sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Ordem de Nascimento Fraternal e Orientação Sexual Masculina

De acordo com a hipótese da ordem de nascimento, a orientação sexual está correlacionada com a ordem de nascimento. Assim, um homem com um ou mais irmãos mais velhos tem maior probabilidade de ser homossexual do que um homem sem irmãos, apenas com irmãos mais novos ou com uma ou mais irmãs mais velhas. O efeito da ordem de nascimento é tão forte que cada irmão mais velho adicional aumenta a probabilidade da homossexualidade em cerca de um terço, o que pode significar ainda uma baixa probabilidade: um aumento de três para quatro é um aumento de 33%.
O efeito foi observado inicialmente na Grã-Bretanha, na Holanda e nos Estados Unidos, em muitas amostras diferentes de indivíduos (Blanchard & Zucker, 1994; Blanchard & Bogaert, 1996; Blanchard & Klassen, 1996; Blanchard, 1997; Bogaert, 1997; Blanchard et al., 1998; Bogaert, 1998; Purcell et al., 2000; Blanchard, 2001; Bogaert, 2006). A psicanálise interpretaria este efeito como algo que, na dinâmica do crescimento numa família com irmãos mais velhos, poderia predispo-lo para a homossexualidade. Contudo, a ideia freudiana de que a homossexualidade era causada por uma mãe protectora e um pai distante parece confundir causa com efeito: os comportamentos e os interesses efeminados que se desenvolvem no rapaz repelem o pai, e, por isso, a mãe, em compensação, torna-se necessariamente superprotectora, como evidenciam muitos homossexuais portugueses entrevistados. Este facto sugere que a resposta deve ser procurada noutro lugar.
Como explicar este efeito da ordem de nascimento fraternal? As conclusões anteriores apoiam-se sobre o pressuposto de que os irmãos mais velhos provocam homossexualidade, quer directa quer indirectamente. Este pressuposto parece ser justificado por uma variedade de fundamentos lógicos e empíricos. De um ponto de vista puramente matemático, a correlação observada entre homossexualidade e irmãos mais velhos pode surgir basicamente de três vias diferentes: a homossexualidade pode causar os irmãos mais velhos (1), os irmãos mais velhos podem causar a homossexualidade (2), ou ambas as variáveis podem ser causadas por uma «terceira variável». Cantor et al. (2002) eliminaram a primeira possibilidade por razões lógicas: a homossexualidade de um homem não pode operar para trás no tempo para produzir os seus irmãos mais velhos adicionais. Assim, existe apenas uma interpretação competente, nomeadamente a de que a homossexualidade e os irmãos mais velhos estão correlacionados somente por causa de ambas serem causadas por uma terceira variável.
Surge então a questão: Qual é a terceira variável? Diversas hipóteses foram elaboradas para explicar o efeito da ordem de nascimento fraternal: a idade parental, pouco credível face à evidência empírica, Y-Bearing Sperm, demasiado especulativa, a hipótese imunitária e uma explicação ambiental, facilmente refutável, das quais a mais «acarinhada» pelos investigadores foi até muito recentemente a h
ipótese imunitária.
Blanchard & Bogaert (1996b) colocaram a hipótese de que a correlação da ordem de nascimento fraternal com a orientação sexual nos machos reflecte a progressiva imunização de algumas mães aos antigenes de histocompatibilidade menor ligados ao Y (H-Y antigenes) por cada um dos sucessivos fetos masculinos e, concomitantemente, os efeitos aumentados dos anti-corpos anti-H-Y sobre a diferenciação sexual do cérebro em cada um dos sucessivos fetos masculinos. Esta hipótese apoia-se parcialmente sobre o argumento de que o sistema imunitário de uma mulher parece ser o sistema mais capaz de «relembrar» o número de gravidezes masculinas (mas não femininas) que transportou anteriormente e a alteração progressiva da sua resposta ao feto seguinte em conformidade com a marcação corrente dos machos precedentes.
Além disso, apoia-se também na descoberta de que a orientação sexual nas fêmeas, as quais não expressam antigenes H-Y e que, por isso, não são alvo dos anticorpos anti-H-Y no útero, não está relacionada com o seu número de irmãos mais velhos. Por conseguinte, a hipótese parece consistente com dois factos observados: primeiro, o efeito da ordem de nascimento não existe nas lésbicas, que estão distribuídas aleatoriamente dentro das respectivas famílias e, segundo, o número de irmãs mais velhas é irrelevante para prever a homossexualidade feminina.
Estas observações sugerem que existe algo específico na ocupação de um útero que já teve outros machos que aumenta a probabilidade da homossexualidade. Blanchard & Klassen (1997) apresentaram vários tipos de evidência experimental animal e de evidência clínica humana que sugerem uma explicação que diz respeito a um conjunto de três genes activos no cromossoma Y, os chamados antigenes de histocompatibilidade menor H-Y. O significado disto está agora a tornar-se evidente, graças aos trabalhos de Blanchard. Os produtos destes genes são chamados antigenes devido ao facto de se saber que provocam uma reacção do sistema imunitário da mãe. Como resultado, a reacção imunitária tem probabilidade de ser mais forte em gravidezes masculinas sucessivas: os bebés femininos não produzem antigenes H-Y, pelo que não desencadeiam a reacção imunitária.
Blanchard argumenta que a função dos antigenes H-Y é activar outros genes em certos tecidos, em particular no cérebro. De facto, existe evidência empírica de que isto é verdade nos ratos e, se assim for, o efeito de uma reacção imunitária forte contra essas proteínas por parte da mãe seria o de impedir, em parte, a masculinização do cérebro, mas não a dos órgãos genitais. Por sua vez, isto pode fazer com que os indivíduos se sintam atraídos por outros machos ou, pelo menos, não se sintam atraídos por fêmeas. Assim, numa experiência em que ratos bebés masculinos foram imunizados contra os antigenes H-Y, eles foram, mais tarde, incapazes de acasalar com sucesso, em comparação com os controles. Do mesmo modo, os machos das moscas-da-fruta podem ser induzidos de modo irreversível a exibirem apenas comportamento sexual feminino pela activação, num momento crucial do desenvolvimento, de um gene chamado «transformer» (Arthur, Jallon, Caflisch, Choffat, & Nothiger, 1998).
Mais recentemente, esta hipótese de Blanchard & Bogaert de que o efeito da ordem de nascimento fraternal opera no meio pré-natal foi apoiada pela descoberta de que os machos homossexuais com irmãos mais velhos são substancialmente menos pesados ao nascimento do que os machos heterossexuais com irmãos mais velhos (Blanchard, 2001; Blanchard & Ellis, 2001). Além disso, o efeito da ordem de nascimento só se exerce sobre os indivíduos destros e não sobre os canhotos ou esquerdinos (Lalumiere, Blanchard & Zucker, 2000), além de estar também associada com a surdez. Estes últimos dados são compatíveis com a teoria da assimetria flutuante.
Se a hipótese imunitária maternal for correcta e se, como sugere a evidência animal (Epstein, Smith & Travis, 1980; Krco & Goldberg, 1976; Shelton & Goldberg, 1984; White, Anderson & BonDurant, 1987; White, Lindner, Anderson & BonDurant, 1983), os fetos masculinos começam a expressão de antigenes H-Y muito cedo durante o desenvolvimento, então os fetos masculinos abortados espontaneamente podem também imunizar a mãe e, deste modo, aumentar a probabilidade de homossexualidade nos seus subsequentes recém-nascidos masculinos (Cantor et al., 2002). Daqui parece resultar que um cálculo baseado sobre a relação observada entre a orientação sexual de um homem e o seu número de irmãos mais velhos nascidos vivos subestima a proporção de homossexuais que devem as suas orientações sexuais ao efeito da ordem de nascimento fraternal ou ao mecanismo subjacente. Assim, pode-se argumentar que a verdadeira percentagem dos homens homossexuais com "irmãos mais velhos" está provavelmente situada mais acima do que abaixo da estimativa apresentada por Cantor et al. (2002).
Contudo, os homens não são ratos nem moscas e existem muitas evidências de que a diferenciação sexual do cérebro humano continua após o nascimento, além de ter inicío antes da libertação de testosterona pelos testículos fetais, e de que os homens homossexuais não são, excepto em casos muito raros, aqueles que seguem a via do transexualismo, «mentes femininas» encurraladas em «corpos masculinos», visto que os seus cérebros devem ter sido, pelo menos em parte, masculinizados pelas hormonas sexuais. Todavia, é possível que tenham tido menos hormonas num período sensível precoce e crucial e que isso tenha afectado permanentemente algumas funções, incluindo a orientação sexual e outras inclinações sexuais.
Numa amostra portuguesa, resultante da distribuição de um questionário e determinadas escalas anexas, verificámos que um número significativo de homossexuais masculinos são filhos mais novos, tendo quase todos eles irmãos mais velhos. Estes resultados parecem estar em conformidade com a hipótese da ordem de nascimento, embora tenhamos tentado correlacionar a idade da mãe e a homossexualidade, no suposto de que deveria haver na placenta alguma enzima que bloqueasse os efeitos masculinizantes da testosterona pré-natal. Mas, seja como for, os antigenes H-Y não parecem constituir um outro mecanismo biológico que interfira com a orientação sexual, como demonstram as experiências com ratazanas realizadas por E. Simpson et al. (1997). A questão reside agora em saber como os genes e os seus produtos agem uns sobre os outros, na hipótese da homossexualidade ser susceptível de uma explicação monocausal, ou se eles agem independentemente uns dos outros, donde resulta uma diferenciação das homossexualidades ao nível dos mecanismos biológicos.
O que é comum a todas as hipóteses biológicas propostas (neuro-endócrina, stress pré-natal, hiperandrogenização, assimetria flutuante e genética) é que esses mecanismos agem fundamentalmente ao nível do sistema nervoso, impedindo a masculinização total do cérebro homossexual ou a feminilização total do cérebro lésbico: o neuromodelo da diferenciação sexual não é abandonado mas, pelo contrário, reforçado e complexificado, devendo ser visto provavelmente à luz do "antagonismo sexual" reformulado. Para todos os efeitos, devo confessar que a hipótese imunitária não me satisfaz completamente, apesar de contar actualmente com a evidência de muitíssimas amostras.
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Mudança Política da Teoria Crítica

