quinta-feira, 12 de julho de 2007

Confrontar Nietzsche (Fragmentos)

PENSAR SEM DEUS OU O CONVITE AO SUICÍDIO:
Metacrítica da metafilosofia nietzschiana

Tentaremos travar um diálogo com o pensamento de Nietzsche, sem pretender dar-lhe ou emprestar-lhe uma filosofia sistemática. O próprio Nietzsche escreveu contra todo o sistema: «Desconfio de todos os sistemáticos e afasto-me do seu caminho. A vontade de sistema é uma falta de probidade». E, na mesma obra, Crepúsculo dos Ídolos, acrescenta: «Só os pensamentos em marcha têm valor» (§ 26, 34, p.17-18). Ora, a este pensamento que pretende estar para além do sistema e, por conseguinte, do fundamento, adoptando como estilo o fragmento e o aforismo, sem pretender conquistar seguidores, chamaremos metafilosofia, mais precisamente um pensamento que, sem abdicar da filosofia e da sua história, pretende estar para além da filosofia. Ecce-Homo: «Fiel discípulo de Dioniso, prefiro ser um sátiro a ser um santo» (p.20).
É precisamente em Ecce-Homo que Nietzsche procura rever toda a sua obra, em função de uma determinada filosofia, a de Dioniso, ou como filosofia do futuro:

«“Tornar melhor a Humanidade”, eis a última coisa que me ocorreria prometer. Não sou eu quem erguerá novos ídolos; os ídolos de outrora já podem advertir-nos sobre o que é e o que significa ter pés de barro! Abater ídolos (eis como eu chamo aos “ideais”) é o meu principal ofício. Retirou-se à realidade valor, retirou-se-lhe sentido, veracidade, na medida em que se inventou um falso mundo ideal… “Mundo verdadeiro” e “mundo aparente”, tal contraposição significa: mundo fictício e realidade… A mentira do ideal foi até agora a maldição sobre a realidade; por ela, a própria humanidade foi falsificada e viciada até aos mais profundos instintos, até adorar valores opostos àqueles com que lhe estaria garantido próspero porvir, o excelso direito do porvir» (p.20).
Em Crepúsculo dos Ídolos ou como se filosofa com o martelo, Nietzsche define a sua tarefa como «sondar os ídolos» ou, mais precisamente, como «uma grande declaração de guerra»:

«e, quanto ao escrutínio dos ídolos, desta vez não são ídolos temporais, mas ídolos eternos, os que aqui são percutidos com o martelo como se fora com um diapasão — não ídolos mais antigos, nem mais convencidos ou mais arrogantes… Nem mais vazios… Isso não obsta a que sejam os mais acreditados; e, no entanto, no caso mais distinto, nem sequer são chamados ídolos…» (p.12).
A MORTE DE DEUS E O PENSAMENTO. Na sua «auto-biografia», Ecce-Homo, Nietzsche estabelece uma determinada relação entre Deus e o pensamento:

«Não considero o ateísmo como resultado e ainda menos como um facto; para mim, o ateísmo é forma estrutural de ser. Sou demasiado curioso, demasiado problemático, demasiado orgulhoso, para contentar-me com respostas grosseiras. Deus é uma resposta grosseira, uma indelicadeza para nós outros, pensadores: no fundo, é simplesmente grosseira proibição. É o mesmo que nos dizer: Não deveis pensar!…» (p.48).

Deus é aqui encarado com uma resposta dada a um determinado problema, resposta esta que nos proíbe — isto é, aos pensadores, livres pensadores — de pensar por nós mesmos.
Deus como princípio de proibição de todo o pensamento que não se satisfaz com qualquer tipo de resposta e, muito menos, com respostas grosseiras, devido à sua curiosidade, à sua problematicidade e ao seu orgulho. O pensamento livre quer pensar livremente, isto é, sem Deus. A morte de Deus liberta-nos para o pensamento mais profundo: o pensamento que renuncia a Deus para poder pensar radicalmente. Deus não é aqui encarado como um ser que existe por si mesmo: Deus é uma invenção do homem fraco que, com isso, quis pôr termo a todo o pensamento. Aceitar Deus como resposta é renunciar ao pensamento. A moral da renúncia é, antes de tudo, uma renúncia ao pensamento radical. O pensamento que pensa sem Deus é um pensamento do futuro.
Em Ecce-Homo, Nietzsche não deixa dúvidas:

«Zaratustra dominou a grande náusea que o homem lhe inspira: o homem é para ele coisa informe, matéria, pedra que carece de estatutário.
«“Ter deixado de querer, de valorar e de criar! Oh, que este grande cansaço permaneça sempre longe de mim!
«Também no conhecimento sigo apenas o prazer do querer, do gerar e do devir; e, se há inocência no meu conhecimento, é porque há nele vontade de gerar.
«Foi esta vontade que me levou para longe de Deus e de deuses; pois que haveria que criar se houvesse deuses?
«A minha ardente vontade de criar lança-me de novo sempre para os homens: assim como o martelo para a pedra.
«Ah, homens, para mim, na pedra dorme a estátua, a estátua das estátuas! Ah, e porque há-de haver pedra tão dura que dela a estátua não desperte?
«Agora bate duramente o meu martelo nessa cerrada prisão. A pedra faz-se em pedaços: mas que importa?
«Quero acabar a minha obra, pois uma sombra veio até mim — a coisa mais silenciosa e mais ténue veio até mim.
«A beleza do super-homem veio até mim como uma sombra: e que me importa agora os deuses?…”» (p.139-140).
Pensar sem Deus é ser uma espécie de artista que cria, a partir do homem cansado, um novo homem: O super-homem. O pensamento que renuncia a Deus é, nesse mesmo acto, uma afirmação de si mesmo. Libertando-se de Deus, o pensamento acorda para a sua mais genuína tarefa: criar um homem novo capaz de superar e de se libertar dessa enorme e pesada prisão que tem sido, desde há milénios, a tremenda «mentira»: a moral da renúncia.
O pensamento livre renuncia a Deus, ou melhor, a uma determinada concepção de Deus, a cristã. Em O AntiCristo, Nietzsche diz precisamente isso:

«O conceito cristão de Deus — Deus como Deus dos doentes, Deus como aranha, Deus como espírito — é um dos mais corruptos conceitos de Deus que sobre a Terra se obtiveram: representa até, possivelmente, o mais baixo nível da evolução declinante do tipo divino. Deus degenerado em contradição com a vida, em vez de ser a sua glorificação e o seu eterno sim! Expresso em Deus o ódio à vida, à natureza, à vontade de viver! Deus, a fórmula para toda a difamação do «aquém», para toda a mentira do «além»! O nada divinizado em Deus, a vontade de nada santificada!…» (p.31-32).
A VERDADE TERRÍVEL. Negar Deus e toda a concepção da «ordem moral do mundo» é assumir um pensamento trágico — mergulhar no abismo. Com diz Nietzsche em Ecce-Homo:

«Não é a dúvida, mas a certeza que enlouquece… Para sentir assim é necessário ser profundo, ser um abismo, ser filósofo… Nós outros, todos nós, temos medo da Verdade…» (p.59).
Mas que verdade é essa que tanto tememos? Em Ecce-Homo, no capítulo “Por que sou uma fatalidade”, Nietzsche revela essa verdade terrível que todos nós tememos:

«[…] A verdade fala pela minha boca. Mas a minha verdade é aterradora, porque até hoje se chamou verdade à mentira.
«Transmutação de todos o valores, eis a minha fórmula para aquele acto decisivo de regresso da humanidade a si própria, que em mim se fez carne e génio. Quer o meu destino que eu seja o primeiro homem sincero, quer que me ponha em [contradição com] oposição às mentiras de vários milénios» (p.161-162).
AS CONVICÇÕES COMO PRISÕES. Os maiores inimigos da Verdade são as convicções e as mentiras. Nietzsche esclarece esses termos em O Anticristo:

«Não nos deixemos enganar: os grandes espíritos são cépticos. Zaratustra é um céptico. A força, a liberdade que promana da força e da plenitude do espírito, demonstra-se pelo cepticismo. No tocante a tudo o que é princípio de valor e não-valor, os homens de convicções não se tomam em conta. As convicções são prisões. Não se vê bastante longe, não se vê por baixo delas; mas, para poder falar de valor e não-valor, há que ver por baixo de si, atrás de si, quinhentas convicções… Um espírito que quer ser algo de grande, que quer também para tal os meios, é necessariamente um céptico. A liberdade relativamente a toda a espécie de convicções pertence à força, o poder olhar livremente… A grande paixão, o fundo e o poder do seu ser, por esclarecido e despótico que ele seja, põe ao seu serviço todo o seu intelecto; elimina a hesitação; proporciona-lhe a coragem até para meios ímpios; permite-lhe convicções em determinadas circunstâncias. A convicção como meio: há muitas coisas que só se alcançam mediante uma convicção. A grande paixão precisa de e usa convicções, não se submete a elas — sabe-se soberana. Inversamente: a necessidade de fé, de algo não condicionado pelo sim e pelo não, o carlylismo, se me desculparem o termo, é uma necessidade de fraqueza. O homem de fé, o “crente” de toda a espécie, é necessariamente um homem dependente — alguém que não se considera como fim, que em geral não pode por si produzir fins. O “crente” não pertence a si mesmo, pode apenas ser meio, deve ser consumido, tem necessidade de alguém que o consuma. O seu instinto presta a maior honra a uma moral de alienamento de si: tudo o persuade desta moral — a sua sagacidade, a sua experiência, a sua vaidade. Toda a espécie de fé é por si mesma uma expressão de alienamento de si… Se se examinar como necessário à maioria dos homens o regulador que os vincule e os fixe a partir de fora, como coacção — num sentido mais elevado de escravidão — é a única e derradeira condição sob a qual prospera o homem de vontade fraca, sobretudo a mulher, então compreender-se-á também a convicção, a “fé”. O homem de convicção tem nela a sua espinha dorsal. Não ver as coisas, não ser imparcial em ponto algum, ser plenamente de um partido, ter uma óptica severa e necessária em todos os valores — só isso explica que exista em geral semelhante espécie de homens. Mas ela é assim o contrário, o antagonista do verídico — da verdade… O crente não dispõe da liberdade de ter uma consciência para a questão do “verdadeiro” e do “falso”: ser aqui honesto seria de imediato a sua ruína. O condicionamento patológico da sua óptica faz do convicto o fanático — Savonarola, Lutero, Rousseau, Robespierre, Saint-Simon —, o tipo antagónico do espírito forte e liberto. Mas a atitude grandiloquente destes espíritos doentes, destes epilépticos do conceito, actua sobre a grande massa — os fanáticos são pitorescos, a humanidade gosta mais de ver gestos do que ouvir razões…» (p.84-85).
A Verdade como antagonista da Fé implica necessariamente a experiência da libertação da dependência que aliena o si de si mesmo, mergulhando-o no esquecimento. Se a Fé é um «pensamento» heterónomo, a Verdade é fazer a experiência da autonomia — é pensar, sentir e agir por si mesmo, sem a tutela de um conjunto de convicções fixadas e reificadas. O super-homem é anunciado para libertar o homem da «servidão da mentira».
Nestas distinções Nietzsche parece opor duas formas de pensamento: o pensamento dependente e o pensamento independente. Ambas as formas de pensamento relevam de dois tipos de personalidade: a dependente e a independente.
O pensamento dependente é um pensamento de rebanho.

