: vários indicadores neurofisiológicos, neuropatológicos e psicobiológicos apontam nesse sentido ou, pelo menos, podem ser interpretados em função deste conceito. É certo que tratar o cérebro como "máquina" implica a ideia subjacente de um "maquinista", mas, de momento, não pretendo pensar no "maquinista" que nos lançou no mundo para desempenharmos "papéis" que não "escolhemos representar". Em vez disso, pretendo pensar o cérebro como um órgão pré-programado geneticamente para produzir "ilusões". Se a "metáfora" da máquina implica a ideia de maquinista, então, em vez de um ou dois, temos vários maquinistas: os genes que, em cooperação, criaram um "órgão de relação" (Charles Sherrington), cuja função básica é criar ilusões ou simulações que permitam uma adaptação contínua e inteligente ao meio em constante mudança. O cérebro ilude os outros e ilude-se a si mesmo, criando um "mundo de ilusões". Qual a vantagem selectiva de um órgão de relação e de união criador de ilusões? Em ruptura com as teorias ambientalistas, a plasticidade neuronal possibilita uma abertura ao mundo sem no entanto se libertar do envelope genético. (...) A ideia é simples: os genes criaram um órgão flexível (hardware) que lhes facilita a tarefa de deixarem cópias de si mesmos. O cérebro não só permite adaptações mais flexíveis ao meio em constante mudança, substituindo o ADN numa parte importante de registar os ambientes, como também produz um mundo favorável, a cultura, à perpetuação dos genes. O princípio do egoísmo genético deve ser alargado ao cérebro na sua totalidade morfológica, funcional e comportamental, nomeadamente ao "eu", sem esquecer que o genoma humano é um "campo de batalha".»
Ora, o conceito de cérebro como máquina de produzir ilusões foi posteriormente elaborado por Dawkins, a partir da linguagem da tecnologia da realidade virtual, enquanto eu recorria na altura aos dados da neurofisiologia das toxicodependências, da neurofarmacologia e da medicina da dor. Além disso, o meu modelo estipula a existência de um Quarto Cérebro, além do cérebro triuno de Paul MacLean (o cérebro de réptil, filogeneticamente mais antigo e anatomicamente constituído pelo diencéfalo e estruturas encefálicas ainda mais antigas, responsável fundamentalmente pela coordenação do funcionamento visceral e pelos fenómenos de relação com o peri-mundo, o cérebro de paleomamífero, filogeneticamente intermédio, representado pelas estruturas que constituem o sistema límbico, responsável pelo olfacto e fenómenos psíquicos que estão relacionados com o olfacto, como as actividades instintivas e afectivas, e o cérebro neomamífero, filogeneticamente mais recente, que permite ao homem estar dotado de capacidades de elaboração cognitiva e que é constituído pela quase totalidade dos hemisférios cerebrais, com excepção do diencéfalo e as zonas que o forram), um cérebro "racional" localizado, em parte, nos lóbulos pré-frontais, um cérebro especificamente humano, capaz de produzir ilusões ilimitadas: mundos imaginários, simbólicos ou virtuais que procuram exorcizar a angústia primordial. Neste "software de realidade virtual", como diz Dawkins, a linguagem é fundamental, porque é ela que permite ao pensamento libertar-se das sensações e do meio imediato, meramente utilitário, e projectar-se no futuro. Ambas as teorias são redutoras: primeiro, porque atribuem aos genes um papel fundamental na construção das arquitecturas neurais, e segundo, porque assentam numa co-evolução software/hardware que, no meu caso, pode ser "superada" por outra hipótese mais epigenética, talvez uma versão actual da teoria da epigénese por estabilização selectiva formulada por Jean-Pierre Changeux, segundo a qual "a actividade (espontânea ou provocada) só actua na disposição de neurónios e de conexões que já existiam antes da interacção com o mundo exterior. A epigénese exerce a sua selecção em disposições sinápticas pré-formadas. Aprender é estabilizar combinações sinápticas pré-estabelecidas. É também eliminar as outras". Porém, os modelos das toxicodependências e da tecnologia da realidade virtual que inspiram estas teorias do cérebro têm implicações diferentes: inicialmente encarei a minha teoria do cérebro como antropologia neurobiológica fundamental, que, mais tarde, reformulei em função da antropologia filosófica, de modo a suavizar o neuroreducionismo subjacente à teoria da evolução cultural.