Este é um post de debate íntimo em que, como teórico crítico e profissional do pensamento, confrontado com uma situação de insanidade mental generalizada e de degradação cultural acelerada, pretendo iniciar uma reflexão em torno da necessidade filosófica de operar uma mudança política no seio da própria teoria crítica, transfigurando um texto de juventude.
A teoria crítica já tinha perdido a »esperança» de encarar o proletariado como o agente da mudança social qualitativa: a teoria do proletariado foi abandonada e, com ela, iremos também rejeitar os movimentos sindicais, dos quais Lenine desconfiava, e romper os vínculos com os partidos da esquerda tradicional. A teoria crítica deve mudar de rumo e defender a "cultura de elite" contra a sua apropriação por parte de todos os «animais metabolicamente reduzidos», os chamados "cidadãos comuns", incluindo os professores e os intelectuais corrompidos, que se alimentam sofregamente nas praças da alimentação e que nunca leram uma obra da Tradição Ocidental ou, se a leram, foram pela força das circunstâncias incapazes de a compreender.
Isto significa que, em termos políticos, a teoria crítica deve assumir uma nova tarefa: garantir a manutenção da civilização ocidental, despojando-a da noção de "igualdade", a ideia mais terrível produzida pela nossa própria cultura democrática. A teoria crítica já não precisa do apoio de grupos sociais estranhos à sua matriz (as elites genéticas) e, mesmo no plano da educação, dispensa os professores, as escolas e os alunos, bem como os seus organismos estatais ou privados.
A nossa perspectiva da teoria crítica da educação em mutação inspira-se basicamente em perspectivas radicais exemplificadas pelos trabalhos teóricos de Paulo Freire, Henry Giroux, Peter McLaren, Michael W. Apple e S. Aronowitz. A pedagogia do oprimido de Paulo Freire constituiu, durante muito tempo, o modelo crítico que mais se aproximava das intenções práticas de uma teoria crítica da educação fortemente comprometida com a educação das massas populares. Contudo, neste momento de ofuscamento total da Tradição Ocidental, devido à ascensão social do «homem-massa» (Ortega y Gasset), precisa ser submetida a uma crítica imanente, de modo a «corporificar» o pensamento de Adorno, sem o despir do seu elitismo: a teoria crítica da educação deixa de defender a universalização da cultura superior e, num só e mesmo movimento, regressa à Filosofia onde se fecha, numa rememoração permanente de Platão. Ou, de modo provocante, regressa aos «mosteiros do conhecimento puro», donde justifica todas as lutas que visam a eliminação dos «animais metabolicamente reduzidos» numa atitude de perfeita indiferença pelo seu destino social.
Confrontando-se com as diversas problemáticas administrativas ou mesmo «democráticas» da educação e com o sistema de ensino tal como este vigora nas nossas sociedades, a teoria crítica da educação trabalha a sua própria diferença, ao mesmo tempo que reclama a exclusividade. Partindo do pressuposto, empiricamente irrefutável, de que os homens são seres não livres e não iguais que habitam um mundo repleto de contradições e assimetrias de poder, a teoria crítica da educação propõe modelos dialécticos que reconhecem o conceito de sociedade como relação mediada e mediadora entre indivíduos isolados. A sociedade não é um mero aglomerado de indivíduos, nem é algo absolutamente autónomo situado fora dos indivíduos, mas possui em si mesma simultaneamente os dois momentos. A sociedade realiza-se através dos indivíduos, mas, enquanto relação, não pode reduzir-se a eles. Os indivíduos realizam-se através da sociedade, mas, enquanto entidades isoladas, não podem constituir a sociedade. Esta compreende uma interacção entre os indivíduos e uma objectividade que os enfrenta de modo autónomo.
A dialéctica da sociedade tenta reconstituir a experiência que nos é denegada tanto pelo sistema social estabelecido como pelas suas formas de consciência reificada. A sociedade é experiência: algo que encontramos imediatamente em nós e diante de nós e algo que reconhecemos como a condição dos problemas que podem ser criticados e subvertidos, de modo a que a "experiência viva" (não-regulamentada) possa prevalecer sobre a experiência coisificada e endurecida (Adorno). A totalidade social actual só une os indivíduos entre si mediante a sua «alienação». O indivíduo cria e é criado simultaneamente pelo universo social de que faz parte. Os conceitos de indivíduo e de sociedade medeiam-se entre si e, por isso, não podem ser pensados independentemente um do outro. Como escreveu Horkheimer:
«A individualidade é prejudicada quando cada homem decide cuidar de si mesmo. À medida que o homem comum se retira da participação nos assuntos políticos, a sociedade tende a regredir à lei da selva, que esmaga todos os vestígios da individualidade. O indivíduo absolutamente isolado foi sempre uma ilusão. As qualidades pessoais mais estimadas, tais como a independência, o desejo de liberdade, a simpatia e o senso de justiça, são virtudes tanto sociais como individuais. O indivíduo totalmente desenvolvido é a consumação de uma sociedade totalmente desenvolvida. A emancipação do indivíduo não é uma emancipação da sociedade, mas o resultado da libertação da sociedade da atomização. Uma atomização que pode atingir o cume nos períodos de colectivização e de cultura de massas».
A heteronomia predominante na sociedade de consumo liquida completamente a interioridade da subjectividade, transformando-a numa espécie de "consciência feliz", absolutamente massificada, ignorante, apática e resignada perante o poder da sociedade completamente administrada. Os indivíduos atomizados, no seu excesso de zelo para atingir a adaptação e a reacção imediata a situações pontuais, previamente produzidas pelas empresas capitalistas, são impedidos de levar a cabo a conformação de um "eu fixo" — uma identidade subjectiva e objectivamente real, que não mude de situação em situação, em função dos papéis sociais desempenhados e socialmente atribuídos durante o longo processo de socialização primária e secundária. A escola transformou-se, ela mesma e com o empurrão da racionalidade administrativa, numa indústria cultural e, como esta, atrofia aquilo que devia ajudar a libertar: o poder da imaginação do indivíduo rebelde.
Ora, diante deste cenário de falência do esclarecimento, a teoria crítica da educação não tem outra alternativa senão alertar os "pensadores profissionais independentes" e convidá-los a ver a escola simplesmente como um meio de sustentar, legitimar e reproduzir os interesses do sistema tecno-económico generalizado, dirigidos para a fabricação de indivíduos obedientes, dóceis e activamente ignorantes. Isto significa que a escola não é e nunca será um terreno cultural que confere poder ao estudante (qualquer indivíduo) e promove a auto-transformação — ou seja, a tarefa de reconquistar a individualidade perdida no seio de um aglomerado de consumidores passivos e alterdirigidos pelo poderoso sistema das indústrias culturais.
Assim, a anterior visão da escola como instituição contraditória deixa de ser a mais adequada para se cumprir a tarefa do pensamento, exaustivamente preconizada por Marcuse em diversas das suas obras: fazer com que «a interioridade e a subjectividade venham a tornar-se o espaço interior e exterior da subversão da experiência, da emergência de outro universo». A escola não escapa à mediação universal de todo o social através da sociedade: a crítica da escolarização é necessariamente a crítica da sociedade administrada e da sua economia política globalizada. A teoria crítica da educação confronta a realidade efectiva do ensino escolar (escolarização), no seu contexto histórico, com a sua falsa promessa de realizar a formação cultural (educação), a fim de criticar a relação entre ambos, de modo a rejeitá-los.
A escolarização é fundamentalmente um modo de controle social, que procura produzir os indivíduos de que a sociedade capitalista precisa para se perpetuar no tempo, sem alterar a sua estruturação global. A educação teve supostamente no passado o potencial de transformar/transcender a sociedade, mediante a transformação do estudante num sujeito activo e consciente comprometido com o crescimento do seu poder pessoal e social. A escolarização que não esteja ligada à luta por uma vida qualitativamente melhor e sem angústia para todos, através da construção de uma sociedade baseada em relações livres de coerção e na justiça social não responde à exigência dos seus princípios conceptuais.
Hoje, a escola integrada ensina sem educar. Pode, num determinada disciplina ideológica, ensinar a preencher um cheque, sem, no entanto, fornecer conhecimentos conceptuais e orientação histórica para aqueles que, no processo educativo, ainda ousam ter esperança — sobretudo, aqueles poucos professores competentes que ainda não perderam a esperança de voltar a educar e a formar alguns dos seus alunos, pelo menos, aqueles que resistem aos condicionalismos e constrangimentos do currículo oculto e da sua matriz: a ideologia dominante das novas classes dirigentes.
Neste sentido, Henry Giroux desenvolveu uma teoria do currículo, a qual articula uma "teoria dos interesses" e uma "teoria da experiência"
. A teoria dos interesses explica o modo como o currículo reflecte os interesses da ordem social estabelecida: as visões particulares do mundo que representam e as relações sociais que glorificam ou descartam. A teoria da experiência mostra que o currículo é uma narrativa historicamente construída que produz e organiza as experiências do estudante no contexto de formas sociais fetichizadas, tais como o uso da linguagem, a organização do conhecimento em categorias de alto e baixo status e a afirmação de tipos particulares de estratégias de ensino. O currículo configura os interesses e as experiências particulares, em função dos imperativos do crescimento económico contínuo, de resto uma ideologia perigosa em termos de ambiente.
O currículo oculto que se insinua na prática diária pedagógica é consciência reificada. A linguagem pedagógica administrativa é sedimento do "pensamento único". A consciência colonizada é consciência coisificada que, incapaz de problematizar, se deixa pensar pelo opressor. Pura heteronomia! O consenso obtido na e pela linguagem ordinária é a vitória do opressor. A linguagem vulgar silencia a voz do oprimido: nela o oprimido vê-se a si mesmo com os olhos do opressor. «A terapia linguística — isto é, o esforço rumo a palavras (e assim conceitos) livres de tudo, sem distorção do seu significado pelo establishment — postula a transferência de standards morais (e da sua validade) do establishment para a revolta contra ele» (Marcuse)
. A linguagem do opressor pode ser radicalmente remodelada e extirpada da sua falsa neutralidade. Contudo, neste momento de indigência mental e cognitiva, uma linguagem, metódica e provocatoriamente «moralizada» em termos de recusa, já não é capaz de confirmar as vozes dos professores e dos estudantes, ambos colonizados pela ideologia dominante, e muito menos associar o propósito da escolarização a uma visão transformadora do futuro. Dar a palavra ao oprimido é renovar e recriar uma nova linguagem: a que nomeia as coisas pelo seu verdadeiro nome. Mas o oprimido não é actualmente qualquer pessoa proveniente das classes sociais inferiores, mas todos aqueles que são dotados geneticamente de uma inteligência superior.
O professor que abandone a investigação fundamental depois de ter obtido fraudulentamente o diploma de licenciatura ou qualquer outro grau académico mais avançado, na maior parte das vezes obtido de modo precipitado e demasiado fácil, deixa, por isso, de ser um professor empenhado e responsável e, mais cedo ou mais tarde, ingressa na categoria dos frustrados que consultam o psiquiatra para adormecer o seu vazio existencial. Já não está à altura da sua verdadeira missão educativa. Pedagogia e investigação contínua foram sempre inseparáveis até que se criou a burocratização da arte de ensinar; a partir desse momento, os professores, bem como os alunos, foram aprisionados, condenados a não ter direito à palavra autónoma. A pedagogia administrativa monopoliza a palavra e, ao negá-la aos outros participantes do processo educativo, mais não faz do que silenciar o seu protesto — o protesto contra a invasão da consciência por parte dos inimigos do pensamento e da imaginação criadores. Ou melhor, estes participantes já não sabem o que significa o protesto: a sua linguagem visa apenas a defesa das suas regalias egoístas. O corpo engorda, enquanto a mente definha, pensando unicamente na refeição seguinte.
Comprometida irrevogavelmente com os humilhados e ofendidos, a pedagogia crítica foi radicalmente revolucionária: sendo a História fundamentalmente um processo aberto, a libertação é um objectivo autêntico e um mundo radicalmente diferente pode tornar-se real, desde que as pessoas não tenham medo de se servir do seu entendimento para determinar racionalmente, em diálogo umas com as outras, os fins da sua acção. Ora, este ideal do esclarecimento reproduziu o seu contrário: a idade das trevas. Por isso, a teoria crítica deixou de acreditar na escola e nos seus intervenientes, abraçando o sonho de Ivan Illich de uma «sociedade sem escolas». Deste modo, a teoria crítica pode estar pronta a escutar Hannah Arendt e desconstruir a "questão social" em nome de uma cidadania elitista. Portanto, como funcionários públicos ou privados, os professores devem obedecer às ordens dos seus superiores hierárquicos e acatá-las submissamente, porque são eles que lhes pagam os ordenados que lhes permite garantir o seu aprisionamento à esfera da necessidade. E, como se sabe, segundo os mestres gregos, aqueles que estão prisioneiros da necessidade não têm direito à palavra. Esta é a lição de Hannah Arendt integrada pela nova teoria crítica da sociedade. Só os cidadãos livres da necessidade têm direito à palavra e de participar na esfera pública. Os restantes são uma espécie de «escravos» que devem obedecer aos seus amos. (Para quem não sabe, a Teoria Crítica é o Marxismo.)
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

