quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Natal, Dor e Prazer

Hoje (18 de Dezembro de 2007), pela primeira vez, assisti parcialmente a um programa da RTP1 dedicado ao Natal, uma iniciativa conjunta da Cruz Vermelha, Modelo e RTP1 que este ano resolveram destacar os mais velhos. Escusado será dizer que esse programa exibiu todas as suas figuras colonizadoras em triplicado geracional ou quase: avós, pais e netos, e, como seria de esperar em Portugal, os mais novos tendem a seguir as carreiras dos mais velhos, como se a "vocação" fosse milimetricamente controlada pelos genes! E como se os mais velhos tivessem tido uma carreira brilhante feita à medida dos seus luso-genes e da arquitectura neural que eles controlam! De facto, o melhor título deste programa seria "As Gerações Colonizadoras".
O meu tom irónico já foi suficiente para mostrar o que penso desta iniciativa e, por isso, posso abordar um outro assunto mais interessante. Os sociólogos têm o velho hábito de falar sobre o declínio da família e já o fazem desde sempre. Ainda recentemente Giddens voltou a este tema, associando-o com a globalização. Contudo, os estudos empíricos que disponho, e são largas centenas, mostram que os europeus estão cada vez mais familiares. Aliás, a família funciona como o último e o derradeiro refúgio, aquele que os protege da estranheza e do anonimato. Este facto não tem nada de surpreendente, até porque a família não é uma construção social: as suas raízes profundas são biológicas e é como manifestação biosocial que deve ser compreendida.
A família é cada vez mais valorizada e a prova disso está no facto do Natal ter-se convertido numa festa familiar. Independentemente da confissão religiosa ou ausência dela, o Natal tende a ser festejado por todas as famílias: é fundamentalmente uma reunião familiar.
As famílias são cada vez mais afectivas, isto é, os pais desenvolvem com os seus filhos uma relação mais afectiva. O desenvolvimento normal das crianças depende muitíssimo da qualidade destas relações afectivas, como demonstrou a teoria da vinculação. Contudo, a qualidade destas relações pais/filhos merece uma crítica. Os pais procuram proporcionar aos seus filhos aquilo que não tiveram ou obtiveram dos seus próprios pais. Isto é particularmente evidente em Portugal: as gerações mais velhas não tiveram vida facilitada, nem as oportunidades de que desfrutam as gerações mais novas, simplesmente porque o país era pobre e muito atrasado em termos sociais e culturais. Este passado de carência persegue os portugueses que tudo fazem para o esquecer, desenvolvendo o "trauma de que o rigor disciplinar e educativo" tem efeitos negativos sobre o desenvolvimento das crianças e dos jovens, trauma que se reflecte até mesmo nas escolas e com maus efeitos visíveis, entre os quais a indisciplina e a violência que, ao contrário do que diz a Ministra da Educação, estão presentes diariamente na maioria das escolas ou mesmo em todas as escolas, com manifestações abertas ou mais veladas.
As crianças e os jovens são mimados e as suas necessidades são satisfeitas. Amor e prazer unem-se de tal modo que estas crianças acabam por converter-se em meros reivindicadores, intolerantes e incapazes de fazer frente às adversidades da vida. Por isso, tornam-se agressivas, indisciplinadas e dependentes de tudo, até mesmo das drogas, do álcool e do sexo. Não são pessoas alegres e não têm grande auto-estima. Enfim, são pedintes, eternos pedintes, que não sabem que o acto de receber deve ser retribuído. A troca, no sentido de Marcel Mauss - Dar, Receber e Retribuir - é-lhes completamente estranha. E isto acontece porque foram protegidas da adversidade, da dor e do sofrimento: não sabem o que é fazer um sacrifício. As suas necessidades e desejos foram, de algum modo, satisfeitas e nunca souberam o que é a privação. Não valorizam a vida, o esforço e a competência. São zombies!
Konrad Lorenz mostrou que, devido à progressiva dominação técnica da natureza, o homem moderno deslocou o mecanismo neurofisiológico da economia prazer-desprazer no sentido de uma hipersensibilidade crescente a respeito de todas as situações de estímulo negativo, ao mesmo tempo que a sua capacidade de prazer se foi embotando: «A crescente intolerância para com o desprazer — conjugada com a atenuação do poder atractivo do prazer — induz os homens a perder a capacidade de empreender trabalhos difíceis, cuja promessa de prazer reside no resultado posterior. Origina-se assim uma exigência impaciente da imediata satisfação de todos os desejos que despontam», de resto alimentada e incrementada pelos produtores, pelas empresas comerciais e pelas diversas indústrias juvenis.
Este esforço imoderado para evitar a todo o custo o menor sentimento de incomodidade impossibilita inevitavelmente certas formas de prazer. Ao reprimir a hipersensibilidade ao sofrimento, o homem moderno vedou a si mesmo o acesso à alegria: «Conhece o gozo, mas não a alegria (...). A crescente intolerância actual a respeito do sofrimento transforma os altos e os baixos da vida humana, comandados pela natureza, em superfície artificialmente nivelada; das grandes vagas, com suas cristas e depressões, faz uma vibração a custo perceptível; da luz e da sombra, origina um cinzento uniforme. Numa palavra, prepara um tédio mortal». Enfim, um homem que foge da sua própria sombra!
De facto, estes jovens de hoje são insuportáveis e, durante a nossa pesquisa de terreno, verificámos que, apesar dos homens preferirem parceiros ou parceiras mais novas do que eles próprios, já nem este traço evolutivamente estável os leva a procurar a companhia dos mais jovens, que nem para parceiros sexuais são desejados. Verdadeiramente insuportáveis, vazios e destituídos de profundidade! Movem-se em manada e não sabem para onde querem ir ou para onde são conduzidos: "gado doméstico", obesos, pouco inteligentes, incultos, incapazes de pensar e muito pouco alegres. Esta é a juventude poupada da punição!
Até um filósofo tão hedonista como Herbert Marcuse reconheceu, na sua obra «O Homem Unidimensional», que a consciência feliz resultante da satisfação das necessidades instintivas gera submissão e facilita a aceitação dos malefícios de uma sociedade não-livre. Até mesmo o proletariado deixou de ser uma classe potencialmente revolucionária a partir do momento em que muitas das suas reivindicações foram satisfeitas. As pessoas que desconhecem a insatisfação tornam-se apáticas e conformistas e, como foram poupadas do sofrimento, da dor ou da privação, não sabem o que é a alegria resultante de uma conquista difícil. Além disso, «o resultado (deste pseudo-educação ou pseudoformação cultural) é a atrofia dos órgãos mentais» (Marcuse). Os jovens estão cada vez mais ignorantes e, por conseguinte, mais intolerantes, incapazes de perceber as contradições e as alternativas da sociedade estabelecida. Os seus diplomas são basura (lixo) e é isso que o "plano tecnológico" teima em não compreender, o que o pode condenar a ser mais um fiasco da política portuguesa.
A dor e o prazer são as duas faces da mesma moeda: qualquer uma delas proporcionada em detrimento da outra não produz pessoas alegres, que passam pela vida sem saberem o que a vida significa. Por conseguinte, apesar da coexistência destas três gerações e das diferenças que as parecem separar, vistas à luz deste mecanismo neurofisiológico elas situam-se numa linha de continuidade que promete não mudar nada em Portugal, negando-lhe sempre um futuro qualitativamente diferente do passado que se prolonga ao longo das gerações.
J Francisco Saraiva de Sousa