Dawkins é claro quando afirma que "o cérebro funciona como um sofisticado computador de realidade virtual": "O cérebro é o computador a bordo do corpo, não pela forma que funciona, mas pelo que faz na vida do animal", "simular o mundo com algo equivalente ao software de realidade virtual". Isto significa que Dawkins explora a analogia entre cérebro e computador. A neurobiologia explica facilmente como um número limitado de células neurais interage para produzir um comportamento simples: nos animais invertebrados e nalguns animais vertebrados inferiores, uma única célula pode desencadear uma sequência complexa de comportamentos. Porém, no cérebro humano, nenhuma função complexa é desencadeada por um único neurónio. A mediação neural do comportamento comporta três etapas distintas (A.R. Luria), a entrada sensorial, o processamento intermediário e a saída motora, e cada um destes componentes é mediado por um grupo definido de neurónios, podendo recrutar muitas vezes diversos grupos de neurónios paralelos. Processamento paralelo é a designação dada à utilização de diversos grupos de neurónios, ou de diversas vias, para a condução de informação semelhante. Este tipo de processamento constitui uma boa estratégia evolutiva para o desenvolvimento de um cérebro mais potente, porque aumenta a riqueza e a confiabilidade do funcionamento do sistema nervoso. Além do processamento paralelo, o sistema nervoso utiliza outra estratégia, a localização das funções: aspectos específicos do processamento de informação estão localizados em regiões particulares do cérebro. Assim, por exemplo, o cérebro possui dois tipos de mapas ou de representações: o mapa das percepções sensoriais e o mapa dos comandos motores, cujas interligações ainda não são bem conhecidas. Os neurónios que compõem essas representações, motores, sensoriais ou interneurais, não diferem significativamente nas suas propriedades eléctricas, embora tenham funções diferentes, devido às conexões que estabelecem no cérebro. Isto significa que são estas conexões formadas durante o desenvolvimento do cérebro que determinam a participação da célula no comportamento: as funções e as operações lógicas de uma representação só podem ser compreendidas pela definição do fluxo de informação pelas conexões da rede.
No campo da ciência da computação chamado Inteligência Artificial, desenvolveram-se modelos por computador para estudar estas conexões em rede, utilizando inicialmente modelos com processamento em série que simulavam os processos cognitivos superiores, tais como reconhecimento de padrões, aquisição de nova informação, memória e desempenho motor. Apesar de resolverem bem muitos problemas, incluindo algumas tarefas difíceis como por exemplo jogar xadrez, estes modelos em série tinham desempenho fraco e lento noutras computações que o cérebro humano executa bem e com rapidez, tais como o reconhecimento de caras ou a compreensão da fala. Por isso, os neurobiólogos (Stein, Grillner, Selverston & Stuart) que modelam o funcionamento neural começaram a usar o processamento por componentes em paralelo e distribuídos: os chamados modelos de conexão (connectionistic models), nos quais os elementos da computação, distribuídos por todo o sistema, processam simultaneamente informação relacionada. Os resultados são consistentes com os dos estudos fisiológicos: a complexidade das conexões entre os inúmeros elementos torna possível o processamento de informação complexa. Isto significa que os neurónios individuais realizam computações complexas, porque estão interligados de forma organizada e diversa no sistema nervoso, e estas interligações podem ser modificadas durante o desenvolvimento e, mais tarde, pela aprendizagem (a sinapse de Hebb, por exemplo). A nossa individualidade depende desta plasticidade das relações entre os neurónios no sistema nervoso. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Thomas S. Kuhn: A Estrutura das Revoluções Científicas

Thomas S. Kuhn partilha com o seu tempo (P. Duhem, A. Koyré, G. Bachelard, G. Canguilhem ou mesmo Karl Popper) a ideia de que a história da ciência não é acumulativa, mas, pelo contrário, descontínua: o crescimento do conhecimento científico não consiste na acumulação de dados e de observações, mas numa sequência descontínua, não-cumulativa, de paradigmas científicos que, tal como sucede na história das instituições sociais e políticas, se realiza através de rupturas a que chama revoluções científicas. O esquema do desenvolvimento científico que Kuhn elabora revela, no entanto, uma outra referência fundamental não-nomeada: a teoria da história de Karl Marx, isto é, a teoria da sucessão "descontínua" dos modos de produção e das revoluções sociais, adaptada criativamente à história da ciência. A concepção positivista e neopositivista da ciência, bem como os seus derivados, incluindo o racionalismo crítico de Karl Popper, é completamente desmistificada e arrasada, e, com o recurso à sociologia do conhecimento (Max Scheler, Karl Mannheim e Robert K. Merton), Kuhn tende a converter a "epistemologia" em sociologia da ciência: a ciência é reconduzida àquilo que é, ou seja, um empreendimento humano colectivo, uma actividade social, cuja meta é, como diz John Ziman, "um consenso de opinião racional sobre o campo mais amplo possível" do mundo. Ora, uma tal concepção de ciência deixa de lado a doutrina ingénua segundo a qual toda a ciência é necessariamente verdadeira e todo o conhecimento verdadeiro é necessariamente científico: o cientismo, a doença infantil da ciência ou a ideologia espontânea dos cientistas (Althusser). Doravante, a filosofia da ciência deve levar em conta o princípio do consenso que conduz à sociologia interna da comunidade científica, inserida no contexto mais vasto da sociedade e da economia de mercado, em articulação com as novas tecnologias.