A Escola como Instituição Crítica

Com o objectivo de arrefecer os ânimos, tal como se revelaram nos comentários feitos pelos professores ao post anterior, vou apresentar aqui um brevíssimo resumo de uma conferência que dei no decurso da "1ª Conferência Internacional de Filosofia da Educação", realizada no Porto, em Maio de 1998, por iniciativa do Gabinete de Filosofia da Educação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, posteriormente publicada em livro com o título "Diversidade e Identidade". Foi apresentada no dia dedicado ao "Conhecimento, Crítica e Fundamentos Filosóficos da Educação", em oposição a uma outra conferência de Richard Davies, que defendeu aquilo a que chamo uma "pedagogia administrativa".
A escola como instituição colonizada afunda-se naquilo que devia denunciar e ajudar a transcender: a sociedade de consumo. Ao criticar os fundamentos das diversas filosofias da educação, no fundo variações da pedagogia administrativa, a teoria crítica da educação nada mais faz do que lançar os fundamentos de um novo projecto educativo.
Giroux tem toda a razão quando afirma que não basta denunciar a escola como uma agência da socialização integrada: a denúncia que se satisfaz consigo mesma é resignação. «As escolas são locais contraditórios»: há, portanto, espaço para levar a cabo a tarefa de libertar o futuro, de modo a que Auschwitz nunca mais se repita. Como vimos, uma compreensão crítica da escolarização permite-nos ver as escolas como locais simultaneamente de dominação e de libertação. Deste modo, a teoria crítica da educação opõe-se ao cerne da teoria educacional administrativa, que concebe as escolas principalmente como provedoras de habilidades e atitudes necessárias para os estudantes se tornarem cidadãos patriotas, industriais e responsáveis.
A escola deve converter-se numa instituição crítica, se quiser resistir às forças da integração social e cultural em curso na sociedade administrada. O modelo de escola predominante é um modelo burocratizado imposto de cima pelo Estado e pelos seus funcionários subservientes, sem que os principais agentes educativos tenham participado como sujeitos particulares e livres de coerção na sua elaboração ou mesmo na sua crítica racional e livre. Ivan Illich chamou-lhe instituição manipuladora e Louis Althusser, analisando-o, no contexto da reprodução social das relações sociais de produção capitalistas, chamou-lhe Aparelho Ideológico de Estado, cuja função é preparar — mediante um trabalho de inculcação ideológica — os alunos para o desempenho dos papéis que lhes são socialmente atribuídos no processo de produção.
A escola como instituição crítica opõe-se frontalmente à escola como instituição manipuladora. Em vez de preparar indivíduos dóceis, apáticos e resignados, a escola como instituição crítica quer romper com a atomização da sociedade administrada, de modo a abrir caminho à emergência de subjectividades rebeldes, capazes de se libertarem a si mesmas do processo de sujeição a que as submete-sujeita a ideologia (escolar) dominante. A escola como instituição crítica deve fornecer os conceitos necessários ao aluno que se queira libertar da sujeição-submissão ideológica: a imuno-cognição crítica é a arma que os professores e os seus alunos devem erguer para se defenderem da comunicação sistematicamente distorcida imposta pela burocracia educacional e pela política economicista dominante.
Como instituição crítica, a escola deve reconquistar o espaço de libertação que coexiste no seio da escola burocratizada com o espaço da dominação. A teoria crítica da educação encara, tanto a escola no seu conjunto como as aulas que ocorrem no seu seio, como um fórum crítico e racional, onde professores e alunos se juntam para debater, entre eles na sala de aula e entre a escola e as restantes instituições sociais, os mais diversos assuntos, procurando sempre que possível um consenso racional.
Professor e aluno devem reconstruir, em constante diálogo «horizontal» e liberto da coerção, a sua subjectividade, libertando-a do seu elemento estranho — a adesão ao opressor. O meio para essa confrontação é — conforme acentua Habermas — o uso público da razão, articulado por indivíduos privados engajados numa discussão que é, em princípio, aberta e sem coerção. Só deste modo pode a escola constituir-se como o berço da subjectividade rebelde, imunizada e preparada para resistir às estupidificações da sociedade de consumo. A subjectividade rebelde é uma subjectividade que se recusa, mediante uma revolta permanente consigo mesma e com o mundo, a ser novamente colonizada pela ideologia do opressor. A mimesis cativante é o novo elemento da teoria crítica da educação.
A missão crítica da educação deve ser a autonomização dos indivíduos através de um processo educativo (relação e acção educativas) capaz de contribuir para o desenvolvimento da consciência crítica e para a emergência de uma sensibilidade não-mutilada. A reconciliação visada pela teoria crítica é, na actual conjuntura social, uma tarefa prática, da qual devem participar todos os intervenientes do processo educativo, sobretudo os professores quando encarados — segundo a expressão de Giroux — como intelectuais políticos. A sua mais nobre tarefa deverá ser ajudar os alunos a serem capazes de reflectir sobre a sua própria história, quer como indivíduos, quer como membros de sociedades mais vastas, e de usar essa reflexão justamente para alterar o curso barbarizante da história.
Esta missão do educador crítico está ausente em todas as formas de teorias sociais e de teorias da educação — usualmente referidas como positivismo, que tentam moldar as ciências sociais segundo os modelos das ciências naturais, tal como fazem, de resto, os programas impostos pelo Estado e suas agências de controlo social aos professores ou mesmo aos alunos. Ao reconhecer a auto-reflexão ou reflexividade dos agentes humanos, a teoria crítica da educação tem de reconhecer que uma sociedade emancipada seria aquela em que os seres humanos controlassem activamente os seus próprios destinos, através da crescente compreensão das circunstâncias em que vivem.
As indústrias culturais incutem nos estudantes uma paixão horrenda pela ignorância. Segundo Jacques Lacan, a ignorância não é um estado passivo, mas um estado activo ou de exclusão da consciência. A paixão pela ignorância que infecta a cultura da imagem magificada deve-se a uma recusa em reconhecer que as nossas subjectividades foram construídas a partir das práticas sociais e das formas de consciência sociais coisificadas correspondentes que nos dominam. A ignorância incorporada na própria estrutura do conhecimento desafia a imaginação pedagógica de qualquer professor empenhado na emancipação dos seus alunos. Estes, incapazes de encontrar conhecimento significativo no mundo fetichista das mercadorias, recorrem à violência gratuita ou a uma neblina intelectual onde qualquer coisa mais desafiadora e provocante do que o noticiário nocturno é encarada com desprezo. Esta epidemia de anastesia conceptual só beneficia a cultura burocrática dominante.
É, por isso, que a escolarização deve ser um processo de compreensão de como as subjectividades são produzidas por processos sociais objectivos. A compreensão dos processos sociais pelos quais temos sido construídos é, desde logo, auto-transformadora. Se fomos feitos, então podemos ser desfeitos e refeitos. Os professores emancipados precisam encorajar os estudantes a serem autoreflexivos sobre a sua situação no mundo e a dotá-los, mediante metodologias adequadas aos diversos contextos, com estruturas conceptuais para que eles comecem a emergir da realidade opressora. Ensinar e aprender devem ser simultaneamente um processo de investigação e de crítica permanente e um processo de construção de uma imaginação social que trabalha dentro de uma linguagem da esperança. Se o ensino for visto como uma linguagem da possibilidade, a aprendizagem pode tornar-se facilmente relevante, crítica e transformadora.
Segundo Giroux, o conhecimento é:
— relevante somente quando começa com as experiências que os estudantes trazem consigo da cultura e do mundo da vida em que estão inseridos;
— crítico somente quando essas experiências são mostradas como sendo, algumas vezes, problemáticas;
— e transformador somente quando os estudantes começam a usar o conhecimento adquirido para ajudar a conferir poder aos outros, incluindo os indivíduos da sua comunidade.
O conhecimento crítico visa a reforma social qualitativa. Mediante a reestruturação da linguagem do self procura-se ajudar o aluno a negociar melhor com o mundo que deve ser transformado, tendo em vista aquilo que Adorno chamou «vida sem angústia».
Os professores que resistem à integração social devem criar agendas de possibilidade nas suas salas de aula. A pedagogia crítica não garante que a resistência, tanto dos alunos como dos professores, não aconteça, mas fornece aos professores as bases para a compreender e para que qualquer pedagogia desenvolvida seja sensível às condições socioculturais que constróem a resistência, diminuindo a possibilidade de que os estudantes sejam responsabilizados como a sua única fonte criadora. A pedagogia emancipatória não pode ser construída a partir de teorias do comportamento que vêem os estudantes como preguiçosos, desobedientes, sem ambição ou geneticamente inferiores. Os professores que tratam os seus alunos como «atrasados mentais» esquecem-se de que eles próprios são tratados do mesmo modo pelo aparelho administrativo escolar.
A pedagogia do atrasado mental aplica-se, pois, tanto aos professores como aos seus alunos: ambos são vasilhas enchidas pelos conteúdos da ideologia administrativa opressora. Não se pode planificar aquilo que se desconhece: a cultura na sua possibilidade transcendental. Quando se refugiam por detrás da sua «profissionalização», os professores denunciam-se como aquilo que são: eus colonizados pelo opressor, incapazes de pensar conjuntamente com os seus alunos sobre a realidade que os oprime interna e externamente, de modo a transcendê-la. A pedagogia crítica que só pode ser assumida por aqueles professores que odeiam visceralmente a opressão e a injustiça visa descolonizar o eu dos alunos, de modo a prepará-los para a libertação. A acção pedagógica do teórico crítico da educação regula-se apenas pelo interesse da emancipação: autonomizar os alunos dos efeitos castradores e mutiladores da pedagogia bancária
.
A compreensão das estruturas de mediação que formam a resistência estudantil no mundo sociocultural remove o conceito de resistência estudantil das mãos do comportamentalista ou da profundidade do psicólogo, para o inserir no terreno da teoria da sociedade. A resistência à cultura pode converter-se na cultura da resistência. A pedagogia crítica transforma-se então numa pedagogia da resistência, a qual resiste aos obstáculos que lhe colocam as consciências colonizadas, ao mesmo tempo que procura imunizar outras consciências contra esta ameaça. (Trata-se apenas de um breve fragmento dessa conferência, aliás muito extensa que pode ser lida na íntegra no livro das actas já referido.)
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Prós e Contras: Educação

O programa "Prós e Contras" de hoje (25 de Fevereiro de 2008) dedicado à educação deu uma imagem radiográfica fiel do estado da educação nacional. Portugal não tem professores! A Ministra da Educação venceu (e bem) o debate com algumas figuras que se auto-intitulam professores, magnificamente plasmados na sua suposta rival de partido, Fernanda Velez, que fez, como já é habito entre os militantes do PSD, uma triste figura, com aquele rosto assimétrico, sinal de "maus genes". Até a este nível (face simétrica/bons genes), Maria de Lurdes Rodrigues venceu claramente o debate pela qualidade dos seus genes, e, como sou justo, penso que o PM José Sócrates pode continuar a defender a sua Ministra da Educação ou poupá-la e dar o lugar a outro capaz de repor a ordem e realizar as reformas.
Este debate mostrou aquilo que todos sabemos: A maioria dos professores portugueses, talvez mais de 60%, é profundamente incompetente e compulsivamente ignorante. Desde o 25 de Abril de 1974, as Universidades têm distribuído arbitrariamente diplomas, cujos detentores foram tomando conta dos níveis inferiores de ensino até fecharem o círculo. Muitos indicadores poderiam ser referidos, mas há indicador um fácil de manejar: a ausência de qualidade científica e pedagógica dos "manuais escolares" e dos programas. Porém, se achar este indicador demasiado complexo, reveja o programa e verifique que, com excepção da Ministra da Educação, nenhum dos professores presentes falou das "políticas da educação" ou conseguiu criticar racionalmente os «diplomas» da "avaliação e desempenho profissional" e do "modelo de gestão das escolas", sem serem grosseiros e mal educados e faltarem ao respeito à Ministra, chamando-lhe "mentirosa" ou "incompetente". Estes comportamentos não revelam somente má educação, mas sobretudo retratam a incompetência e a falta de classe dos professores. Todos os portugueses podem estar cientes de que a classe dos professores abriga no seu seio o maior número de oportunistas e de trapaceiros que existe em Portugal.
Ao contrário do que foi "dito" malcriadamente por Fernanda Velez, os professores não formam um grupo unido, porque para haver "grupo" tem de haver um "projecto comum". Ora, os professores não têm um projecto e, por isso, não constituem um grupo. Os professores são um mero agregado de "moléculas metabolicamente reduzidas", em que cada um luta pelos seus próprios interesses particulares em detrimento de um possível interesse comum. A sua "histeria colectiva" resulta de um medo muito específico: medo de serem confrontados com a sua própria mediocridade. E, como esta pertence a cada um deles, podemos dizer que cada um se teme a si mesmo. Só os professores cientifica, cultural e moralmente inseguros temem "perder o emprego" e uma "vida de facilidade". Esta realidade é incontornável e os portugueses devem estar conscientes de que, com a maior parte destes professores, «filhos de um erro sistemático do ensino universitário» e da política irracional da "igualdade" e da "universalidade do ensino", não há reforma que consiga arrancar-nos deste antro de incompetência.
No ensino em geral reina a luta imoral e corrupta pela sobrevivência e, num tal clima, todos estão contra todos. Este "estado de guerra permanente" que se vive diariamente nas escolas, muitas vezes controlado pelos aparelhos partidários locais ou regionais e minado pelos pais, deve ser tido em consideração pelas políticas da educação. De facto, para espanto da Ministra, os professores temem ser avaliados por outros professores e, pela sua experiência, sabem o que é ser diabolizados pelos actuais conselhos directivos. Cada um sabe o que faz ao outro e com que intenção o faz. Por isso, não pode esperar uma atitude mais altruísta dos outros. Toda esta guerra entre professores deve-se à sua incompetência, ou melhor, à sua tremenda "burrice". Se não fossem os chamados "direitos adquiridos", estes professores deveriam justamente ser descartados e lançados à sua própria sorte, dando lugar àqueles que são verdadeiramente "professores". Mas, como estamos prisioneiros dos erros passados, estamos condenados a não assistir à viragem de página da história de Portugal. Temos de os sustentar no emprego e na reforma e deixar o mérito nacional órfão e sem-abrigo. Estes "grisalhos" que fumaram "erva" nos anos 60 estão a lixar-nos a vida e a comprometer o nosso futuro.
Nesta conjuntura que já é estrutura cristalizada, não podemos defender ninguém ligado ao ensino e à educação. Afinal, a única pessoa que mereceu crédito neste debate foi a própria Ministra da Educação e sei que muitos professores (40%), aqueles que já não acreditam no sistema ou mesmo nos seus sindicatos, partilham este pensamento comigo. Mas a sua voz é infelizmente pouco representativa no seio deste imenso oceano da mediocridade. Esta é a nossa triste e amarga verdade nacional: em Portugal a educação está entregue a um bando de indivíduos destituídos de habilidades e de competências!
Anexo: Pessoalmente, penso que a ideia de "professor titular" foi francamente má e os «critérios» usados são provavelmente muito injustos, porque deixaram alguns dos poucos bons professores de fora. Excluiu a competência e criou profundas injustiças, dando muitas vezes o título a candidatos a "tiranos". Esta figura deve ser abolida e o assunto repensado com mais serenidade.
O "modelo de gestão das escolas" pode reforçar a "tirania" e a arbitrariedade já presentes nas figuras dos Presidentes dos Conselhos Directivos, cujo reforço da autoridade vai criar uma situação insuportável. A "avaliação dos professores" é fundamental, mas usando outros critérios, não os burocráticos, mas os científicos e pedagógicos. A burocracia não é amiga da qualidade do ensino e da educação. É preciso ter em conta que a maior parte das escolas são antros de corrupção e de perseguições terríveis. Dada a vulnerabilidade e a insegurança da maior parte dos professores, seria melhor pensar, pelo menos provisoriamente, noutro esquema de avaliação, talvez realizado por pessoas estranhas à escola. Portugal não precisa de importar modelos estrangeiros, até porque a crise da educação é universal (Arendt). Em vez de imitar, Portugal pode e deve criar novos modelos mais adaptados às especificidades nacionais e seus erros estruturais.
Fernanda Velez fez tudo para se apresentar como a possível ministra da deseducação dessa miragem de governo bicéfalo Meneses e Santana Lopes. Pelo menos, sabemos aquilo que não queremos: um governo do PSD.
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Portugal e Ausência de Sentido

