sábado, 21 de junho de 2008

Cidade e Cultura Urbana

«O mundo contemporâneo, forçado à precariedade pela contínua incitação a um consumo agora alegremente e amanhã ferozmente destrutivo, perdeu a antiga religiosidade, segundo a qual era o mito que condicionava o rito. Hoje, a ritualidade institui os mitos e não é mais o objecto que se mitifica, mas o mito que se materializa».
«A religião do homem moderno é animista, só que a realidade com a qual o homem se identifica não é a natureza, mas o universo das coisas que o próprio homem produz freneticamente para poder freneticamente consumi-las. (...) Num mundo em que a dominante é a imagem, não há outra atitude possível a não ser a do bricolage. O design industrial, que, em última análise, projecta a necessidade e a sua satisfação, é um instrumento de bricolage num ambiente todo artificial, quase uma segunda e falsa natureza em que as pessoas e as coisas se movem com ritmos que são os ritmos aparentemente insensatos e convulsos da cidade industrial moderna. Uma sociedade como a actual, aliás extremamente distante da natureza antiga e harmoniosa, forma um só todo com a cidade, que, porém, não é mais pensada como uma estrutura monumental histórica e estável, mas como um conjunto de canais maiores e capilares por onde a vida corre como um rio.» (Giulio Carlo Argan).
Existem muitas teorias da cidade, entre as quais a da crise da cidade de Argan ou a da imagem da cidade de Kevin Lynch, mas nenhuma delas possibilita fazer generalizações empíricas seguras. Contudo, apareceu, em pleno período de industrialização, uma teoria da cidade cujo desenvolvimento se encontra em dois ensaios seminais: As Metrópoles e a Vida Mental de Georg Simmel (1903) e Urbanism as a Way of Life de Louis Wirth (1938). Esta teoria tem o mérito de evitar definições arbitrárias da cidade, retendo apenas o tamanho e a densidade da população como duas características básicas da sociedade urbana: «uma cidade pode definir-se como um assentamento relativamente grande, denso e permanente de indivíduos socialmente heterogéneos» (Louis Wirth). As cidades têm no pensamento de Simmel a mesma importância que a democracia em Tocqueville, o capitalismo em Marx e a burocracia em Max Weber. Em vez de reduzir o estudo da organização social metropolitana em chave demográfico-territorial, Simmel prefere concentrar-se nas formas psíquicas que nascem da interacção entre indivíduos. A sua hipótese-chave centra-se na relação cultural do dinheiro/desenvolvimento da personalidade do habitante da metrópole.
Com o aumento do número de indivíduos provenientes de outras regiões, que transportam consigo novas crenças, valores e estilos de vida, surge na cidade uma heterogeneidade maior da população. O crescimento demográfico devido à migração exige maior divisão do trabalho e o advento de novos papéis ou funções, quase sempre muito especializados. Ora, o tamanho da população e a heterogeneidade social impedem a familiaridade difundida com os outros que caracteriza a pequena comunidade. Na cidade, a vida social do indivíduo baseia-se cada vez mais nas relações formais e impessoais que desestimulam a possibilidade de intimidade: a associação formal substitui o grupo primário como contexto prático no qual o indivíduo executa a maior parte das rotinas da vida quotidiana.
Estas mudanças nas relações sociais são acompanhadas por alterações culturais. Simmel mostrou que a variedade e o número de estímulos externos e de contactos sociais tendem a aumentar ou, como diz, a rápida e ininterrupta mudança de estímulos externos e internos intensifica de tal modo a "estimulação nervosa" que o citadino típico é forçado a desenvolver uma atitude blasé ou snob e a racionalidade para se proteger das pressões incessantes do ambiente social urbano: «A essência do snobismo (isto é, da atitude blasé) é a indiferença face às diferentes coisas, não no sentido em que elas não seriam percebidas, como no caso das pessoas estúpidas, mas no sentido de que o significado e o valor das diferenças entre as coisas, e, por conseguinte, o significado e o valor das coisas em si próprias, são encaradas como vãs. Elas surgem à vista do indivíduo snob com um matiz uniformemente baço e cinzento, de tal maneira que não existe motivo para preferir um objecto a um outro. Este estado de espírito é o reflexo fiel da economia monetária completamente interiorizada». A economia monetária característica da cidade reforça mais a racionalidade, o predomínio do intelecto e a objectividade do citadino típico, visto o dinheiro ser um meio abstracto que reduz ao mínimo os critérios pessoais de julgamento e fornece à interacção social o seu carácter formal. O dinheiro é o ser equivalente de coisas diferentes e, enquanto denominador comum de todos os valores, «exprime toda a diferença qualitativa entre elas, mediante diferenças quantitativas», esvaziando-as da sua substância, da sua particularidade, do seu valor específico e da sua incomparabilidade. Como escreveu Simmel:
«A pontualidade, a capacidade de cálculo e a exactidão são impostas à vida pela complexidade e pela extensão da existência urbana e não estão apenas relacionadas da maneira mais íntima com a sua economia monetária e o seu carácter intelectualista. Estas características devem igualmente matizar os conteúdos da vida e fornecer a exclusão daquelas características e impulsos irracionais, instintivos e soberanos que visam determinar o modo de vida a partir do interior, em vez de receberem do exterior a forma geral da vida esquematizada de maneira precisa».
A impessoalidade (anonimato), a racionalidade e a diversidade urbanas criam também a tolerância das diferenças e uma despreocupação pelo comportamento alheio, possibilitando ou até mesmo estimulando a inovação e o desprezo pela tradição. Dada poder escapar às coerções inerentes às interacções íntimas e próximas com os outros, o citadino típico pode tomar a seu cargo a resolução dos seus interesses, adoptar novas crenças e orientar-se por novas linhas de acção. E, mesmo que os outros desaprovem o seu comportamento, ele pode mudar não só de residência mas também de amigos ou de conhecidos, procurando os que partilham os seus pontos de vista e as suas inclinações. Deste modo, podem emergir na cidade milhares de mundos sociais, culturais e étnicos, cada qual com as suas crenças, os seus valores e os seus padrões de acção distintos, embora dentro dos limites impostos pelas formas urbanas de controle social.
Na cidade, é fácil escapar à vigilância e perder-se na multidão citadina anónima. Por isso, a tradição e as opiniões da família e dos amigos perdem força ou mesmo credibilidade perante o citadino típico. Porém, as organizações burocráticas e formais que predominam na cidade barram, de diversos modos, essa liberdade individual, e impõem à cidade uma máquina formal da lei e dos regulamentos burocráticos que afecta o seu destino colectivo. Esta gigantesca máquina organizacional, cuja divisão do trabalho exige ao indivíduo um desempenho cada vez mais especializado, acaba por produzir "a atrofia da personalidade": «O indivíduo é cada vez menos capaz de fazer frente ao enorme aumento da cultura objectiva. O indivíduo é reduzido a uma quantité négligeable, talvez menos na sua consciência do que na sua prática e na totalidade dos obscuros sentimentos colectivos que dela nascem». Segundo Simmel, esta atrofia da cultura individual mediante a hipertrofia da cultura objectiva conduz ao ódio, à agressividade, à violência e à exclusão, na medida em que a atitude mental do citadino é uma atitude de reserva, não apenas de indiferença, mas também de uma ligeira aversão.
Mais próximo do nosso tempo e na peugada de Horkheimer, Adorno e Marcuse, Argan associou a liquidação do indivíduo com a crise da cidade:
«Foi-se reduzindo cada vez mais até ser eliminado o valor do indivíduo, do ego; o indivíduo não é mais do que um átomo na massa. Eliminando o valor do ego, elimina-se o valor da história de que o ego é o protagonista; eliminando o ego como sujeito, elimina-se o objecto correspondente, a natureza. (...) A realidade não é mais dada em escala humana, isto é, na medida em que pode ser concebida, pensada, compreendida pelo homem, mas na medida em que não pode e não deve ser pensada, e sim apenas dominada ou sofrida, objecto de um êxito ou de um malogro; na dimensão, portanto, do infinitamente grande e do infinitamente pequeno, do superior e do interior».
J Francisco Saraiva de Sousa

14 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Simmel não faz a distinção entre trabalho abstracto e trabalho alienado, como fez brilhantemente Engels. Apesar disso, a sua teoria da vida metropolitana capta padrões urbanos dominantes que ameaçam atrofiar a mente individual. Isso que ele analisou está a realizar-se diante dos nossos olhos: o capitalismo tardio produziu uma sociedade metabolicamente reduzida. Esta sociedade está a liquidar o indivíduo autónomo e a cultura superior.