Um paradigma científico designa, numa primeira aproximação, uma teoria pré-estabelecida que orienta e guia a selecção, a reunião e a explicação dos "factos", garantindo a existência de uma solução estável e segura de determinados problemas, e que é partilhada durante um determinado período de tempo por todos os membros de uma determinada comunidade científica. Basicamente, um paradigma científico é um padrão teórico completo aceite por consenso pela comunidade científica que garante de antemão solução para um conjunto de problemas. O paradigma dominante numa determinada ciência está geralmente exposto nos manuais de texto, pelos quais os mais jovens são iniciados ou socializados nessa área do conhecimento: "Um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade científica partilham e, inversamente, uma comunidade científica é formada por homens que partilham um paradigma" (Kuhn). Este conceito de paradigma está intimamente relacionado com outro conceito: a ciência normal que, como actividade do dia-a-dia da comunidade científica, consiste em solucionar problemas à luz do paradigma dominante. Kuhn chama enigmas aos problemas cuja solução é dada de antemão ou prevista pelo paradigma que orienta a actividade científica. A actividade da ciência normal é uma actividade de rotina e extremamente ultraconservadora, isto é, avessa à inovação: a ciência normal procura sempre resolver os seus problemas em função das soluções estáveis fornecidas e garantidas pelo paradigma que ilumina a sua actividade diária. Por vezes, a comunidade científica pode ser surpreendida por um problema que não é esclarecido previamente pelo paradigma reinante. Porém, esse problema não-solucionado pelo paradigma não o leva imediatamente à crise, tendendo a ser ignorado até que outras anomalias ou contra-exemplos surjam e suscitem algum cepticismo ou mesmo um "sentimento de crise" na comunidade científica. A acumulação de anomalias, isto é, de problemas para os quais o paradigma reinante não tem ou não garante solução, ou a sua pertinência, acabam por levar o paradigma à crise: "o teste de um paradigma ocorre somente depois que o fracasso persistente na resolução de um enigma importante dá origem a uma crise" (Kuhn).
A crise do paradigma não significa a crise da ciência: releva apenas o reconhecimento das anomalias que recusam ser assimiladas aos "modelos" existentes disponibilizados pelo paradigma reinante que, por isso, se torna incapaz de fornecer a todos os fenómenos um lugar determinado pela teoria no campo visual dos cientistas. Durante o período em que o paradigma é confrontado com problemas que não consegue resolver, alguns cientistas, sobretudo os mais jovens, que, por estarem menos familiarizados com os manuais de texto, não têm nada a perder com uma mudança de paradigmas, dedicam-se intensamente à tarefa de solucionar essas anomalias ou mesmo à procura de novos paradigmas alternativos. No seu caso, a crise do paradigma revela-se na substituição da ciência normal pela ciência revolucionária ou extraordinária: a busca de novos paradigmas. Ora, podem surgir durante este período revolucionário de prática científica extraordinária diversos paradigmas rivais ou paradigmas em competição e, neste caso, a comunidade científica precisa de escolher um deles em detrimento dos outros: "Na escolha de um paradigma, como nas revoluções políticas, não existe critério superior ao consentimento da comunidade relevante" (Kuhn). Kuhn discute diversos critérios de selecção, levando em conta tanto o impacto da natureza e da lógica como "as técnicas de argumentação persuasiva que são eficazes no interior dos grupos muito especiais que constituem a comunidade dos cientistas". Em princípio, o novo paradigma candidato a substituir o paradigma reinante deve ser capaz de resolver os problemas que conduziram o paradigma antigo à crise, garantido solução para os problemas que já eram resolvidos pelo anterior (1), prever ou fazer predições de fenómenos totalmente insuspeitados pela prática orientada pelo paradigma anterior (2), ser apropriado ou estético, no sentido de ser "mais claro", "mais adequado" ou "mais simples" que o anterior (3), levar os cientistas a ter "fé" nas suas capacidades para resolver os grandes problemas com que se confrontam (4) e, fundamentalmente, conquistar alguns "adeptos iniciais" que irão aperfeiçoar o paradigma, explorando as suas possibilidades e mostrando "o que seria pertencer a uma comunidade guiada" pelo novo paradigma (5). Isto significa que o novo candidato a paradigma não é "avaliado" apenas em termos lógicos ou pela sua habilidade teórica e experimental para resolver problemas, mas sobretudo pela capacidade competente dos adeptos iniciais para elaborarem "argumentos", experiências, instrumentos, artigos e livros, capazes de persuadir a maior parte dos membros da comunidade científica, conquistando finalmente a sua adesão. Deste modo, um número cada vez maior e crescente de cientistas, convencidos da fecundidade da nova concepção, vai adoptando a nova maneira de praticar a ciência normal, até que restam muitíssimo poucos opositores: "o homem que continua a resistir após a conversão de toda a sua profissão deixou ipso facto de ser um cientista" (Kuhn).