A corrupção generalizada que se vive em Portugal obriga a colocar a questão do sentido e a analisar o destino nacional à luz do sentido. Neste seu último programa, Mário Soares mostrou estranheza em relação aos escritores que abordam a morte, afirmando que nunca pensa na morte. Esta é uma maneira tipicamente portuguesa de iludir a questão do sentido e de pensar o sentido do destino nacional. Os partidos de Direita estão sempre já dotados de uma política espontânea do sentido, aquela que é protagonizada pelas Igrejas, enquanto os partidos de Esquerda sempre negligenciaram terrivelmente o «cálculo do sentido», talvez porque tenham sido muito marcados por um «preconceito contra a morte» que, para todos os efeitos, não deriva de Marx, cuja filosofia traz a marca da mortalidade e da finitude, de resto uma herança hegeliana.
O Partido Socialista (português) tem sido incapaz de elaborar uma "política de sentido" no âmbito de um Estado Laico e de uma sociedade democrática e pluralista, sem violar os princípios da liberdade e da justiça e, por isso, não consegue descobrir tudo aquilo que o distingue dos partidos da Direita, em especial do seu arqui-inimigo na rotação do poder: o PSD. A Esquerda deveria encarnar sempre o princípio da mudança qualitativa, enquanto a Direita, até mesmo nas suas versões populistas oportunistas, se limita a defender o princípio de conservação da "ordem de sentido instituída", mesmo que desfasada das novas realidades sociais e culturais do mundo global. Contudo, a democracia portuguesa não é internamente diferenciada, mas profundamente falsa e monolítica, na medida em que as suas classes dirigentes estão unidas na e pela corrupção que tudo faz para anular a questão do sentido. A democracia portuguesa é cleptocracia.
A obra de Peter L. Berger, «Pyramids of Sacrifice: Political Ethics and Social Change», bem como as obras de Alfred Schutz, H. Kellner, Thomas Luckmann, M. Heidegger, Charles Taylor ou Arnold Gehlen, parte deste pressuposto fenomenológico:
«Os seres humanos têm direito a viver num mundo que tenha sentido para eles. O respeito deste direito é um imperativo moral para toda a política», seja ela de Direita ou de Esquerda. Este pressuposto fenomenológico funda-se na própria "constituição do homem": todos os grupos humanos são fundamentalmente empresas de doação de sentido, isto é, dotam de sentido o universo, porque o sentido é o fenómeno central da vida social e nenhum aspecto da vida humana pode ser compreendido sem uma investigação do problema do que significa para aqueles que participam nela.
A necessidade de sentido tem, ao mesmo tempo, dimensões cognitivas e normativas: toda a sociedade proporciona aos seus membros um "mapa cognitivo da realidade" e, simultaneamente, uma "moralidade" aplicável à mesma. O primeiro permite-nos saber onde estamos e o segundo orienta-nos no que deve ser feito nessa localização concreta. Ora, nenhuma sociedade pode manter-se unida se os seus membros não partilharem um sistema global de sentidos. Na linguagem de Durkheim, o "direito ao sentido" é a protecção da anomia, entendida como caos, ausência de ordem, portanto, de sentido.
Ora, os portugueses vivem numa "sociedade anómica" e, por isso, tendem a ser "criaturas anómicas", "sem qualidades" e "destituídas de self", que encobrem a sua "nulidade" com "roupas dissonantes". Qualquer pessoa que surge no "grande ecrã" é um espelho dessa ausência de sentido. Não me refiro tanto às telenovelas e aos concursos populares, dos quais não podemos esperar grande coisa, mas sobretudo aos programas com pretensões políticas e culturais. Se for capaz disso, convido-o a fazer um exercício mental: dispa os luso-protagonistas e vista-os com roupas populares, colocando-os nos cenários populares correctos. O que vê? Nada de novo! Sem os seus fatinhos ou indumentária supostamente «cara», os homens dos luso-poderes são "zézinhos"! Apenas se diferenciam dos outros por serem "grandes corruptos", instalados no poder desde o 25 de Abril de 1974: gerem os bens públicos de modo a enriquecerem pessoalmente e como grupo. Mas como pessoas são "burricos" que tudo fazem para assassinar a competência. Portugal é medíocre e esta mediocridade reproduz-se continuamente.
A modernização introduziu alterações significativas no domínio do sentido. Nas sociedades pré-modernas, o direito ao sentido implicava o direito do indivíduo ser orientado pela tradição; nas sociedades modernas, implica o direito do indivíduo a escolher os seus próprios sentidos. Isto significa que a modernização consiste, ao nível do sentido, em passar da aceitação do "já dado" (a tradição) à escolha. A modernização implica, portanto, a troca de uma existência determinada pelo destino por uma série longa de possibilidades de decisão, a chamada "compulsão de escolha". As duas grandes instituições da sociedade moderna que promoveram a passagem do destino para a compulsão da escolha foram (e são) a economia de mercado e a democracia, ambas baseadas na escolha conjunta de muitos indivíduos e estimuladoras da escolha constante.
Todo o mundo de sentido proporciona aos que habitam nele um refúgio contra a anomia, um lugar seguro. A modernização coloca a grave ameaça da "falta de lar", fazendo dos indivíduos seres apátridas e, num sentido mais profundo, "sem-abrigo" (Rilke). A globalização acentua ainda mais esses efeitos da modernização e pode mesmo desorientar os indivíduos, agravando ou dificultando a formação da identidade pessoal e de um mínimo de identidade na interpretação da realidade, o que prejudica necessariamente a estabilização do sentido.
Dado que nenhum processo social pode ser bem sucedido se não for dotado de um sentido que o ilumine de dentro e dado que os indivíduos correm o sério risco de se perderem num mercado de sentido plural e sempre mutável, torna-se necessário, hoje mais do que nunca, uma abordagem «humanista» (no sentido clássico ocidental das humanidades) da "política de desenvolvimento sustentável". Caso contrário, se os políticos recusarem resolver este problema do sentido, como sucede em Portugal, serão confrontados com duas reacções: a "atitude fundamentalista", que pretende reconquistar toda a sociedade para os valores e tradições antigos, e a "atitude relativista", que desiste de afirmar quaisquer valores e reservas de sentido comum. Os fundamentalistas partem para a acção e os relativistas ficam no discurso.
Ora, o partido socialista português deve defender as suas próprias políticas de sentido, olhando para a frente, portanto, para o futuro, mas sem esquecer as promessas não realizadas do passado. Este último aspecto é fundamental para lidar com os fundamentalismos. Por isso, o Partido Socialista deveria ter outra "política da educação" e da cultura, que não sobrevalorizasse os "procedimentos burocráticos" (amigos da corrupção) em detrimento das ciências e das humanidades, portanto, em detrimento da "formação cultural". Aliás, o reforço das humanidades é fundamental para o futuro da democracia e da civilização Ocidental, não das humanidades que se ensinam actualmente, de resto degradadas e reduzidas a uma interminável «conversa de café», mas das humanidades dotadas de programas profundos, criativos e abertos ao futuro, e ensinadas por professores competentes, de resto o problema número um da actual degradação do seu ensino português, porque os mecanismos de recrutamento estão corrompidos.
Sem esta dimensão humanística, o plano tecnológico defendido pelo actual governo carece de alma: pode produzir muitas coisas, menos cidadãos saudáveis, participativos e capazes de lutar contra a corrupção generalizada e legitimada pelos mass media, visando o aprofundamento de uma sociedade cada vez mais livre, responsável, solidária e justa. O governo quer "diplomas", nós desejamos formação cultural e cívica, a única capaz de acordar Portugal deste terrível pesadelo da corrupção generalizada, da pobreza e da mediocridade.
Anexo: Hoje "Prós e Contras" é novamente dedicado à educação. Ontem Maria Elisa falou do "Programa Erasmus": Uma depressão! Retomei um post antigo com a ideia de antecipar uma crítica generalizada destas depressões nacionais velhas! Disseram-me que o PM se prepara para mudar de ministra da educação! Boa notícia! :)
J Francisco Saraiva de Sousa

