quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

A Noite e o Medo

É sobejamente conhecida a tese de Max Weber de que a racionalização ocidental mais não é do que «desencantamento do mundo»: a modernidade como desencanto que, neste momento, abriga no seu seio forças regressivas que retomam temas arcaicos cujo conteúdo já não é actual. O «regresso do sagrado», sobretudo do «sagrado mágico», tomado no seu sentido vasto e pluricultural, é uma dessas forças que parece estar a passar por um momento de «revitalização». Contudo, esta «revitalização» é mais aparente do que real, simplesmente porque a electricidade venceu o medo e iluminou o seu abrigo, a noite. A luz suplantou a força das trevas e aprisionou-a. Os homens, mesmo os ilhéus de Dobu, já não temem a noite; pelo contrário, festejam na noite iluminada.
O discurso cosmológico contemporâneo, num movimento paradoxal de retoma da grande metanarrativa e, ao mesmo tempo, de negação da sua plausibilidade, privou a noite do seu mistério. Porque é que a noite é negra? A cosmologia responde a esta questão chamando a atenção para dois elementos: Primeiro, porque o universo não é eterno. Segundo, porque o universo é hoje transparente em direcção ao futuro. Estes dois elementos reconduzem-nos, como nos lembra Hubert Reeves, à teoria da expansão universal, mais conhecida por teoria do big bang. O universo tem idade: a luz das estrelas espalha-se num espaço cada vez mais vasto, sempre em expansão, e os fotões emitidos não têm praticamente nenhuma possibilidade de serem capturados no futuro. Portanto, é a expansão do universo que nos fez passar do período do céu brilhante para o período presente, tornando-se, a este título, responsável pela existência da noite, tão temida pela humanidade até à descoberta da electricidade que a tornou iluminada, portanto, visível, sem segredos.
Como estamos longe da imaginação poética de Hesíodo que, na sua Teogonia, faz este relato do começo do mundo:
«Primeiro que tudo houve o Caos, e depois
a Terra de peito ingente, suporte inabalável de tudo quanto existe,
e Eros, o mais belo entre os deuses imortais,
que amolece os membros e, no peito de todos os homens e deuses,
domina o espírito e a vontade esclarecida.
Do Caos nasceram o Érebo e a negra Noite
e da Noite, por sua vez, o Éter e o Dia.
A Terra gerou primeiro o Céu constelado,
com o seu tamanho, para que a cobrisse por todo
e fosse para sempre a mansão segura dos deuses bem-aventurados.
Gerou ainda as altas Montanhas, morada aprazível
das deusas Ninfas, que habitam os montes cercados de vales». (Tradução de Helena da Rocha Pereira.)
Porém, de acordo com os sinais do tempo passado, o homem é o ser que não consegue viver num mundo destituído de sentido, isto é, num mundo caótico e, por isso, prefere conciliar o inconciliável fingindo viver num cosmos. Era assim que se pensava, mas, olhando ao nosso redor, já não conseguimos vislumbrar uma silhueta que corresponda a este conceito. O desencantamento desencantou o próprio homem e, neste mundo metabolicamente reduzido, nada está a salvo da destruição consumista, até mesmo a imaginação poética. Apenas meia dúzia de guardiões continua a sonhar com o mundo perdido.
J Francisco Saraiva de Sousa

7 comentários:

E. A. disse...

Esta preocupação que o orgulho que o homem teve no processo de desencantamento do mundo se possa insuflar numa arrogância suprema, numa incapacidade de experimentar o espanto vital que Aristóteles falava, já pensava Weber e seus contemporâneos.
O que mudou entretanto foi esse "regresso ao sagrado"... Ora, n sei se é realmente correcto de ser enunciado desta maneira e isto porque não considero que haja um regresso ao sagrado mágico, porque as causalidades imaginárias sempre existiram. O que aconteceu foi que estas soluções se converteram à sociedade de consumo em que vivemos, enchendo as prateleiras das livrarias com títulos e capas atraentes...
Mas estou a pensar nisto ao ritmo que escrevo... posso estar enganada.
Em todo o caso, não concordo consigo quando diz que a poética (ou a arte como diz no comentário do post anterior) possa estar em perigo. Criar, a poiesis, é um destino. Gosto de ver assim, e então nascerão sempre artistas, os heróis, os únicos que nos podem salvar.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, o ocultismo que enche as livrarias é, de facto, insanidade mental.
Sim, a noite agora só pode ser celebrada com encanto pelos poetas e talvez a filosofia deva estar atenta ao que dizem os poetas.
Sim, referia-me ao sagrado mágico, aquele que o homem julga poder manipular... :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Contudo, coloca uma questão importante, implícita no post: o homem ocidental de hoje parece um homem "selvagem", tal como foi visto por Malinowski, Strauss, Lévy-Bruhl, E.-Pritchard, etc. Concilia o pragmatismo da vida quotidiana e profissional com crenças imaginárias: as suas causalidades imaginárias. Pouco racional e pouco crítico! Será que devemos converter-nos em antropólogos da nossa própria sociedade e tratar os nossos contemporâneos como selvagens? :)

E. A. disse...

Devemos, quem? Somos todos eivados de primitivismo... Cabe aos filósofos fazer recordar a nossa origem.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Nós homens de bem e racionais, em particular alguns grandes pensadores. :)

E. A. disse...

Ok, Francisco, parece-me que é homem e racional e de bem. Por isso fico aqui atenta, na minha passividade, bem feminina e juvenil.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Homens + mulheres racionais e bom coração: nada mais! :)