As últimas aterações sofridas pelas sociedades urbanas serão analisadas noutros posts.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Embora este post não necessitasse do recurso a Argan, considero que a sua teoria da cidade como arte pode ajudar a elaborar projectos de salvação da cidade e da sua história e a orientar os arquitectos nessa tarefa.

É o que sucede com a cidade do Porto: existem umas criaturas cá no Porto que têm uma noção errada de "centro histórico" e tudo fazem para dificultar a sua revitalização. Ou que adulteram a cultura e a história do Porto por má-fé e muita ignorância, como mostra o caso do Bolhão.

A especulação deve ser contida e bem vigiada, porque os preços elevados dos terrenos e das habitações ou dos espaços comerciais e de serviços ameaçam desertificar o burgo propriamente dito. Fazem as pessoas sair da cidade e ir viver para os subúrbios ou cidades-satélites. Além disso, o Porto deve ser pensado ecologicamente como uma cidade com núcleos múltiplos que se concentram em torno do centro histórico. A modernização deve ser incentivada.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Começo assim a elaborar uma teoria crítica da cidade e da arquitectura. Aldo Rossi, Bruno Zevi, L. Benevolo, Argan, Wölfflin, Pevsner, ou Noberg-Schulz e Charles Jencks, são alguns teóricos da arquitectura que deverão ser analisados. Rossi está muito próximo da teoria crítica: pensar o espaço é tarefa prioritária. Todos eles estão fartos das teorias sociológicas, de resto desprezadas.

André LF disse...

Francisco, cheguei agora e estou muito cansado. A vida capitalista nos mata numa velocidade impressionante.
Excelente a sua idéia de elaborar uma teoria crítica da cidade e da arquitetura. As construções do capitalismo são bunkers infelizes que nos separam cada vez mais. As atuais obras, em sua maioria torres glaciais, nos distanciam da res publica e da amizade proveniente da convivência com os vizinhos. Moro em um prédio que é o templo do individualismo e da neurose. Recentemente fui a uma reunião de moradores do prédio e tive uma aula prática de psicopatologia. Estou rodeado pela pior espécie de loucos, os insanos capitalistas que só enxergam o próprio umbigo.
Amanhã lhe enviarei um texto de José Lins do Rêgo, grande escritor brasileiro, sobre as construções da modernidade.
Boa noite.

André LF disse...

Gostei muito do texto. Fiquei com uma dúvida. Você afirma que
"a impessoalidade (anonimato), a racionalidade e a diversidade urbanas criam também a tolerância das diferenças e uma despreocupação pelo comportamento alheio, possibilitando ou até mesmo estimulando a inovação e o desprezo pela tradição".
A impessoalidade, a racionalidade e a diversidade urbanas não criam, sobretudo, a intolerância das diferenças e uma preocupação obsessiva pelo comportamento alheio, visto como uma constante ameaça aos interesses dos metabolicamente reduzidos? Reconheço a existência da atitude blasé, de que fala Simmel, e da indiferença, mas não seriam estas manifestações menos freqüentes do que os comportamentos hostis e de defesa?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Estive a fazer algumas correcções mas reparei que a teoria de Simmel pode ser lida numa outra chave: a cidade produz stress e facilita a explosão das diferenças e o fortalecimento da individualidade. Como sou dialéctico, não vejo nenhum problema nesta defesa da liberdade individual.
Ok, aguardo o texto de Lins que não conheço.
Boa noite.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, há essa ambivalência em Simmel. Talvez possa ser explicada pela própria complexidade das cidades. Mas existe esse comportamento de intromissão na vida alheia, talvez mais ao nível da vizinhança ou áreas residenciais.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Engels capta melhor esses aspectos, porque trata das diferenças e dos conflitos sociais. Os modelos ecológicos da cidade mostram que existem zonas segregadas, espaços intersticiais ou de exclusão ou mesmo auto-exclusão. Tratei disso noutros posts. :)

... disse...