Oásis Erótico Gay Português

O estudo de sócio-ecologia dos comportamentos dos homens homossexuais confronta-se com um único problema, o qual orienta toda a existência do homem e até mesmo da mulher homossexuais: Como e onde procurar novos parceiros sexuais? Os próprios indivíduos homossexuais têm, de certo modo, consciência desse problema, porquanto são os primeiros a elaborar e divulgar "roteiros gay", que fornecem informação pormenorizada sobre os chamados "lugares de engate". Este facto revela que a possibilidade de haver um encontro sexual constitui uma característica estável e normal da interacção que ocorre onde quer que se reunam os homens homossexuais, quaisquer que sejam o lugar, o momento, a cidade, o país e as pessoas.
Em grande medida, a vida do homem homossexual «activo» gira em torno desses lugares públicos, aos quais chamámos na peugada de Delph (1978) "oásis erótico", uma vez que vive em constante busca de novos parceiros sexuais. Todos os indivíduos observados ao longo do tempo, independentemente de serem homens ou mulheres, homossexuais ou pseudo-heterossexuais ou de terem relações estáveis ou não, exibem em maior ou menor grau comportamentos sexualmente promíscuos. Este facto é incontornável e pode ser evidenciado mediante a explicitação da estrutura e da dinâmica da comunidade gay portuguesa.
Os resultados deste estudo intensivo de campo são congruentes com os resultados obtidos por diversos estudos que usaram uma metodologia idêntica, em particular os estudos de Hooker (1967), Hoffman (1970), Humphreys (1970) e Delph (1978).
Na apresentação sucinta dos resultados deste estudo lançámos novos conceitos, nomeadamente os de banalização, ubiquidade e efeito homossexuais, com o objectivo de mostrar que as estimativas apresentadas (10%) substimam a incidência de comportamento homossexual na população portuguesa. As noites portuguesas fervilham de actividades homossexuais que ocorrem nos mais diversos lugares e circuitos que constituem o oásis erótico gay português, levando-nos a estimar que muito mais de 10% da população portuguesa exibe frequentemente comportamentos homossexuais. Aliás, quando integram os bissexuais na sua comunidade, os próprios homossexuais reconhecem que eles também são predominantemente homossexuais não-assumidos, com os quais fazem sexo regularmente (Lauman et al., 1994).
O conceito de oásis erótico, forjado por Delph (1978) e usado para designar um lugar considerado física e socialmente seguro, em função dos padrões definidos pela subcultura gay, de ameaças exteriores, onde os seus frequentadores se reúnem para estabelecer interacções sexuais mutuamente desejadas, pode incluir tanto lugares públicos como lugares privados. Alguns desses lugares são negócios comercialmente explorados, tais como saunas, ginásios, sexy-shops, restaurantes, unidades hoteleiras, parques de campismo, bares e discotecas homossexuais, enquanto outros são lugares cooptados ou usurpados pelos homens homossexuais, para propósitos sexuais, tais como sanitários, parques públicos, praias, praças, avenidas, ruas, estações de serviço, terminais rodoviários e ferroviários, descampados e matas e tantas outras áreas públicas. Estes lugares constituem, portanto, duas variantes básicas de oásis eróticos. Alguns oásis eróticos são lugares públicos usurpados para actividades sexuais; outros são lugares subculturalmente designados para sexo e encorajam abertamente o sexo.
A aplicação deste conceito ao estudo da comunidade gay portuguesa foi feita com base na teoria matemática dos grafos, na sociometria e na própria perspectiva dos homossexuais portugueses. Estes utilizam a palavra «ambientes» para designar os diversos lugares públicos que constituem o seu oásis erótico. Cada «ambiente» ou circuito tem os seus frequentadores habituais e, em função do tipo de lugar e das actividades que nele ocorrem e que são subculturalmente incentivadas, podemos traçar o perfil desses utentes habituais e definir o seu estilo de vida.
A estrutura conceptual mais adequada para captar a comunidade gay é a noção de "rede" (Elizabeth Both, 1976). Ao examinarmos de perto o ambiente imediato dos homens e das mulheres homossexuais, isto é, os seus relacionamentos reais externos com pessoas e lugares, constatámos a existência de dois padrões:
1) os relacionamentos sociais externos dos homossexuais e bissexuais assumem muito mais a forma de uma rede do que de um grupo organizado, e, embora os homens homossexuais pertençam muito mais a redes do que a grupos,
2) existem consideráveis variações na conectividade das suas redes.
A conectividade ou intensidade indica a extensão em que as pessoas conhecidas por um indivíduo se conhecem e se encontram umas com as outras, independentemente do indivíduo. Destacam-se basicamente dois graus relativos de conectividade que não devem ser vistos como polaridades opostas: a rede de «malha estreita» que é usada para descrever uma rede na qual existem muitas relações diversificadas entre as unidades componentes, e a rede de «malha frouxa» que é usada para descrever uma rede na qual existem poucos relacionamentos deste tipo. Embora existam organizações gay em Portugal, elas têm pouco impacto e adesão na comunidade gay portuguesa, já que esta comunidade tende a ser uma rede virtual de lugares de engate, de potenciais parceiros e de contactos sexuais ocasionais.
Assim, um «ambiente» nada mais é do que um lugar público que propicia e incentiva encontros homossexuais e vários «ambientes» podem estar fortemente conectados entre si de modo a formar um "circuito gay". Um circuito homossexual é um conjunto interligado de espaços e de fenómenos que se sucedem regular e periodicamente ou, mais precisamente, um conjunto de hábitos e de movimentos que caracteriza a rotina quotidiana de um grupo de homossexuais ou mesmo de um único homem homossexual. Há tantos circuitos homossexuais quantos os grupos ou tipos homossexuais, mas, regra geral, existem padrões que permitem tipificar os circuitos mais comuns, embora esses possam variar em função do tempo, do espaço e das «modas».
Levando em conta apenas dois critérios – a assunção da homossexualidade e o tipo de convívio ou relações sociais estabelecidas, podemos distinguir dois tipos fundamentais de circuitos: os circuitos gay de sexo anónimo (CGSA), frequentados regularmente e predominantemente por homens homossexuais que tendem a não assumir-se como homossexuais e cujo objectivo exclusivo é a prática de actividades sexuais, em detrimento do convívio social, e os circuitos gay de convívio sócio-sexual (CGCS), frequentados regularmente por homens e mulheres homossexuais que se assumem como tais e que, além do sexo, estão envolvidos em encontros sociais.
Os roteiros tão difundidos na comunidade gay visam difundir o conhecimento desses lugares de engate, onde qualquer homossexual pode encontrar facilmente e sem dificuldades parceiros sexuais. Qualquer revista, nacional ou internacional, e qualquer site gay, fornece esses roteiros, que são frequentemente transmitidos oralmente durante as breves conversações que ocorrem durante os encontros sexuais. Em termos geográficos, a comunidade gay portuguesa pode ser reduzida a um roteiro nacional de «lugares de engate», que são regularmente frequentados pelos homossexuais em busca de parceiros e experiências sexuais e escolhidos em função dos seus interesses e perfil psicológico. Cada um adopta o seu roteiro, em função das suas necessidades, interesses e perfil psicológico.
Os homens homossexuais frequentam regularmente esses lugares, com o propósito de procurar novos parceiros sexuais. O que mais impressiona nas abordagens homossexuais é o facto da conversação ser mínima e das interacções estarem concebidas e baseadas na perseguição de objectivos individuais e não sociais, apesar de certos «ambientes» serem concebidos como espaços de convívio social. Assim, a comunicação é primordialmente de natureza não-verbal. Os homens homossexuais comunicam com os seus olhares, gestos, linguagem corporal e toques e, só posteriormente, ocorrem ocasionais e breves declarações verbais. Estas observações mostram que a rede gay tende a ser mais uma rede de contactos sexuais do que uma rede social e, que, à medida em que nos afastamos do circuito cafés/bares/discotecas, a rede tende a ser mais frouxa em termos de conectividade social.
Ao destacarmos o «convívio social», verificamos rapidamente que os circuitos que integram e interconectam cafés, bares e discotecas gay são os que possibilitam um maior convívio social entre os homossexuais e os seus frequentadores habituais tendem a optar por um estilo de vida mais homosocial e tendencialmente com menor número de episódios de «sexo anónimo». Embora se observe variação frequente de parceiros sexuais, esta tende a ocorrer com parceiros conhecidos ou amigos e as ligações que se estabelecem, breves ou prolongadas, são mais personalizadas. Os circuitos que ligam cafés, bares e discotecas gay são redes de malha estreita, frequentados assuiduamente por homossexuais hiperefeminados, emergentes e muitos masculinizados que assumem mais saudavelmente a sua identidade gay e que, nesses espaços, convivem mais estreitamente entre si e com outros grupos sócio-sexuais, tais como lésbicas, travestis, transgéneros e transexuais, bem como com muitos heterossexuais que frequentam os «ambientes». Embora se observem manifestações afectivas entre os seus utentes, as actividades sexuais não são incentivadas nestes lugares públicos, ficando pontualmente restringidas ou a «quartos escuros», quando existem, ou a espaços intersticiais, tais como os sanitários, ou ainda a determinados dias (as "festas de espuma"). São, pois, oásis eróticos mais discretos.
Ora, os restantes circuitos, e os mais abundantes, abrangem lugares nos quais as actividades sexuais são incentivadas, em detrimento do convívio social e, nestes lugares, observa-se fundamentalmente «sexo anónimo», com múltiplos parceiros consecutivos ou em simultâneo. Como dizem alguns homossexuais: os seus frequentadores são «homens de poucas falas e muito sexo» e, geralmente, não assumem abertamente a sua homossexualidade, alegando serem bissexuais. Estes circuitos de malha frouxa não são frequentados por mulheres lésbicas.
Pela frequência habitual destes dois tipos básicos de circuitos gay, podemos referir dois estilos de vida sexualmente promíscuos: um mais anónimo e predatório, centrado nos circuitos gay do sexo casual e anónimo, e outro mais personalizado, centrado nos circuitos gay de convívio sócio-sexual. No entanto, existem omnívoros de todos os circuitos gay: são os "vagabundos sexuais", casados ou solteiros, que frequentam diariamente e em regime pós-laboral todos os lugares públicos de engate, visando apenas encontros casuais e anónimos.
Matematicamente, um circuito é um conjunto de pontos fixos interligados por vias preferenciais. Os pontos fixos correspondem aos lugares públicos frequentados assiduamente pelos homossexuais e as vias são os trajectos que os ligam. Se os pontos, num determinado período de tempo, permanecem fixos, os trajectos variam constantemente, em função das necessidades e dos interesses pessoais e sociais. Ora, o conhecimento aprofundado, minucioso e actualizado dos circuitos gay, constantemente actualizado pelos roteiros gay, impressos ou electrónicos, é fundamental para todo o homem homossexual que se auto-reduz à sua dimensão estritamente sexual, na medida em que possibilita e garante novos encontros sexuais. De certo modo, um circuito homossexual é, em grande medida, um percurso que um homossexual ou grupo de homossexuais percorre, noite após noite, à procura de novas aventuras sexuais. Se o homossexual iniciante não souber resistir às forças gravitacionais ou centrípetas dos circuitos gay, acabará por assimilar o «esquema gay» e, uma vez aí instalado, corre o risco de ser completamente absorvido pela rede gay. Neste último caso, toda a sua vida individual desvanece-se: a sua individualidade é eclipsada e anulada pelos «efeitos de manada» provenientes da rede.
A rede homossexual é uma estrutura altamente ultracongelada e reificada: nela o indivíduo perde a sua individualidade e assume-se como mais uma peça da maquinaria homossexual. A rede homossexual tem, pois, um carácter desindividualizante: as individualidades são fragilizadas a favor da integração total. Os seus imperativos são superiores aos imperativos individuais, familiares, sociais, culturais, sentimentais ou mesmo profissionais. Reduzido a um instrumento sexual, o homossexual vagabundo comporta-se como tal, deixando para trás todas as outras dimensões vitais e entregando-se exclusivamente — a tempo inteiro — à busca frenética de novos orgasmos, de preferência cada vez mais inusitados, estranhos e anónimos. Até mesmo aqueles homossexuais que procuram salvaguardar a sua autonomia, evitando contactos com membros da rede homossexual institucionalizada, denominada «ralé gay», não são geralmente bem sucedidos, uma vez que o esquema em que estão inseridos acaba por se cristalizar numa rede que é tão reificadora quanto a rede predominante que criticavam. As forças de inércia da rede são mais poderosas que as vontades individuais já, por si mesmas, fragilizadas pela apetência sexual incontrolável que os domina desde dentro. É, por isso, que alguns deles abandonam os seus empregos sempre que surge a oportunidade de novos encontros sexuais. Como ser unidimensional, o homossexual só vive para o sexo: o seu estilo de vida fetichista sexual é a consumação da reificação homossexual.
Os homossexuais reconhecem, sem disso se aperceberem completamente, que a uniformidade é mais real que a suposta diferença que ousam reclamar. Isto significa que praticamente todos os homossexuais observados, até mesmo os homossexuais activistas, partilham com os demais o mesmo esquema homossexual. Ora, este esquema mais não é do que um conjunto de dispositivos e de conhecimentos que facilitam a procura frenética e compulsiva de novos orgasmos. É, portanto, em torno dessa procura de novos parceiros sexuais ou da sua possibilidade, que gira toda a vida do homossexual, ao ponto de podermos dizer que homossexualidade e promiscuidade sexual são praticamente a mesma coisa. Esta quase identificação é reconhecida pelos próprios homossexuais, que, além de serem fazedores de "roteiros do prazer", elaboram «teorias» "emic" que visam justificar e legitimar o seu estilo de vida sexualmente promíscuo.
Se definirmos o estilo de vida como um conjunto de práticas que um indivíduo adopta para satisfazer as suas necessidades e dar forma a uma narrativa particular de auto-identidade, constatamos facilmente que o estilo de vida do homossexual típico consiste em frequentar determinados lugares públicos e usar sexualmente as novas tecnologias da informação e da comunicação, tais como telemóveis e a comunicação mediada por computador, para arranjar novos parceiros sexuais — um estilo de vida sexualmente promíscuo. Três noções "emic", utilizadas pelos próprios homossexuais, definem sucintamente este estilo de vida: «esquemas» (busca de novos parceiros sexuais), circuitos (lugares de engate frequentados) e «rede» (complexo de relações que solidificam a rotina gay). Os esquemas, os circuitos e as redes favorecem a procura homossexual de novos orgasmos em determinados lugares públicos e, ao possibilitar a sua concretização, reforçam-se e estabilizam-se, mesmo que ocorram mudanças de lugares.
Ora, dado que os comportamentos sexualmente promíscuos são factores antropológicos na transmissão da Sida e doutras doenças sexualmente transmissíveis, torna-se evidente que todas essas estruturas comportamentais cristalizadas facilitam a sua transmissão e a sua expansão no seio da comunidade homossexual, bem como no seio da população heterossexual, uma vez que muitos pseudo-heterossexuais manifestam comportamentos homossexuais. Isto significa que os percursos homossexuais são virtualmente "percursos da Sida" e de outras doenças sexualmente transmissíveis (Binson et al., 2001; Griensven et al., 2004; Peterson et al., 2001; Mutchler, 2002; Westburg & Guindon, 2004; Betts, 2002; Jin et al., 2002; Vandentorren et al., 2001; Wilson et al., 2002; Eich-Höchli et al., 1998; Weinberg, Worth & Williams, 2001; Stueve et al., 2001; Pulerwitz et al., 2001; Suarez & Miller, 2001; Wislar & Fendrich, 2000; Dilger, 2003; Catania et al., 2001; Hogg et al., 1997; Dukers et al., 2000; Bauer & Welles, 2003; Morrow & Allsworth, 2000).
O ritmo de vida dos homossexuais é mais nocturno do que diurno e varia ao longo do ano, observando-se nas estações frias (Outono/Inverno) maior concentração e intensidade em lugares fechados, e nas estações quentes (Primavera/Verão), em lugares abertos, tais como as praias e parques de campismo. Esta mudança de ritmo anual tende a estar marcada pelas férias, que possibilitam uma deslocação dos espaços conhecidos para espaços desconhecidos. Com efeito, quando um homossexual julga ter esgotado a lista de parceiros sexuais na sua área de residência e de trabalho, dado ter feito sexo com todos, ele tende a deslocar-se, diariamente ou em determinados dias da semana, de automóvel para outras zonas, próximas ou distantes, em busca de novos parceiros sexuais, e o período de férias que geralmente coincide com o mês de Agosto é aproveitado para fazer «turismo sexual», ou seja, para viajar para outros lugares desconhecidos onde possa encontrar novos parceiros sexuais.
Além dos circuitos gay intra-urbanos que variam em função do perfil dos homossexuais que os percorrem, em função do ambiente e das normas subculturais proporcionados pelos lugares públicos, em função da época do ano ou mesmo dos dias da semana e em função das novidades que entretanto vão surgindo no mercado da indústria de lazer, existem os circuitos gay inter-urbanos, que incluem deslocações para outras cidades de Portugal (roteiros de fins-de-semana) ou para outras cidades estrangeiras (roteiros turísticos internacionais). Os roteiros gay fornecem diversas informações úteis para os «turistas do sexo», como mostra «Spartacus: International Gay Guide», mas o fundamental das informações consiste numa «listagem» de «lugares de engate», cuja articulação configura o oásis erótico gay de cada país. Estes roteiros omitem os espaços residenciais e os espaços institucionais e de trabalho, embora dêem algumas indicações sobre unidades de saúde e monumentos. Estes são os circuitos gay de turismo sexual (CGTS).
Muitas ligações que se formam nesses lugares podem converter-se em uniões estáveis fechadas e, nestes casos, os casais homossexuais começam a afastar-se e a abster-se de frequentar os «ambientes», para evitar conflitos conjugais, a menos que optem consensualmente por uma solução aberta de casal. Apesar de existirem muitos casais gay cujas relações foram acompanhadas durante todo o tempo da pesquisa de terreno, verificámos que um ou mesmo os dois membros não são fiéis, cometendo regularmente adultério ou diversos tipos de infidelidades, com múltiplos parceiros sexuais, e, em muitos casos, contagiando posteriormente o seu companheiro de vida ou parceiro sexual a longo prazo.
O universo dos casais homossexuais pode ser perspectivado como uma espécie de fuga ao oásis erótico gay, mas isso não significa, segundo as nossas observações, ausência de comportamentos sexualmente promíscuos. Aliás, o sexo extraconjugal ajuda a explicar muitos episódios de violência doméstica observada e relatada pelos casais homossexuais masculinos e femininos (Kuehnle & Sullivan, 2003; Liu, 2003; Rohrbaugh, 2006; Pitt & Dolan-Soto, 2001; Pitt, 2000; Blair, Nelson & Coleman, 2001; Harrison & Esqueda, 2000; Smith & Gallo, 1999; Halpern et al., 2001; Markowitz, 2001; Saewyc et al., 1999; Garfield, 2004; Testa & Leonard, 2001; Phillips et al., 2001; Lucas et al., 2003).
Com o advento da sociedade de consumo (Baudrillard, 1991), sobretudo a partir da segunda metade dos anos 90, o nível de vida dos portugueses elevou-se de tal modo que a posse de carro particular se tornou um recurso que facilita o deslocamento para zonas mais distantes da área de residência ou de trabalho, abrindo mais possibilidades de conquista sexual. Este facto associado à introdução das novas tecnologias da informação e comunicação, em particular os telemóveis, o teletexto e a Internet, veio, conforme observámos durante a pesquisa interactiva (2000-2006), igualmente facilitar a procura de novos parceiros sexuais. Com a comunicação mediada por computador, o teletexto e a troca de números de telemóvel, os homossexuais já não precisam deslocar-se para encontrar parceiro sexual disponível: no seu espaço residencial ou no cibercafé ou mesmo no lugar de trabalho, basta ligar o computador e ter acesso à rede e, através do Widows Live Messenger, ver se algum dos seus amigos virtuais está online e afim de fazer sexo com ele, ou enviar uma mensagem para um dos amigos da sua «lista» íntima, a fazer-lhe uma proposta sexual. O encontro sexual ocorre ou na casa de um deles ou noutro lugar previamente combinado. Se nenhum dos dois estiver interessado em sair de casa, podem fazer «virtual sex» e/ou «sexphone», usando as respectivas webcams.
Neste aspecto, no que se refere ao uso das novas tecnologias, os homossexuais são bons aprendizes e, ao contrário do que seria de esperar (Lippa, 2002, 2001), revelam elevado grau de instrumentalidade, um padrão sexual tipicamente masculino, mesmo que sejam do tipo efeminado. No que se refere ao uso das novas tecnologias da comunicação, sobretudo ao uso do computador e da Internet, observam-se diferenças de género: os homens são utilizadores mais assíduos e criativos do computador do que as mulheres e, quanto mais jovens são, mais peritos parecem ser (Mantovani, 2001; Pratarelli & Browne, 2002; Barak & Fisher, 1997; Dittmar, Long & Meek, 2004; Biber et al., 2002; Engelberg & Sjöberg, 2004; Talamo & Ligorio, 2001; Spink et al., 2004; Speepersad, 2004; Whitty, 2003; Chandler & Roberts-Young, 1998). Os homens homossexuais revelam ser bons cibernautas, especialmente atentos a todas as novidades tecnológicas que surgem e que integram rapidamente nas suas rotinas diárias e no seu «esquema» sexualmente promíscuo de vida. A comunidade gay online é sexualmente muito pragmática: os contactos virtuais tendem a converter-se em encontros sexuais reais. Isto significa que a Internet constitui um outro circuito de engate gay (circuito gay virtual), que desconhece fronteiras e que, por isso, é global, como se verifica por exemplo no site GayDar, através do qual podemos entrar em vários chats estrangeiros e estabelecer contactos ou embarcar em chats mais específicos, em função das preferências sexuais pessoais.
Tal como sucede nos USA (Sender, 2001), os homens homossexuais portugueses investem bastante na sua formação pessoal e são muitos os que tiram um curso superior e seguem carreiras superiores, incluindo carreiras políticas, como autarcas ao nível regional ou como deputados. A atipicidade ocupacional que lhes é geralmente atribuída não é assim tão evidente, até porque muitos seguem carreiras tipicamente masculinas, tais como carreiras militares, policiais e como «seguranças». Estas carreiras desenrolam-se em espaços institucionais, aparentemente pouco favoráveis aos homossexuais. Para não falar nas prisões, os espaços institucionais militares, policiais, políticos, empresariais, religiosos, hospitalares e educacionais, incluindo o ensino superior, empregam muitos homossexuais e, como onde há homossexuais há sexo, alguns desses espaços convertem-se em «lugares de engate», com os seus circuitos intra-institucionais, como constatámos abundantemente nas instituições religiosas. Contudo, estes circuitos intra-institucionais estão perfeitamente integrados na rede gay de contactos sexuais.
A abertura de grandes espaços comerciais, nomeadamente de centros comerciais e de hipermecados, diversificou e aumentou o número de «lugares de engate». Alguns espaços comerciais fecharam, mas, em seu lugar, abriram-se novos espaços. Apesar dessas mudanças observadas, em termos puramente formais, os circuitos gay continuam a ser topologicamente os mesmos. Podemos mesmo considerá-los como invariantes topológicos. (Ainda vou introduzir alterações!)
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 24 de fevereiro de 2008