PENSAMENTO E INDIVIDUALIDADE. Onde não há uma individualidade forte, não há nem pode haver pensamento verdadeiro. Na Gaia Ciência, § 345 – A moral como problema:

«A falta de individualidade exerce a sua vingança por toda a parte; uma personalidade enfraquecida, gasta, apagada, que se nega a si própria e aos outros, não serve para mais nada, muito menos para a filosofia. A «anulação de si» não tem valor nem no céu, nem na terra; os grandes problemas exigem todos o grande amor, e deste são capazes apenas os espíritos fortes, inteiros, seguros, aqueles que se apoiam solidamente sobre si próprios. Faz uma considerável diferença, se um pensador se coloca pessoalmente em relação aos seus problemas, de modo que neles encontre o seu destino, a sua dor e também a sua maior felicidade, ou então «impessoalmente», isto é, se não sabe tocá-los e segurá-los senão com os tentáculos da sua fria e indiscreta reflexão. Neste último caso não resultará nada, podemos ficar certos, pois os grandes problemas, admitindo mesmo que se deixem agarrar, não se deixam prender pelas rãs e pelos fracos, tal é o seu gosto desde a eternidade — gosto que partilham, aliás, com todas as valentes mulherzinhas».
PENSAMENTO E DROGAS. Marx já tinha dito que «a religião é o ópio do povo». Nietzsche considera que o pensamento dependente é um narcótico e, como tal, uma doença. Ecce-Homo:

«Quando pretendemos libertar-nos de uma opressão intolerável, tomamos haschich. Pois bem: eu tomei Wagner» (p.62).
E Wagner foi um veneno. O pensamento dependente envenena — é um veneno.
O CONCEITO COMO REIFICAÇÃO. No Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche afirma que a idiossincrasia dos filósofos reside na:

«sua falta de sentido histórico» — «o seu ódio contra a própria representação do devir, o seu egipticismo. Julgam honrar uma coisa quando a desistoricizam, sub specie aeterni, quando dela fazem uma múmia. Tudo o que os filósofos, desde há milhares de anos, manejaram foram conceitos-múmia; nada de realmente vivo saiu das suas mãos. Estes idólatras do conceito matam e dissecam, quando adoram — são um perigo para a vida de todas as coisas, quando adoram» (p.29).
O pensamento conceptual é aqui denunciado pela sua incapacidade de apreender as coisas no seu devir. Egipticismo: mumificação da vida.
A recusa do conceito não implicará uma recusa do próprio pensamento? De facto, Nietzsche parece negar o pensamento em nome de uma nova experiência estética: o super-homem. O martelo em vez do conceito?
O PENSAMENTO SOLITÁRIO. O pensamento independente isola.
PENSAMENTO E LINGUAGEM. No Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche deixa escapar uma frase que coloca a tarefa de «recriar» a própria linguagem, de modo a libertá-la do peso da moral da renúncia: «Receio que não nos livremos de Deus, porque ainda cremos na gramática…» (p.33).
PENSAMENTO E INTERPRETAÇÃO. Em Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche escreve:

«É conhecida a exigência que faço ao filósofo: deve colocar-se para além do bem e do mal — e ter debaixo de si a ilusão do juízo moral. Semelhante exigência deriva de um ponto de vista que foi, pela primeira vez, por mim formulado: não há factos morais. O juízo moral tem em comum com o religioso crer em realidades que o não são. A moral é unicamente uma interpretação de certos fenómenos; mais estritamente, uma falsa interpretação. O juízo moral, tal como o religioso, pertence a um estádio da ignorância em que falta o conceito do real, a distinção entre o real e o imaginário; de modo que “verdade”, no sobredito estádio, designa simplesmente coisas que hoje chamamos “imaginações”. O juízo moral jamais deve, pois, tomar-se à letra: enquanto tal contém sempre só contra-senso. Mas conserva um valor inestimável como semiótica, porque revela, pelo menos ao douto, as mais valiosas realidades das civilizações e interioridades que não sabiam o bastante para a si mesmas se “compreenderem”. A moral é somente uma linguagem de signos, simples sintomatologia: importa saber de que se trata para daí tirar utilidade» (p.55-56).
A moral como semiótica é um pensamento que se afunda no seu próprio imaginário, sem levar em conta a realidade, da qual não tem qualquer conceito.

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