quinta-feira, 3 de julho de 2008

Gaston Bachelard: Poética da Casa (2)

«A casa é uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio de ligação é o devaneio. (...) Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser "jogado no mundo" (...), o homem é colocado no berço da casa.» (Gaston Bachelard)
Segundo Bachelard, a função primordial da casa é abrigar e proteger: a casa tem "valor de protecção". Na vida do homem, a casa constitui um "centro de abrigo", que cria em si uma esfera ordenada, um cosmos, do qual é eliminado o caos e a desordem do mundo exterior: "Na vida do homem, a casa afasta contingências". Goethe referiu-se, no seu "Fausto", ao fugitivo, ao "sem-abrigo", ao "sem lar", ao homem desnaturalizado "sem meta nem repouso": este homem sem-abrigo é uma criatura desnaturalizada, porque errou a autêntica natureza do homem que, segundo Heidegger, reside no habitar resguardando a quadratura: os sem-abrigo que vagueiam pelas nossas cidades foram destituídos do estatuto de humanidade e, por isso, já não são "homens", os quais na linguagem capitalista significam "contribuintes" nomeados nas suas inúmeras estatísticas metabolicamente gordas e inumanas, completamente reificadas. Isto significa que o homem só pode ser verdadeiramente homem quando tem um lar, uma casa. O fugitivo leva, qual vagabundo, uma vida errante e intranquila, condenada ao desenraizamento ou, como Bachelard prefere dizer, à fragmentação: o fugitivo ou, como lhe chama Bachelard, a "alma apátrida" dispersa-se e perde-se no anonimato, na desordem, nos vícios e nas compulsões da grande cidade. A sua vida torna-se fragmentada, "fragmentadora fora de nós e em nós". A casa possibilita ao homem um enraizamento mais profundo na vida e constitui um elemento de estabilidade: "Multiplica os seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso". A casa é capaz de recolher o disperso e conduzir o homem ao recolhimento. Bachelard considera-a "uma das maiores forças de integração" na vida do homem. Deste modo, a casa garante um apoio para resistir aos ataques do mundo exterior, mantendo o homem erguido "através das tempestades do céu e das tempestades da vida", ao mesmo tempo que lhe permite entregar-se aos sonhos de fantasia, aos devaneios, os sonhos diurnos de Ernst Bloch, o que constitui o seu "encanto mais valioso": "A casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz".
Com estes devaneios do sonhador, nasce "a casa do sonho", a "casa onírica", aquele "templo da casa natal", no qual se condensam todas as lembranças das diversas moradas habitadas e vividas pelo homem, bem como as primeiras experiências de habitar no lar paterno, que ajudam a formar a "imagem primitiva da casa": "A nossa casa, captada no seu poder onírico, é um ninho no mundo". Para Bachelard, a consciência de bem-estar da vida que a casa proporciona ao homem é o sentimento feliz de abrigo e de refúgio. Bachelard vai mais longe quando escreve: "Não existe bem-estar sem devaneio. Nem devaneio sem bem-estar. Assim, pelo devaneio, descobrimos que o ser é um bem. Um filósofo dirá: o ser é um valor." O homem sonhador não está lançado e jogado no mundo, porque para ele o mundo é acolhimento e ele próprio é princípio de acolhimento: "O homem do devaneio banha-se na felicidade de sonhar o mundo, banha-se no bem-estar de um mundo feliz. O sonhador é dupla consciência do seu bem-estar e do mundo feliz. O seu cogito não se divide na dialéctica do sujeito e do objecto", porque, quando ele sonha o mundo, o mundo passa a existir tal como ele o sonha. Habitando verdadeiramente todo o volume do seu espaço, o sonhador está em todas as partes no seu mundo, "num dentro que não tem fora". O mundo já não está diante do eu e o eu já não se opõe ao mundo: "tudo é acolhimento".
Se o homem se sentir bem e confortável no calor do seu "ninho", ele será invadido pela "felicidade do habitar", acompanhada pelo sentimento completamente elementar de se sentir semelhante ao animal. Como escreveu o pintor Vlaminck: «O bem-estar que sinto diante do fogo, quando o mau tempo se desencadeia, é totalmente animal. O rato no seu buraco, o coelho na toca, a vaca no estábulo, devem ser felizes como eu». A casa como abrigo permite apreender a cálida "maternidade da casa": o onirismo da casa exige uma "pequena casa" dentro da "grande casa" para que o homem possa recuperar as seguranças primárias da "vida sem problemas". Todos os lugares de repouso são lugares maternais e a casa onírica é, em termos de intimidade e de repouso, mais profunda do que a casa natal, na medida em que sem a "casa de sonho" todas as "casas reais" são "casas mutiladas". O homem da cidade é, de certo modo, um ser mutilado, privado de actividade onírica e reduzido ao "conforto do esófago".