D4DR e Promiscuidade Sexual

Os homens são sexualmente mais promíscuos do que as mulheres e os homens homossexuais são sexualmente mais promíscuos que os homens heterossexuais (Lauman et al., 1994). Nesta característica, os homens homossexuais são "hipermasculinos". Os dados recolhidos por este estudo de Lauman et al. (1994) sugerem que as mulheres estão menos interessadas na variedade sexual do que os homens (Symons, 1979). Diversos estudos psicossociais e genéticos têm sido realizados para examinar as contribuições dos factores genéticos e ambientais para certos aspectos do comportamento sexual, tais como a idade da iniciação da actividade sexual e o envolvimento em actividades sexuais com múltiplos parceiros.
Factores Ambientais. Muitos estudos evidenciaram o papel das influências ambientais sobre o comportamento sexual. Assim, as crianças oriundas de famílias divorciadas tornam-se sexualmente activas numa idade precoce e têm mais parceiros sexuais (Amato, 1996, Booth, Binkerhoff & White, 1984, Furstenberg & Teitler, 1994, Gabardi & Rosen, 1992, Glenn & Kramer, 1987). Variáveis estruturais familiares estão associadas com a idade do primeiro intercurso sexual: os adolescentes oriundos de famílias mono-parentais iniciam a sua actividade sexual em idades mais precoces (Miller & Moore, 1990). Níveis elevados de comportamento de monitorização parental foram associados com idade tardia da primeira relação sexual (Capaldi, Crosby & Stoolmille, 1996, Miller, McCoy, Olson & Wallace, 1986, Small & Luster, 1994). Estes jovens também tinham poucos parceiros sexuais (Rodgers, 1999). Níveis elevados de «self-reported parent-family connectedness» (Resnick et al., 1997) e níveis elevados auto-relatados de satisfação com as relações com as suas mães (Jaccard, Dittus & Gordon, 1998) foram associados com idade tardia da primeira relação sexual e com poucos parceiros sexuais. O uso de álcool e de drogas e a delinquência estão fortemente associados com o início precoce de actividade sexual (Jessor & Jessor, 1977, Rosenbaum & Kandel, 1990, Whitbeck, Yoder, Hoyt & Conger, 1999, Yamaguchi & Kandel, 1987). Aspirações educacionais baixas e fraca ligação à escola foram associadas ao comportamento sexual precoce (Hayes, 1987, Lammers, Ireland, Resnick & Blum, 2000, Small & Luster, 1994).
Factores Genéticos. A influência genética sobre a idade do primeiro intercurso sexual foi avaliada por alguns estudos de gémeos. Dunne et al. (1997) e Martin, Eaves & Eysenck (1977) mostraram que existe uma contribuição genética na determinação da idade do primeiro intercurso sexual. Usando dados do National Longitudinal Study of Youth, Rodgers, Rowe & Buster (1999) descobriram que as influências genéticas e ambientais não-partilhadas constituem importantes determinantes na idade do primeiro intercurso sexual nos pares de gémeos masculinos. Miller et al. (1999) relataram que a variação alélica dos genes que codificam os receptores da dopamina pode desempenhar um papel importante na idade da primeira relação sexual.
Hershberger (1994) estudou gémeos para examinar as influências genéticas sobre o envolvimento em actividade sexual com múltiplos parceiros, mas sem resultados geneticamente significativos. Usando os métodos da genética quantitativa, Michael J. Lyons et al. (2004) realizaram um estudo para avaliar o papel das influências genéticas e ambientais na idade da iniciação das primeiras relações sexuais e no envolvimento na actividade sexual com múltiplos parceiros (10 ou mais parceiros num ano), numa amostra de gémeos masculinos do Vietnam Era Twin Registry. Os resultados mostraram que os dois aspectos do comportamento sexual eram significativamente herdados e somente a idade das primeiras relações sexuais era significativamente influenciada pelo meio partilhado pelos gémeos. A variação observada pode ser significativamente atribuível a diferenças genéticas entre os indivíduos. Os efeitos genéticos aditivos reflectem as acções de um vasto número de genes, cada um com pequeno efeito, cujas influências se combinam de uma forma aditiva para produzir diferenças ao nível fenotípico. A iniciação precoce de relações sexuais estava associada com uma probabilidade elevada de ter múltiplos parceiros sexuais. Estes resultados são consistentes com estudos do comportamento sexual dos adolescentes que mostraram que a socialização familiar (aprendizagem social) e os factores biológicos (maturação) influenciam significativamente a idade da primeira relação sexual nos rapazes (Capaldi et al., 1996, Crockett, Bingham, Chopak & Vicary, 1996, Halpern, Udry, Campbell & Suchindran, 1993, Udry & Billy, 1987).
Cherkas et al. (2004) estudaram pares de mulheres gémeas e descobriram que a indifelidade e o número de parceiros sexuais estão sob controle moderado de influências genéticas: 41% e 38% herdáveis, respectivamente. A correlação genética entre estes dois traços é forte (47%) e as atitudes em relação à infidelidade são influenciadas pelo meio comum partilhado e não por factores genéticos. Contudo, não descobriram associação entre estes traços comportamentais e o locus revelado noutros mamíferos: o do gene receptor da vasopressina. Curiosamente, dois estudos de "neuroeconomia" fornecem alguma evidência do papel desempenhado pela oxitocina no comportamento de cooperação e de confiança humana. Zak, Kurzban & Matzner (2005) mostraram que a oxitocina está associada com a "confiança recíproca humana", porque as percepções de intenções de confiança afectam os níveis de circulação de oxitocina, elevando-os. Kosfeld et al. (2005) descobriram que a administração intranasal de oxitocina (Born et al., 2002) produz um aumento substancial de confiança e de cooperação entre os seres humanos.
As teorias biopsicológicas da promiscuidade sexual vacilam entre duas concepções (Gazzaniga, 1996): uma concepção recorre ao "modelo químico do cérebro" e das toxicodependências para definir a hipersexualidade como dependência/adição; a outra concepção socorre-se de outra variável da nossa personalidade, nomeadamente as compulsões, colocando a promiscuidade sexual num contexto POC (perturbação obsessivo-compulsiva), juntamente com o jogo patológico, embora as duas concepções não sejam incompatíveis. Porém, uma das hipóteses mais esclarecedora ainda é a hipótese do gene receptor da dopamina 4.
Hipótese D4DR. O "efeito Coolidge" é o conceito usado para referir o interesse dos machos em diversos parceiros sexuais e está bem documentado nos humanos (Buss, 1994, 1989) e noutras espécies animais, tais como carneiros, ratos e chimpanzés. Este interesse masculino demostra três dos aspectos fundamentais das características genéticas: ocorre em diversas culturas e épocas, encontra-se nas outras espécies e revela variabilidade individual, todos eles utilizados por Eibl-Eibesfeldt (1983, 1977) para estudar os comportamentos hereditários humanos.

