segunda-feira, 5 de novembro de 2007

John Rawls e a Teoria da Justiça

Não é nada fácil escrever sobre a teoria da justiça de John Rawls (1921-2002), sobretudo num blogue aberto a todas as pessoas, das mais preparadas às menos preparadas, com predomínio daquelas que desistiram de pensar ou que nunca pensaram na vida, trocando o pensamento conceptual pela mera opinião metabolicamente reduzida.
John Rawls é conhecido pelo seu livro «A Theory of Justice» (1971), embora tenha escrito dois outros grandes livros: «O Liberalismo Político» (1993) e «O Direito dos Povos» (1999). Mas é sobre «Uma Teoria da Justiça» que incide a nossa breve análise e, para começar, iremos destacar as novidades desta obra.
1. Este é o primeiro livro que aplica à reflexão política um estilo de reflexão demasiado «analítico», embora John Rawls não seja um filósofo ligado ao «empirismo lógico». Este estilo de reflexão não é nada acessível ao comum dos mortais que fogem da argumentação lógica e racional como o «diabo da cruz».
2. O objectivo básico da obra é fornecer uma fundamentação teórica coerente para o conceito de justiça, fundamentação esta que recusa o utilitarismo de Jeremy Bentham e de Stuart Mill, ao mesmo tempo que retoma a teoria do contrato social (Hobbes, Locke e Rousseau), forçando-nos a repensar completamente os princípios sobre os quais repousa a organização das sociedades modernas.
3. Esta obra inscreve-se no prolongamento das lutas conduzidas nos Estados Unidos da América, durante os anos 50 e 60, em prol dos «direitos civis». Por isso, revive uma tradição liberal de esquerda, cuja figura de destaque foi John Dewey. Além disso, permite-nos repensar radicalmente o socialismo como socialismo da liberdade, obrigando-nos a reler os nossos clássicos continentais em nova chave hermenêutica. Aliás, esta é a razão que me levou a escrever estas palavras introdutórias sobre a teoria da justiça de John Rawls.
A teoria da justiça de John Rawls não é apenas mais uma crítica do utilitarismo: oferece-nos uma perspectiva moral alternativa, que altera completamente a filosofia moral. E, como esse trabalho teórico é feito através da análise dos princípios da justiça, considerados como os fundamentos da ordem social, a obra de Rawls constitui também um marco da filosofia política, comparável às obras de Platão, Stuart Mill, Kant e Marx.
A justiça é a primeira virtude das instituições sociais e, por conseguinte, constitui o fundamento da estrutura social. Para descobrir quais os princípios de justiça mais defensáveis ou razoáveis, aos quais devem se sujeitar as decisões políticas e legislativas, Rawls desenvolve uma teoria imponente que, como já vimos, ressuscita a tradição do contrato social, eclipsada pelo utilitarismo, e o racionalismo de Kant (construtivismo político). Partindo de uma posição original equivalente ao «estado de natureza» dos teóricos do contrato social, no qual os homens, privados de informações particulares, seriam colocados sob um véu de ignorância quanto à situação real que seria a sua na sociedade a ser construída, Rawls procura mostrar que todos os homens razoáveis desejariam, em tal situação, pertencer ao sistema mais equitativo possível.
Ora, esta noção de justiça como equidade (justice as fairness) permite distinguir dois princípios fundamentais de justiça. O primeiro princípio afirma o direito igual de cada um às liberdades individuais básicas: Cada pessoa deve ter uma liberdade igual máxima. Mas, como a liberdade de cada um deve ser contida pela necessidade de proteger a liberdade dos outros, Rawls adopta um princípio de liberdade mais refinado: Cada pessoa tem um direito igual a um esquema plenamente adequado de iguais liberdades básicas que seja compatível com um esquema idêntico de liberdades para todos. Este princípio de liberdade acarreta a escolha da democracia.
O segundo princípio de justiça afirma a igualdade de oportunidades, ou seja, a redução das desigualdades naturais e sociais: As desigualdades sociais e económicas devem satisfazer duas condições: por um lado, têm de estar associadas a cargos e posições abertos a todos segundo as circunstâncias da igualdade equitativa de oportunidades; por outro, têm de operar no sentido do maior benefício possível dos membros menos favorecidos da sociedade. Ou seja: este princípio exige os maiores benefícios para os menos favorecidos e propiciona funções e posições acessíveis a todos em condições de uma justa igualdade de oportunidades para todos. Este princípio de justiça implica que o Estado desempenhe, em relação à economia de mercado livre, um papel regulador, procedendo a uma redistribuição das riquezas e das rendas, capaz de dar aos menos favorecidos pelo nascimento os meios efectivos (educação, saúde, habitação, etc.) para melhorar significativamente a sua situação inicial.