A filosofia fenomenológica do habitar diverge do existencialismo de Jean-Paul Sartre: Bachelard defende que a casa e não o "ser lançado no mundo hostil" constitui a "experiência primitiva do homem". Isto significa que a ameaça e a hostilidade do mundo externo são algo derivado e posterior: "A vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada no regaço da casa. (...) A experiência da hostilidade do mundo e, consequentemente, os nossos sonhos de defesa e de agressividade, são posteriores. No seu germe, toda a vida é bem-estar. O ser começa pelo bem-estar" e, na perspectiva do habitar, "o mundo é o ninho do homem". A ideia de Inverno com a neve e o gelo intensifica especialmente o "valor de intimidade da casa": o "lugar" onde o homem medita o seu ser no ser tranquilo do mundo. Baudelaire já se tinha interrogado: "O Inverno não aumenta a poesia da habitação?" O sonhador "pede anualmente ao céu tanta neve, granizo e geada quanto seja possível. É preciso que haja um inverno canadense, um inverno russo. O seu ninho será mais quente, mais doce, mais amado." Henri Bosco esclarece: "Quando o abrigo é seguro, a tempestade é boa".
Porém, Bachelard previne que, na dialéctica da casa e do universo, não podemos ignorar o momento de luta que se manifesta na resistência contra as forças da natureza. E, recorrendo ao testemunho poético de Henri Bosco, relativo à coragem da casa de Malicroix diante de uma tempestade, chamada La Redouse e construída numa ilha da Camarga, escreve: "A casa lutava com bravura. Ao princípio queixava-se; as piores rajadas atacaram-na de todos os lados ao mesmo tempo, com um ódio nítido e tais urros de raiva que, durante alguns momentos, eu tremi de medo. Mas ela resistiu. Quando começou a tempestade, ventos mal-humorados dedicaram-se a atacar o telhado. Tentaram arrancá-lo, partir-lhe os rins, fazê-lo em pedaços, aspirá-lo. Mas ele curvou o dorso e agarrou-se ao velho vigamento. Então outros ventos vieram e, arremessando-se rente ao solo, arremeteram contra as muralhas. Tudo se vergou sob o choque impetuoso; mas a casa, flexível, tendo-se curvado, resistiu à fera. Sem dúvida ela prendia-se ao solo da ilha por raízes inquebrantáveis e, por isso, as suas finas paredes de pau-a-pique e madeira tinham uma força sobrenatural. Por mais que atacassem as janelas e as portas, pronunciassem ameaças colossais ou trombeteassem na chaminé, o ser agora humano em que eu abrigava o meu corpo não cedeu nada à tempestade. A casa apertou-se contra mim, como uma loba, e, por momentos, senti o seu cheiro descer maternalmente até ao meu coração. Naquela noite ela foi realmente a minha mãe".
É nestes momentos de luta contra as forças destrutivas da natureza que se constitui a "comunidade dinâmica entre o homem e a casa": Erguida contra a tempestade, "a casa torna-se o verdadeiro ser de uma humanidade pura, o ser que se defende sem jamais ter a responsabilidade de atacar. La Redousse é a Resistência do homem. É valor humano, grandeza do Homem». A casa é não somente protecção externa, "concha", mas também símbolo da vida humana: «Toda a forma guarda uma vida. O fóssil já não é simplesmente um ser que viveu; é um ser que ainda vive, adormecido na sua forma". Quando se contrai e se torna mais protector e exteriormente mais forte, o refúgio transforma-se em reduto, isto é, em "fortaleza da coragem para o solitário que nela deve aprender a vencer o medo. Tal morada é educativa". A casa é educativa, a casa educa, a casa paterna é o berço da educação. Isto significa que a casa, além de dispensar interiormente calor, comodidade, repouso, tranquilidade, afecto, serenidade e acolhimento, dá ao homem na sua relação com o mundo exterior firmeza de carácter e força para prevalecer contra o mundo: A casa "é um instrumento para afrontar o cosmos. (...) A casa ajuda-nos a dizer: serei um habitante do mundo, a despeito do mundo". (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa

20 comentários:

Denise disse...

Caro F.,
Quero felicitá-lo por este post de que gostei sobremaneira.
Destaco a importância concedida ao facto de não devermos ignorar o dever de luta e resistência e relembro a simbologia maternante subjacente ao conceito de casa.
Os contos da tradição oral acarinham esta noção de casa: o herói parte mas regressa e, nesse regresso, revaloriza a casa que, entretanto, adquiriu significação diferente.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, faz lembrar o Frei Luís de Sousa... A casa já não era a mesma quando regressou. :)

Denise disse...

:))) Estava a pensar mais nos finais felizes e não nos trágico-românticos.
Mas Frei Luís de Sousa ilustra muito bem a relação da casa com a noção de família e com o indivíduo: a ruína da casa e a sua destruturação representa a ruína e a destruturação do herói e dos que com ele se inter-relacionam. A fuga possível, em contexto romântico seria, inevitavelmente, o amparo espiritual... Outra noção de casa...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Exacto, a noção de amparo espiritual é outra imagem da casa e uma bela imagem.

Sei que não gosta de Guerra Junqueiro, mas ele trata bem dessas imagens.

Já viu como a nossa língua materna é rica e capaz de traduzir todas as outras, deixando um excedente linguístico rico e fértil para a imaginação? :)))

Denise disse...

Não incluir o GJ nos favoritos é diferente de não gostar dele. Quanto à casa metafísica temos o nosso Antero de Quental. Gosta?

A riqueza da nossa língua materna só teria a ganhar com a riqueza metalinguística dos seus falantes. E por aí, muito caminho há por desbravar.... :(

Denise disse...

Há também a casa semiótica, na senda da metaficção e do discurso auto-reflexivo. Eu gosto muito.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, gosto do Antero. Sim, muitos caminhos por percorrer, mas o nosso Estado não valoriza a Cultura e nós não vivemos do Blogue. Dá muito trabalho e sempre corremos o risco de ser sacaneados. A blogosfera é um sistema ecológico virtual que reflecte a ecologia diária que vivemos no nosso dia a dia com os outros, uns leais, outros desleais, outros indiferentes. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Não me importava de viver do blogue: trocava de vida, porque aqui não somos obrigados a andar com os ouvidos alugados, escutando os disparates dos colegas. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O último parágrafo do post que trata do valor educativo da casa revela uma das falhas das reformas da educação: como se fosse possível melhorar a qualidade do ensino sem pôr termo à indisciplina dos alunos e chamar os pais e os professores à responsabilidade.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Amigos

Um desafio: vamos criticar o jornalismo que se faz em Portugal. Está cada vez mais degradado: usam um senso comum corrompido para fabricar notícias. Depois procuram organizar-se corporativamente para legitimar a sua mediocridade. Na Sic há um que diz constantemente que tenhos os filhos num colégio privado e, portanto, faz parte da "classe média". Sãos uns saloios!

Denise disse...

Viver do blogue? Hmmmm
Olhe que inserido num projecto bem argumentado talvez conseguisse um subsídio de alguma entidade governamental ou privada a bem da cultura e do exercício da Filosofia ;-)

Melhorar a qualidade do ensino cabe a todos e a uma escola inclusiva, mas pôr termo à indisciplina já deixou de passar pelos professores, Francisco... :-(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Já não é bom ser professor a nenhum nível de ensino: tudo mentira. Mas não é só o ensino: Portugal vive mergulhado numa terrível mentira, devido à corrupção espiritual e material, alicerçada na mediocridade e na inveja. Também todos sabemos isso. Porém, ninguém age... :(

Denise disse...

Não baixe os braços e não ceda ao desânimo nem ao pessimismo.
Olhe, passe pelo meu RG: concluí o ponto 2 da sua encomenda.
Um abraço e sonhos bonitos!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Já li o seu post e já deixei um primeiro comentário. Regresso amanhã. :)

Anónimo disse...

Caro J Saraiva,
não precisa de ir mais longe quando cita que a casa é «o ser que se defende sem jamais ter a responsabilidade de atacar». De facto, quando se compreende que a coragem é indispensável quando nos vemos ameaçados pela hostilidade exterior, esta jamais será necessária quando nos mantemos em recolhimento. Ora, a casa é precisamente esse «recolhimento», esse privilegiado abrigo contra as forças da Natureza.

Anónimo disse...

Sim! Uma postagem sobre o jornalismo seria óptimo, nomeadamente sobre a sua responsabilidade.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O próximo post irá tratar da verticalidade da casa e criticar a crise urbana da habitação: o desenraizamento estimulado por uma topologia abstracta e por uma arquitectura ultrafuncional.

Em função do tamanho do texto, vou ver se falo da "casa pobre", mas à partida duvido que haja espaço livre para a tratar com profundidade.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Fiz uma alteração no terceiro parágrafo, para clarificar conceitos que não poderei elaborar com cuidado.

A "casa pobre" tem aquilo que um castelo não tem: o valor da "cabana" ou da "choupana", portanto, a casa pequena, o segredo da intimidade.

Anónimo disse...

Sim, essa ideia da «verticalidade da casa» já me parece transcender. Mas penso que seria uma óptima ideia, uma vez que é imperioso, não apenas analisar à luz da dialéctica, mas atribuir um valor que estabelece o sentido à «casa». Mas queira continuar o seu artigo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, o próximo post já está escrito; precisa de ser revisto e filosoficamente ampliado. Repare que trato apenas da espacialidade da vida humana... :)