O estudo genético deste efeito deriva do estudo da personalidade, especificamente da característica denominada "procura de novidade", que significa encontrar prazer em experiências novas, variadas e intensas. Os estudos de Bogaert & Fisher (1995) e de Zuckerman et al. (19) demonstraram que os "grandes perseguidores de novidades" satisfazem a sua necessidade de mudança e variedade com um grande número de parceiros sexuais. O seu registo contribui mais para prever o número de parceiros sexuais do que qualquer outro factor (beleza física, masculinidade, idade ou interesse geral pelo sexo). Isto significa que, quanto mais um indivíduo perseguia novidades, mais parceiros tinha. Disseram ser óptimo fazer sexo com alguém que acabavam de conhecer, mesmo que não tivessem a certeza de gostar um do outro. Os "perseguidores menos activos" tinham mais probabilidades de se interessar pelo sexo apenas quando estavam muito apaixonados e, de preferência, casados. Os perseguidores de emoções viam o sexo como um «jogo», enquanto os que não procuravam emoções viam o sexo como uma expressão de compromisso emocional.

Além disso, os perseguidores de emoções tinham uma extensão e variedade de actividades sexuais maior que a dos que menos interessados, em particular tinham mais probabilidades de usar sexo oral e posições sexuais menos habituais. No entanto, a ligação entre a busca de emoções e a voracidade sexual não é o impulso sexual, porquanto os perseguidores de emoções não se masturbavam mais do que os outros, mas tinham mais parceiros. Isto sugere que a busca de emoções se refere à forma como se faz sexo e a quem se procura para o fazer, não à frequência sexual.

Ebstein et al. (1996) e Benjamin et al. (1996) mostraram que a busca de novidades é, em grande parte, determinada pelo gene receptor de dopamina 4, um activador do comportamento que existe em abundância no nucleus accumbens, e que existe uma correlação entre o gene D4DR e o número de parceiros sexuais. Nos homens heterossexuais, os grandes perseguidores de novidades têm a forma longa do gene D4DR, enquanto os pouco interessados em novidades têm a forma curta. Embora os primeiros tivessem um número ligeiramente superior de parceiros do que os segundos, a diferença não era estatisticamente significativa.

Contudo, alguns homens heterossexuais tinham feito sexo com outro homem, geralmente apenas uma vez e quando eram novos e, neste aspecto do seu comportamento sexual, havia uma forte correlação com o gene D4DR. Com efeito, os grandes perseguidores de novidades com o gene longo tinham seis vezes mais probabilidades de ter feito sexo com outro homem do que os que tinham um gene curto. Cerca de metade dos inquiridos do gene longo já tinha feito sexo com um parceiro sexual masculino, em comparação com apenas 8% dos homens com o gene curto.

Nos homens homossexuais, verificava-se precisamente o contrário. Como seria de esperar, os homossexuais tinham mais parceiros sexuais masculinos do que os heterossexuais tinham parceiras femininas, provavelmente porque no mundo gay o efeito Coolidge é universal e o gene D4DR tinha o efeito esperado. Contudo, o seu efeito era muito mais forte para o número de parceiras femininas dos homens homossexuais. Os grandes perseguidores homossexuais de novidades, com a forma longa do gene, tinham feito sexocom cinco vezes mais mulheres do que aqueles que não procuravam novidades, com a forma curta do gene. Estes resultados mostram que o gene receptor da dopamina D4 influencia indirectamente o comportamento sexual masculino, mediante o comportamento de busca de novidades. Ono et al. (1997) confirmaram esta associação quando estudaram sujeitos japoneses e finlandeses.

Em Portugal, muitos homens homossexuais, sobretudo os "encobertos", que fazem sexo com mulheres e que são casados heterossexualmente e têm filhos, frequentam assiduamente os "circuitos gay de sexo anónimo" e de "sexo virtual" em busca de potenciais parceiros sexuais ocasionais. É provável que o desejo de novas experiências desempenhe o seu papel neste comportamento, mas o facto de terem sexo com mulheres deve-se fundamentalmente a pressões familiares, profissionais e sociais. Certas carreiras profissionais são reguladas em conformidade com normas heterosexistas e algumas delas, como a carreira militar, policial ou política, exigem praticamente que os homens sejam casados. Os efeitos da dopamina D4 não podem ser dissociados destes factores sociais e, entre os homens homossexuais, estão certamente associados à variedade de experiências sexuais, prática de sexo arriscado, de sexo em grupo e de "sexual bondage".

J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 23 de fevereiro de 2008

SEDES e Denúncia da Corrupção

A SEDES editou na sua página um «relatório» intitulado «Tomada de Posição» (Fevereiro de 2008), que começa por denunciar «um difuso mal estar»:
«Sente-se hoje na sociedade portuguesa um mal estar difuso, que alastra e mina a confiança essencial à coesão nacional.
Nem todas as causas desse sentimento são exclusivamente portuguesas, na medida em que reflectem tendências culturais do espaço civilizacional em que nos inserimos. Mas uma boa parte são questões internas à nossa sociedade e às nossas circunstâncias. Não podemos, por isso, ceder à resignação sem recusarmos a liberdade com que assumimos a responsabilidade pelo nosso destino.
Assumindo o dever cívico decorrente de uma ética da responsabilidade, a SEDES entende ser oportuno chamar a atenção para os sinais de degradação da qualidade da vida cívica que, não constituindo um fenómeno inteiramente novo, estão por detrás do referido mal estar
».
Este documento enumera, a seguir, diversos factores responsáveis pela degradação da qualidade da vida política portuguesa: 1) a degradação da confiança no sistema político, a qual gira em torno da decadência corrompida dos partidos políticos; 2) valores, justiça e comunicação social, onde se fala da justiça ineficaz e da comunicação manipulativa ao serviço dos interesses mafiosos dos corruptos; e 3) criminalidade, insegurança e exageros, provavelmente o maior exagero deste «relatório», porque a criminalidade e a insegurança atribuídas à cidade do Porto são mais uma invenção macabra de Pacheco Pereira do que uma realidade. O resultado deste profundo mal estar é o «empobrecimento do regime político» português, o qual não consegue «atrair e reter os cidadãos qualificados», de modo a renovar a vida política e a aprofundar a democracia. Portugal está, como alerta o «relatório», à beira de uma convulsão social, de resto profundamente justa e racional.
Porém, para quem conhece bem a sociedade portuguesa, sabe que esta é uma sociedade mafiosa: a exclusão dos indivíduos mais competentes é um sistema vigente em Portugal, pelo menos desde o 25 de Abril de 1974, quando os incompetentes, ao abrigo dos slogans pseudo-revolucionários, começaram a ocupar indevidamente todos os cargos de decisão. Os partidos políticos deram depois a sua protecção a este "sistema de favores", o qual converteu gradualmente a democracia num regime oligárquico cleptocrático.
A luso-corrupção está generalizada e, apesar de ser ubíqua e transversal a toda a sociedade, tem como sede Lisboa, donde lança os seus tentáculos que asfixiam todo o país. É evidente que a sua cabeça é o poder político de Estado, em todas as suas três frentes (executiva, legislativa e judicial), que, num movimento peristáltico, a transmite a todas as instituições públicas e privadas, incluindo as universidades, cuja função é garantir emprego, favores ou regalias aos seus "filiados", sejam estes da mesma cor partidária, da mesma família, da mesma confissão religiosa, prestação de "serviços sexuais" aos "chefes" (homens e mulheres heterossexuais, bissexuais e homossexuais), "abuso sexual" silenciado, ou simplesmente "filhos" ou "amigos dos amigos". Ora, um tal sistema de recrutamento exclui necessariamente os mais competentes, os «cidadãos qualificados» (SEDES). Portugal assassina a inteligência e o mérito e, por isso, está onde está: na miséria, não a das suas elites corruptas organizadas em mafias, mas a da generalidade dos portugueses que não vêem futuro neste país mafioso.
É curioso constatar que, neste mesmo dia, Pinto da Costa foi entrevistado na Sic, onde clarificou a «corrupção» que preside ao chamado "Apito Dourado", e, logo a seguir, um jornalista e comentador deturpou todo o conteúdo da sua mensagem, em defesa da "campanha lisboeta" contra o Futebol Clube do Porto e a cidade do Porto, esquecendo que as "duas coincidências" mencionadas por Pinto da Costa, relativas ao comportamento do marido de Maria José Morgado, foram ouvidas e lidas por quase todos os portugueses. A questão que fica no ar é a de saber como um tal "cidadão" está tão bem informado sobre assuntos que supostamente deveriam estar ao abrigo do "segredo de justiça"! Ou como a comunicação social "sensacionalista" e o "jornalismo de insinuação", para utilizar os termos do documento da SEDES, sabem de tudo isso! A resposta só pode ser "Corrupção": o poder político e os partidos políticos manipulam a comunicação social e, tal como acontece em todas as outras instituições públicas do Estado, é muito provável que os seus "profissionais" sejam recrutados não pela sua competência, mas seleccionados em função de "critérios corruptos". Afinal, esta é a única norma universal de recrutamento em Portugal.
Estranhamente, os partidos da oposição reagiram bem a este «documento», embora tenham responsabilidade directa no mal estar, mas o PS achou que a denúncia era "tremendista", isto é, exagerada. O PM José Sócrates não respondeu, Vieira da Silva voltou a acentuar o seu carácter exagerado e o PR Cavaco Silva deu o seu apoio, convidando os portugueses a dizer não à resignação.
Eu sou socialista e não vejo nestas iniciativas de denúncia do sistema nacional de corrupção um ataque ao governo socialista, cujo impulso reformista pode estar a ser bloqueado pelas mafias instaladas, entre as quais devemos incluir os sindicatos. A luta contra a corrupção pode ser a maior bandeira do actual governo socialista, até porque a sua aposta nas "qualificações" e na "inovação" esbarra sistematicamente contra a mediocridade das pseudo-elites nacionais. Este governo deve estar ciente que, por exemplo, a maior parte dos professores, sobretudo dos professores universitários, não está à altura da sua missão, porque simplesmente estes professores foram recrutados em função de critérios corruptos, tendo-se especializado na exclusão dos cidadãos competentes e inteligentes, precisamente aqueles que os reduzem à sua mísera mediocridade. Com mafiosos deste calibre qualquer reforma nasce morta e corremos novamente o risco de estar a perder tempo, porque o governo se recusa a ver o país real, o país das mafias instaladas no poder e profundamente maldosas. Será que o PS deseja vir a ser acusado justamente no futuro próximo por ter adiado novamente o futuro de Portugal? A reforma da justiça e da administração estão atrasadas e as reformas da educação não estão a seguir o rumo correcto. O autismo político não é bom conselheiro! Desejo sinceramente que o PM José Sócrates faça justiça às numerosas "vítimas" da corrupção de todas as gerações, mostrando assim que ainda é um socialista corajoso e determinado em levar a cabo, de modo transparente, uma mudança social qualitativa nos rumos de Portugal.
J Francisco Saraiva de Sousa