8 comentários:

Helena Antunes disse...

"Os sociólogos têm o velho hábito de falar sobre o declínio da família e já o fazem desde sempre."
Não é bem assim. Os sociólogos falam sim de um declínio de algumas formas de família (a que a socióloga Engrácia Leandro chama grupos domésticos), como sejam a família alargada, a família tronco e mesmo a família tácita e a família zadruga. Na modernidade predominam outros tipos de grupos domésticos como a família nuclear-conjugal, a família monoparental e a família recomposta.

Para quem queira estudar a família do ponto de vista sociológico recomendo duas sociólogas de renome:
Mª Engrácia Leandro
Anália Torres

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, mas o que interessa é o triângulo pai, mãe e filhos e a ajuda intergeracional. É isto que as pessoas começam a valorizar cada vez mais: os laços familiares. Faz parte da nossa biologia: nascemos imaturos, precisamos de cuidados prolongados. Portanto, somos um longo investimento familiar. :)

Helena Antunes disse...

Sim, Francisco, sem dúvida. Vejamos o que acontece actualmente onde os jovens ficam em casa dos pais até mais tarde, dado estudarem mais anos e só saem de casa quando há uma mínima estabilidade financeira. Daí os laços familiares são mais prolongados.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Também por isso. E mais: os pais são provavelmente os últimos a gozar as regalias do Estado Social. Mas há a dimensão do refúgio, do lar, da concha..., aliás muito poética. :)

E. A. disse...

Bem, este é um texto muito interessante, a vários níveis, aborda muitas coisas.
Gostaria de relê-lo mais tarde para um comentário com mais sentido. Mas neste momento quero dizer que fui e talvez ainda seja, mas agora com consciência disso, o tipo de jovem que retrata. Aos 19 anos tive a sensação que n haveria muito mais para experimentar, para fazer, para ter. Sobrava-me quase nada, daí que tudo fosse objecto de agressividade, da intolerância de que fala. É, realmente, um problema, isto que tratou. Mas tenho de pensar nisto e depois escrevo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ok Papillon :)

E. A. disse...

Não vou dizer nada.
Afinal, a borboleta é cega e a metamorfose dolorosa.
Milan Kundera descreveu magnificamente esta geração e a sua "insustentável leveza".
Ou o filme Kids, ou os dois últimos de Gus Van Sant... (Este último trata a apatia da juventude de forma brilhante.)
Como acho a Arte superior à Filosofia, fica isto. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Boa intervenção a sua! Mas essa passividade da juventude preocupa-me, até porque o futuro da arte está em perigo, devido à ausência de inteligência cultivada no ensino e na cultura superiores.
Estive a ver a Quadratura do Círculo e cheguei à conclusão que devíamos fazer um referendo sobre as nossas paupérrimas elites económicas, financeiras, políticas, sindicais, funcionais... Elas são as culpadas pela nossa miséria nacional. Outra questão é saber se o povo sabe o que é um referendo e as matérias sujeitas a referendo. São "batatas", todos batatas... :)))