Quando a tarefa da ciência extraordinária é bem sucedida, os membros da comunidade científica acabam por aderir ou dar o seu assentimento ao novo paradigma que, deste modo, toma o lugar do paradigma anterior, passando a guiar a ciência normal. Kuhn chama revoluções científicas a estes "episódios de desenvolvimento não-cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo (paradigma), incompatível com o anterior". A mudança de paradigmas constitui ou implica uma conversão, porque os proponentes de paradigmas rivais "praticam os seus ofícios em mundos diferentes": "Por exercerem a sua profissão em mundos diferentes, os dois grupos de cientistas vêem coisas diferentes quando olham de um mesmo ponto para a mesma direcção. Isto não significa que possam ver o que lhes aprouver. Ambos olham para o mundo e o que olham não mudou. Mas em algumas áreas vêem coisas diferentes, que são visualizadas mantendo relações diferentes entre si" (Kuhn). Para estabelecerem uma comunicação entre si, os dois grupos de cientistas devem experimentar a conversão: a mudança de paradigmas é "uma transição entre incomensuráveis", que não pode ser feita a par e passo, mediante a imposição da lógica e de experiências neutras, mas de modo súbito. Isto significa que a mudança de paradigmas implica uma mudança de mundo, porque, por um lado, guiados por um novo paradigma, os cientistas adoptam novos instrumentos e orientam o seu olhar em novas direcções, e, por outro lado, durante as revoluções, vêem coisas novas e diferentes quando, usando instrumentos familiares, olham para os mesmos aspectos do mundo já examinados anteriormente: a comunidade profissional é subitamente transportada para "um novo planeta, onde objectos familiares são vistos sob uma luz diferente", aos quais se ligam objectos desconhecidos. Portanto, ao mudar de paradigmas, os cientistas reagem a um mundo diferente, com novos esquemas interpretativos e novas áreas de experiência determinadas pelo novo paradigma: "em períodos de revolução, quando a tradição científica normal muda, a percepção que o cientista tem do seu ambiente deve ser reeducada, deve aprender a ver uma nova forma (Gestalt) em algumas situações com as quais já está familiarizado".
Deixei transparecer que a teoria do desenvolvimento científico de Kuhn se distancia do racionalismo crítico de Popper, sobretudo quando fala da invisibilidade das revoluções científicas, ao mesmo tempo que apreende a nova organização social da ciência e da investigação científica. Porém, há um outro aspecto subjacente à sua noção de ciência que aponta na direcção da existência de muitas espécies de ciências. Em resposta ao desafio que lhe foi dirigido por Imre Lakatos, Paul Feyerabend levou mais longe esta tendência plural e democrática das ciências, forjando uma nova abordagem, o anarquismo teórico, visto como "um excelente tratamento médico para a epistemologia e para a filosofia da ciência": "a ciência deve ser ensinada como uma maneira de ver entre outras e não como a única via que leva à verdade e à realidade", porque mais não é do que uma tradição entre muitas outras tradições inconscientes do seu enraizamento histórico. Nem a ciência precisa da filosofia racionalista ou outra, nem a filosofia precisa da ciência: "Uma teoria da ciência que define modelos e elementos estruturais para todas as actividades científicas e os legitima por referência à «Razão» ou à «Racionalidade» é susceptível de impressionar os leigos, mas afigura-se um instrumento excessivamente grosseiro aos que estão por dentro das coisas, ou seja, para os cientistas que se confrontam com um problema de investigação concreto". Dizer "adeus à razão" é, nesta perspectiva, dizer sim à proliferação das teorias: a uniformidade congelada do "racionalismo" enfraquece o poder crítico da ciência e coloca em perigo o livre desenvolvimento individual, ao mesmo tempo que aterroriza as pessoas menos familiarizadas com a sua prática. Porém, hoje em dia o jogo de poder que domina a ciência impôs-lhe uma organização burocrática e empresarial que a transforma em "algo" que não conhecemos, embora se manifeste na busca de fama e de lucro, no espírito de negócio que orienta a pesquisa científica, subordinando-a aos imperativos do desenvolvimento tecnológico e económico, como já tinha confessado James Watson.
J Francisco Saraiva de Sousa