Monogamia, Vasopressina e Oxitocina

Apenas 3% dos mamíferos são monogâmicos, formando casais heterossexuais estáveis e selectivos que cooperam na criação dos filhos, e, apesar da diversidade de sistemas de acasalamento humano, o homem é predominantemente monogâmico. O rato selvagem do género Microtus tem sido utilizado para estudar o modo como a constituição genética e a química cerebral podem controlar os comportamentos sociais complexos, em particular a formação de casais (pair-bonding), cuidados parentais e protecção da fêmea (mate guarding) (Carter et al., 1995; Young, Wang & Insel, 1998).
Estes ratos são pequenos roedores semelhantes aos ratos do campo e, nos USA, existem pelo menos duas espécies estreitamente relacionadas – os ratos da pradaria (Microtus ochrogaster) e os ratos da montanha (Microtus montanus), que são muito utilizadas por serem muito diferentes no que respeita ao tipo de acasalamento. Os ratos da pradaria machos acasalam para toda a vida e lutam ferozmente contra os machos intrusos, enquanto os ratos da montanha são sexualmente promíscuos.
Insel et al. (1995) estudaram estes ratos e descobriram que as duas espécies apresentam diferenças no padrão de receptores de uma hormona péptidea, a vasopressina. Quando a vasopressina era bloqueada nos cérebros dos ratos da pradaria normalmente monogâmicos, eles acasalavam promiscuamente por toda a colónia e não defendiam as suas fêmeas dos outros machos. Além disso, quando um rato da pradaria macho vivia com uma fêmea, o seu cérebro produzia mais vasopressina que quando estava só. Estas mudanças não foram detectadas nos ratos da montanha, nem nas fêmeas de ambas as espécies. Estes resultados mostram que uma diferença genética entre as duas espécies produz uma diferença importante no comportamento de acasalamento, através da simples mudança da quantidade e distribuição da vasopressina.
Os ratos da pradaria formam casais após 24 h do acasalamento (Williams et al., 1992; Winslow et al., 1993a/b; Insel et al., 1995a/b). Os membros dos casais permanecem juntos e em contacto físico um com o outro e os machos exibem agressão contra intrusos de ambos os sexos. O acasalamento facilita a formação de preferência pelo parceiro em ambos os sexos, mas nas fêmeas a cohabitação com um macho ao longo de 24 h antes do acasalamento é suficiente para induzir a preferência pelo parceiro (Williams et al., 1992). O acasalamento parece ser mais importante para os machos formarem casal e desenvolver agressão contra intrusos (Insel et al., 1995).
Como é que o acasalamento facilita a formação de casais? A estimulação genital provoca libertação intracerebral de oxitocina (OT) nos machos e nas fêmeas de variadas espécies (Witt, 1995). A libertação de OT durante a estimulação vaginocervical induz comportamento maternal nos ratos e nas ovelhas e é importante para a ligação ovelha-carneiro. A libertação central de OT durante o acasalamento também parece facilitar a formação de pares nos ratos da pradaria. A infusão intracerebroventricular (ICV) de oxitocina induz rapidamente a formação de preferência de parceiro nas fêmeas dos ratos da pradaria na ausência de acasalamento (Williams et al., 1994; Insel & Hulihan, 1995; Cho et al., 1999), enquanto a infusão do antagonista da oxitocina (OTA) bloqueia a formação desta preferência mesmo depois de acasalamento prolongado (Insel & Hulihan, 1995). A OT e OTA podem ter efeitos similares sobre a formação de preferência de parceiro nos machos dos ratos da pradaria, mas o efeito nos machos parece depender da dose e do paradigma comportamental (Windlow et al., 1993; Cho et al., 1999).
A arginina vasopressina (AVP), uma molécula similar à oxitocina, também foi implicada na transição do estado de solteiro ao estado de casado, mas enquanto a OT facilita preferencialmente a formação de casais nas fêmeas, a AVP facilita preferencialmente a formação de casais nos machos. A infusão ICV de AVP nos machos dos ratos da pradaria induz a preferência de parceiro e a agressão contra intrusos na ausência de acasalamento (Winslow et al., 1993; Cho et al., 1999). Contrariamente, a infusão ICV de um antagonista da vasopressin-1a (V1a) receptor nos machos dos ratos da pradaria bloqueia o desenvolvimento da preferência de parceiro e da agressão selectiva, mesmo após a experiência de acasalamento prolongado (Winslow et al., 1993). A AVP também pode facilitar a formação de preferência de parceiro nas fêmeas, sob algumas condições experimentais (Cho et al., 1999) mas não noutras (Insel & Hulihan, 1995).
Como é que a OT e a AVP facilitam a formação de casais? Uma abordagem elegante para esclarecer esta questão recorreu à análise de OT knock-out (OTKO) mice (Freguson et al., 2000, 2001). Os ratinhos knock-out parecem ter respostas normais aos estímulos olfactivos não-sociais e exibem habilidades normais de aprendizagem espacial. Contudo, estes animais não conseguem reconhecer um congénere ou co-específico, mesmo depois de ter sido exposto a ele mais de uma vez. Injecções ICV de OT antes, mas não após, da exposição social restauram a recognição social nos ratinhos OTKO. A comparação de c-Fos imunoreactividade como um marcador de activação neuronal entre ratos machos selvagens e OTKO, acompanhada de exposição a estímulos femininos, sugere que o processamento de estímulos é normal nos ratos OTKO até atingir a amígdala medial. Os ratos selvagens, mas não os OTKO, mostram elevada indução de c-Fos na amígdala medial (Ferguson et al., 2001).
A amígdala medial é um importante alvo das projecções provenientes do bulbo olfactivo e é rica em receptores de OT. A injecção de OT especificamente dentro da amígdala medial restaura a recognição social nos ratos OTKO, enquanto a injecção de OTA na mesma área nos ratos selvagens interrompe a recognição social. No entanto, nos ratos, a activaçãp dos receptores de OT na amígdala medial durante o início da exposição social é necessária para a subsequente recognição social (Ferguson et al., 2001). Tal como os ratinhos, os ratos da pradaria dependem fortemente da olfacção para a recognição social (Cárter et al., 1995).
Uma hipótese para explicar os efeitos farmacológicos da OT sobre a preferência de parceiro nos ratos da pradaria é a de que, na amígdala medial, a OT facilita a formação de casais por aperfeiçoamento da recognição social, enquanto o OTA induz amnésia social (Young et al., 2001). Contudo, esta hipótese não explica porque razão os ratos da pradaria estabelecem relações monogâmicas e os ratos da montanha, bem como os ratinhos, não o fazem (Young et al., 2001).
Uma segunda linha de pesquisa deriva de estudos comparativos de espécies de ratos monogâmicos e não-monogâmicos. Embora a administração ICV de OT e AVP facilite a formação de preferência de parceiro nos ratos da pradaria, estes neurotransmissores não afectam o comportamento social dos ratos da montanha que, apesar de estarem relacionados, são não-monogâmicos (Winslow et al., 1993; Young et al., 1997, 1999). A oxitocina e a vasopressina medeiam os seus efeitos sobre o cérebro pela activação de receptores G-protein couple. Os padrões de expressão do receptor da OT e o V1a receptor diferem entre os ratos da pradaria e os ratos da montanha. Nos ratos da pradaria, mas não nos da montanha, o receptor da OT é expresso em níveis elevados no nucleus accumbens e no córtex pré-limbico (Insel & Shapero, 1992). O V1a receptor é expresso em níveis elevados na região do pallium ventral nos ratos da pradaria mas não nos ratos da montanha. O nucleus accumbens, o palladium ventral e o córtex pré-limbico estão associados com a via mesolímbica da dopamina, que é suposta estar envolvida nos efeitos de recompensa ou de reforço dos estímulos naturais ou psicoestimulantes (Pitkow et al., 2001).
Estes dados são congruentes com a hipótese de que a OT e a vasopressina actuam nestas áreas do cérebro dos ratos da pradaria para condicionar uma preferência de parceiro (Insel & Young, 2001; Young et al., 2001). Com efeito, a injecção do OTA especificamente no nucleus accumbens ou córtex pré-límbico inibe a formação de preferência de parceiro nas fêmeas dos ratos da pradaria (Young et al., 2001), ao passo que o aumento da expressão do V1a receptor na região do palladium ventral, usando um vector viral, incrementa a preferência de parceiro e o comportamento afiliativo nos machos dos ratos da pradaria (Pitkow et al., 2001). Além disso, a neurotransmissão de dopamina no nucleus accumbens foi implicada na formação de preferência de parceiro (Wang et al., 1999; Gingrich et al., 2000). O acasalamento aumenta os níveis de dopamina no nucleus accumbens e a injeção de D2 dopamine receptor agonist quinpirole no seio do nucleus accumbens facilita a formação de preferência de parceiro nas fêmeas dos ratos da pradaria na ausência de acasalamento (Gingrich et al., 2000), sem impedir a continuação de um casal já estabelecido (Wang et al., 1999). Estes dados apoiam a hipótese de que a formação de casais envolve uma preferência de parceiro condicionada e mediada, em parte, pela libertação de dopamina, OT e vasopressina durante o acasalamento.
Esta variação natural no padrão de expressão do V1a receptor pode ser importante para a variação do comportamento social em diferentes espécies de ratos. Os ratinhos transgénicos para o V1a receptor dos ratos da pradaria mostram um padrão de expressão do V1a receptor semelhante àquele observado nos ratos da pradaria e diferente do dos ratinhos selvagens, respondendo à injeção ICV de AVP com o aumento de comportamento afiliativo (Young et al., 1999).
Falta saber se estes estudos animais são relevantes para compreender o amor humano. No cérebro humano, os receptores de oxitocina estão concentrados em diversas regiões ricas em dopamina, especialmente a substância negra e o globus pallidus, bem como a área pré-optica (Loup et al., 1991). Embora o padrão seja consistente com o cérebro monogâmico, os receptores não foram encontrados no estriatum ventral ou pallidum ventral, áreas nas quais os receptores V1a da oxitocina e da vasopressina são abundantes nos ratos e macacos monogâmicos (Wang et al., 1997). Ainda não existe evidência de que estas vias estejam envolvidas na vinculação humana (Carter, 1998).
Bartels & Zeki (2000) realizaram um «functional magnetic resonance imaging (fMRI) study of adults looking at pictures of their partners, as opposed to close non-romantic friends» e descobriram activação bilateral no cingulate anterior (Brodmann’s area 24), insula medial (Brodmann’s area 14), bem como no caudate e putamen. Este padrão de activação cortical era distinto daquele obtido por estudos anteriores de recognição facial, atenção visual, excitação sexual ou outros estados emocionais, mas assemelha-se aos resultados prévios de um «fMRI study of new mothers listening to infant cries» (Lorberbaum et al., 1999).
Ambos os estudos da vinculação humana revelam marcada sobreposição entre o padrão de activação «when looking or hearing a loved one» e um relato anterior de activação durante a euforia induzida por cocaína (Breiter et al., 1997). Esta sobreposição sugere que as vias que medeiam as propriedades hedonistas dos psico-estimulantes estão também envolvidas, como sistema neural, na vinculação social. Estes resultados apontam no sentido do amor ser uma adição. (Estudos recentes fornecem evidência neste sentido, possibilitando criar uma neurociência social assente na hipótese do cérebro social.)
J Francisco Saraiva de Sousa