Em caso de conflito entre estes dois princípios de justiça, os negociadores devem dar prioridade absoluta ao princípio da liberdade (o primeiro) sobre o princípio da diferença (o segundo princípio). Assim, mesmo a melhoria do bem-estar de todos não é suficiente para justificar uma redução não-equitativa da liberdade. Pelo contrário, a liberdade de uma pessoa só pode ser diminuída na medida em que esse cerceamento constituir parte essencial de um sistema de liberdade que maximize a liberdade para todos. Os dois princípios de justiça e o princípio da prioridade constituem o conceito fundamental da justiça defendido por John Rawls, cuja teoria da justiça é uma aplicação da teoria da escolha racional. «A justiça como equidade é apresentada desde o início como uma concepção política da justiça» (Rawls).
Em suma: Rawls defende um liberalismo político temperado com uma preocupação moral de equidade ou honestidade que faz lembrar as teses clássicas da social-democracia ou do socialismo europeus. Abstraindo das objecções expostas por Jürgen Habermas e por Karl-Otto Apel, iremos mencionar apenas dois tipos de objecções:
1. Como todos os liberais, Rawls assimila a sociedade a uma mera agregação de indivíduos idênticos entre si e, portanto, «abstractos». Por isso, foi criticado pelos comunitaristas, tais como Michael Sandel, Charles Taylor e Alastair MacIntyre, que defendem que a noção de bem social é superior à noção de indivíduo, o qual não existe fora dos muitos grupos que, da família à nação, contribuem para modelar a sua personalidade. A obra «O Liberalismo Político» de Rawls responde a esta objecção.
2. Os libertários, encabeçados por Robert Nozik, contestam a função reguladora e até mesmo intervencionista que Rawls confere ao Estado, defendendo o liberalismo «puro e duro» de Adam Smith. Assim, nesta perspectiva, todo o Estado que vai além do Estado «mínimo» viola os direitos sagrados do indivíduo.
Contra estas críticas, Rawls afirma que a sua concepção de justiça como equidade, resumida na fórmula clássica: «Não faças ao outro o que não queres que te façam», embora de inspiração kantiana, é mais uma concepção política do que uma concepção metafísica. E, como renuncia ao transcendental, parece ser a que tem mais probabilidades de fundar uma política razoável, ou seja, de fundar sobre uma base sólida o conjunto das regras que, na vida social, cada um de nós deve aceitar, se quiser que os outros façam o mesmo. Além disso, Rawls acentua que a sua teoria da justiça aplica-se a todas as sociedades, até mesmo à «sociedade das nações», chegando ao ponto de defender o «direito de ingerência», o qual incentiva as nações democráticas a ajudar as nações que ainda não são democráticas ou a impedir, até mesmo por meios militares, que uma tirania ou ditadura esmague um povo sem resistência.
De facto, o liberalismo político de John Rawls pode ajudar a elaborar um socialismo da liberdade e redefinir o pensamento de Esquerda nos tempos da globalização em curso. Três princípios que devem nortear a política socialista são: a) defesa da liberdade e democracia, tal como já tinha sido proposto por Rosa Luxemburgo; b) defesa do papel regulador do Estado, de modo a redistribuir as riquezas pelos mais desfavorecidos; e c) defesa do primado da liberdade sobre a «igualdade», em caso de haver um conflito entre estes dois princípios de justiça.
Embora não tenhamos esgotado toda a riqueza desta obra de filosofia política, deixando na sombra as outras etapas das negociações cada vez mais libertas do véu da ignorância, pensamos que o que foi dito é suficiente para orientar a leitura desta obra densa de John Rawls, que ainda não foi verdadeiramente assimilada pelos filósofos entregues a meditações pouco relevantes para a tomada de decisões políticas e legislativas.
J Francisco Saraiva de Sousa

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