Caro Francisco,

Continuo a ser um leitor, embora intermitente, e nada participativo, do seu blog - não é por defeito, é mesmo por feitio :). Devo congratulá-lo pois, de facto, é um ser capaz de uma extensão e ritmo de análise e de verbalização de pensamento extraordinários. Pessoalmente tenho pena que não dê uma continuidade mais regular à neurofilosofia, mas o meu voto nessa matéria deverá ser inútil. Também gostei deste post, embora continue a achar que o grau de abstracção racionalizada que conduz o seu pensamento, (funâmbulo sobre a rede de intertextualidades, aparentemente legitimadoras, que lhe garantem a segurança, que lhe dão maior confiança e até, quase, por vezes, fazem parecer você soar a certeza...) me leve a duvidar da existência concreta das pessoas e, neste caso, das cidades, sobre as quais se debruça.
Não estará já imerso nessa impessoalidade e nessa racionalidade que aqui descreve, e nos concomitantes condicionalismos que acarretam? E com isso, a uma distância discordante da realidade, que apenas uma deturpadora cadeia de sistemas lhe permite aparentes aproximações - embora estas, no fundo, não sejam talvez mais do que ordenadas manipulações de objectos dentro dos sentidos estritos que, como num jogo de espírito, obedecem a pré-estabelecidas regras, cujas origens estarão sempre definidas ou por numa arbitrariedade ou por uma crença? (Em matemática diz-se : Fator racionalizante de uma expressão irracional é uma outra expressão, também irracional, em que o produto entre elas resulta em uma expressão sem radical, ou seja, que a torne uma expressão racional.) Bem, foi até aqui que a insónia me trouxe, quando a razão desta minha abordagem era outra. Mais uma vez extemporânea, mas desta vez acrescida ainda de uma desobediência ao lugar. Refiro-me aos posts "Heidegger e a Questão da Técnica" e "Memória, Cativeiro e Êxtase"; não obstante o ter apreciado, ia aborrecer-me estar a aqui a comentá-los, por isso passo já ao que me interessa. Gostaria de saber se tem conhecimento e está familiarizado, concordante ou não, do conceito "figuração", relativo à hermenêutica. A obra que há uns anos me despertou a atenção para essa questão foi "A Poética do Possível" de Richard Kearney, e como também anda na esteira de Heidegger e de Derrida, achei que talvez pudesse ser interessante introduzi-la nos seus assuntos.

P.S. : Eu não sou irritante, embora por vezes julgue que seja necessário parece-lo. ;)

Cumprimentoz

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Caro (z)

Tenho negligenciado muito a "neurofilosofia", não só porque não tenho tempo para manter os blogues ao mesmo nível de produção, mas também porque estou a pensar noutro conceito e em determinadas pesquisas. Esta falha que detecto em muitos estudos está a ser pensada; logo que possa volto à neurofilosofia.

A teoria que exponho neste post tem as suas dificuldades e foi usada sobretudo nos USA: as cidades têm a marca da sua longa história, o que dificulta muito a elaboração de uma teoria geral. As cidades portuguesas têm as suas particularidades, mas infelizmente não temos bons estudos urbanos. Contudo, os padrões revelados por Simmel e Wirth parecem ser consensuais, apesar das particularidades de cada cidade ou país. Também é uma teoria originariamente elaborada para a cidade industrial...

Sim, conheço essa obra de Richard Kearney: a figuração como um fazer criativo. Talvez possa vir a integrar esse conceito em função de outra matriz teórica. A obra sobre a poética do possível é muito interessante.

... disse...

Obrigado pelo esclarecimento.

E parabéns pelo Rodriguez. ;)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Obrigado Rodriguez & (Z). Talvez regresse brevemente à neurofilosofia depois do S. João do Porto. :)))

E. A. disse...

(Z),

Não é nada irritante! Apareça mais vezes! Escreve muito bem! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

(Z)

Adicionei o seu blogue aos meus elos.